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segunda-feira, 8 de maio de 2023

Tratado sobre amor de Deus, de São Bernardo de Claraval

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Vitor Roberto Pugliesi Marques


‘Este artigo analisa, de modo assaz conciso, o Tratado sobre o amor de Deus (São Paulo: Paulus, 2015), escrito pelo grande São Bernardo de Claraval (1090-1153), abade cisterciense e doutor da Igreja.

O prefácio da obra já nos traz o motivo pelo qual ela foi escrita. Trata-se de uma resposta a questionamentos feitos a São Bernardo por um senhor chamado Henrique, cardeal e chanceler da Igreja romana. Ao que parece (não é colocado no texto que chega até nós as perguntas objetivamente feitas), esse clérigo deve tê-lo interpelado sobre como o Amor de Deus se manifesta e, inferimos, pela teor do texto escrito, que deveria o senhor Henrique ter ainda indagado o como e o porquê corresponder a esse Amor. Ora, se todo ser humano, mesmo sem fé, deve amar a Deus, muito mais há de fazê-lo o cristão que tem, diante de si, na pessoa de Cristo, a imensa prova do grande amor do Pai por nós. Ele nos enviou – para sofrer e morrer na cruz – o seu próprio Filho quando ainda éramos pecadores (cf. Rm 5,8). Há maior prova de amor do que esta?

Isso posto, tratemos, agora, sobre os quatro graus do Amor. O primeiro grau consiste no amor do homem a si próprio. Seria natural e justo que antes de tudo amássemos o Autor de tudo. Todavia, explica-nos São Bernardo, que ‘a natureza é muito frágil e muito fraca para seguir tal recomendação. Ela começa por amar a si mesma’ (p. 55). Desde que exercido dentro da devida moderação e justiça, não há nada de errado nesse amor. Contudo, se ele dita-se em excesso, torna-se egoísta e não compatível com o que Deus deseja de nós. Em se tratando de amor próprio, caso extrapole os limites, deve-se lembrar do preceito que ordena : amarás o teu próximo como a ti mesmo (cf. Mt 22,38). No ato de amar a si com a devida moderação, ou seja, abrindo-se também ao próximo, está o exercício correto do primeiro grau do amor. Entretanto, não é possível amar perfeitamente o próximo se não for em Deus. Vai nos dizer, pois, o Tratado que ‘devemos então começar por amar a Deus, se se quer amar o próximo nele, de sorte que Deus, que é o autor de todos os outros bens, o é também de nosso amor por ele’ (p. 58).

segundo grau consiste no amor do homem a Deus, mas com finalidade em si mesmo, buscando o seu próprio benefício. Podemos perceber muita fragilidade nesse amor, todavia, nos diz São Bernardo, que ‘há alguma sabedoria nele [nesse amor] por saber [o homem] do que é capaz por si mesmo e o que não pode fazer sem a ajuda de Deus, e por se tentar manter irrepreensível aos olhos daquele que lhe conserva as forças’ (p. 61). Ou seja, nesse grau de amor, o homem já reconhece que não é autossuficiente, e que precisa de Deus para as empreitadas da vida. É obrigado, assim, a recorrer, e com frequência, a Deus. 

terceiro grau consiste no amor do homem a Deus com a finalidade de unir-se a Ele, mas ainda não de forma plena ou total. Com o progresso na vida de oração, vai se reconhecendo o quanto Deus é bom, disso chega-se a um ponto que se torna fácil amar o próximo, pois o amamos em Deus. ‘Quem ama com esse amor, ama tanto quanto é amado, e não busca, por sua vez, senão os interesses de Jesus Cristo, não mais os seus próprios’ (p. 63). 

quarto grau consiste no amor em sua plenitude com Deus. Nesse ponto da caminhada, o homem não ama a si mesmo senão por Deus. ‘Chegar a esse ponto é ser deificado. Igual a uma pequena gota d’água que, misturada a uma grande quantidade de vinho, parece desaparecer, impregnando-se do gosto e da cor desse líquido’ (p. 67). 

Para enquadrarmos os quatro graus do amor descrito por São Bernardo no modelo clássico das vias da santificação, podemos dizer que a via purgativa está nos primeiros dois graus do amor; a iluminativa no terceiro grau e a unitiva no quarto grau do amor. 

Leitura sapiencial a cada ser humano que, com a graça de Deus, luta para ser santo como o Pai celeste é santo (Mt 5,48).’

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2023/02/19/tratado-sobre-amor-de-deus-de-sao-bernardo-de-claraval/

terça-feira, 18 de abril de 2023

Os Sermões sobre o Cântico dos Cânticos de São Bernardo de Claraval

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Vanderlei de Lima, 

eremita na Diocese de Amparo, BA

 

‘Sermões sobre o Cântico dos Cânticos’ : Eis o título de uma das clássicas obras de São Bernardo de Claraval (1090-1153). Foi publicada, em tradução brasileira, pela Editora Permanência do Rio de Janeiro.

O livro é extenso – são oitenta e seis sermões – e denso. Daí, ser nossa intenção, aqui, propor, à luz de boas fontes, apenas um comentário geral sobre os Sermões. Seu ‘‘gênero literário’ é mais livre […]. Não obstante, é claro que as coleções de sermões registradas por escrito e publicadas sofreram um paciente trabalho de redação e edição’ (Bernardo Olivera, OCSO. Introducción a los Padres e Madres cistercienses de los siglos XII e XIII. Burgos : Fonte & Monte Carmelo, 2020, p. 79). Ora, o Cântico dos Cânticos é um poema de amor do Antigo Testamento que faz o homem se reencontrar com Deus de um modo esponsal. Trata-se de um livro ‘escrito com arte pelo Espírito Santo’ (Pierre Riché. Vida de São Bernardo. São Paulo : Loyola, 1981, p. 63). Nele, o ‘diálogo entre a esposa e o esposo não é senão aquele que existe entre a alma e o Verbo Divino, entre a Igreja e Cristo’ (idem, p. 62). Daí a questão : que metodologia ou ‘linha exegética’ – diríamos hoje – usava o Abade de Claraval para suas explanações nessa obra?  

Versículo por versículo

Responde-nos o próprio Riché, ao demonstrar – de modo mais detalhado – a procura do santo por Aquele que ele ama, Jesus Cristo : ‘Bernardo explica versículo por versículo nos sentidos alegórico e místico. Com admirável domínio, com uma arte raramente alcançada, Bernardo dedica os nove primeiros sermões ao beijo, sem jamais perturbar-se, nem perturbar seus ouvintes. Quando é levado a falar da sexualidade, ele age com calma e sem complexos, pois vive sóbria e castamente, graças à leitura e à oração. Ele passa sem dificuldade do canto nupcial ao da união mística. Na sua trajetória, conduz seus monges do jardim à adega, da adega ao quarto. O jardim é o da criação, da reconciliação vinda do Salvador, da colheita, do fim do mundo. As adegas guardam os aromas, os unguentos e o vinho, isto é, as três regras de vida segundo a disciplina, a natureza e a graça. Tudo isso requer um longo encaminhamento. O beijo da alma e do Verbo de Deus mal acaba de se realizar, eis que corre o risco de findar bruscamente. Bernardo confidencia aos seus monges que seu diálogo com Cristo é muitas vezes difícil. Desde o começo em que o Verbo se retirou, tudo isso começa imediatamente a enlanguescer no torpor e arrefece’ (idem, p. 63).

São Bernardo

Dom Bernardo Bonowitz, OCSO, antigo abade do Mosteiro de Nossa Senhora do Novo Mundo, em Campo do Tenente (PR), completa a explanação de Riché assegurando que São Bernardo foi um grande admirador de Orígenes, importante místico, filósofo e exegeta cristão do século III. Daí ter, como ele, por referência os três livros bíblicos atribuídos ao sábio rei Salomão : Eclesiastes, Provérbios e Cântico dos Cânticos. Para o santo, sem essa sequência não se consegue compreender a contento o Cântico dos Cânticos. Eis as oportunas palavras de Bonowitz : ‘O Cântico dos Cânticos é escrito em linguagem figurativa, usa as metáforas do amor carnal humano para aludir aos mistérios da união espiritual entre Deus e a alma e, diz Bernardo prudentemente, se você não tiver passado pela formação providenciada pelos dois livros anteriores de Salomão, Eclesiastes e Provérbios, é mais do que provável que você não compreenderá a terceira obra, que tudo coroa’ (São Bernardo, o numerólogo. Campinas: Ecclesiae, 2019, p. 18).

Em suma, o estudioso só tem a louvar a Editora Permanência pela publicação dessa obra magna de São Bernardo. Não deve, contudo, deixar de notar pontos que deveriam ser revistos. Por exemplo, as abreviaturas da Sagrada Escritura : Judite aparece, na página 21, como JDt, quando, via de regra, se usa Jt; Sabedoria, na página 20, Sab, mas deveria ser Sb; Hebreus, na página 113, vem como Hebr e o correto seria Hb etc. A palavra consequência está com trema nas páginas 38 e 108, por exemplo. A nota 1 diz, sem mais, que São Roberto de Molesmes foi o fundador de Cister, quando, na verdade, Cister é fruto de uma comunidade fundadora a incluir os santos abades Roberto, Alberico e Estêvão Harding. Ainda : o nome da obra poderia aparecer sempre, como no título, Cântico dos Cânticos) mas, no corpo do livro, vem Cantar dos Cantares. No sumário, há Deus com d minúsculo (Sermão LV), igreja em vez de Igreja (Sermão XXX) etc.’ 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2023/04/16/os-sermoes-sobre-o-cantico-dos-canticos-de-sao-bernardo-de-claraval/

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

História de São Bernardo Claraval


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  
 Imagem relacionada

São Bernardo nasceu em 1090, no Castelo de Fontaine, região de Borgonha, França. Filho de um nobre chamado Tescelin Sorrel, o Vermelho e de Aleth de Monthbard, mulher virtuosa venerada como bem aventurada. Teve sete irmãos dentre os quais era o terceiro. Bernardo sempre se destacou pela inteligência e pela beleza física. Aos 9 anos foi para a escola canônica, e destacou-se principalmente na literatura.

A vocação de São Bernardo

Em 1112, aos 22 anos, Bernardo entra na Abadia de Cister, também em Borgonha. Esta abadia era um mosteiro cisterciense fundado por São Roberto de Molesme.

Foi então que Bernardo convenceu mais de trinta homens, irmãos, tios e vários amigos a entrarem para a ordem, causando enorme surpresa e alegria para a Abadia e para Santo Estevão Harding, abade sucessor do fundador São Roberto.

São Bernardo de Claraval

Bernardo era homem de estudo e oração, praticando com austeridade a regra do mosteiro, a mesma escrita por São Bento. Bernardo dedicava-se à oração e ao ensino da catequese. Tinha grande dom de oratória e convertia muitos com quem conversava, tanto que levou o para o mosteiro o irmão mais novo e seu pai.

Após dois anos em Cister, Bernardo foi enviado para o vale de Langres em 1115, com a missão de fundar a Abadia de Claraval, (vale claro), tornando o seu primeiro Abade, com apenas 25 anos. Em pouco tempo a Abadia ficou conhecida em toda a França e posteriormente por toda a Europa como um lugar onde se vivia a oração, o trabalho, a humildade, a caridade e a cultura profunda.

Bernardo e os monges de Claraval viviam com amor e integridade os votos de pobreza, castidade e obediência. Certa vez teve uma visão : um menino envolto numa luz divina disse a ele : fala aos outros sempre, pois serás inspirado pelo Espírito Santo e receberás a graça especial de compreender as fraquezas das pessoas e ajudá-las. Assim, Bernardo conseguiu muitas vocações para Claraval. O Mosteiro chegou a ter 700 monges, inclusive Henrique de França, irmão do Rei Luís Vll, que mais tarde foi bispo e arcebispo de Reims.

As obras de São Bernardo

Com o passar dos anos, São Bernardo fundou 72 casas da ordem dos Cistercienses na França e em vários países da Europa. Participou ativamente do Concílio de Latrão, como secretário. Participou também do Concílio de Troyes, onde exerceu grande influência, e do Concílio de Reims, sempre a pedido do Papa, para tratar de todos os assuntos da Igreja.

A convite do Papa, pregou a segunda cruzada. Era conhecido como o Pai dos fiéis, a Coluna da Igreja, o Apoio da Santa Sé, o Anjo Tutelar do Povo de Deus.

Sua devoção para com a Virgem Maria era incomparável. Quando estava na Alemanha, na catedral de Spira, ajoelhou-se por 3 vezes dizendo : Ó Clemente; Ó Piedosa; Ó Doce Virgem Maria!, invocações que foram acrescentadas ao final da oração Salve Rainha.

Por causa de sua fama de santidade e sabedoria reconhecida, São Bernardo torna-se uma personalidade importante e respeitada em toda a Europa. Tanto que ele intervém em assuntos públicos, defende os direitos da Igreja contra abusos de Reis e é chamado para aconselhar Papas e Reis.

Os Milagres de São Bernardo

Bernardo reformou a Ordem Cisterciense e levou-a a ser o que é até hoje, quase mil anos depois. Ele mesmo fundou muitos mosteiros na Europa : 35 na França, 14 na Espanha, 10 na Inglaterra e Irlanda, 6 em Flandres, 4 na Itália, 4 na Dinamarca, 2 na Suécia e 1 na Hungria, além de muitos outros que se filiaram à Ordem. Sua Ordem chegou aos cinco continentes.

No Brasil, no Estado de Minas Gerais, existe uma cidade chamada Claraval, que nasceu ao redor de um grande mosteiro da ordem dos Cistercienses.

Durante o concílio de Troyes, Bernardo conseguiu o reconhecimento para a Ordem do Templo, os Templários, cujos estatutos ele mesmo escreveu. Além disso, São Bernardo escreveu grandes obras, tratados de teologia, obras defendendo a Fé Católica e a Igreja contra heresias, além de inúmeros tratados sobre Nossa Senhora.

O falecimento

Quando estava para morrer e os monges rezando para que Deus não deixasse, ele disse :

Porque desejais reter aqui um homem tão miserável? Usai da misericórdia para comigo e deixai-me ir para Deus. Assim, São Bernardo faleceu no dia 20 de agosto de 1153, aos 63 anos de idade.

Devoção a São Bernardo

São Bernardo foi canonizado em 18 de junho de 1174, pelo Papa Alexandre lll e declarado Doutor da Igreja pelo Papa Pio Vlll, em 1830, por causa de suas pregações e obras escritas.


Fonte :

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Paladino do amor eterno

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo do Padre Geovane Saraiva,
Pároco de Santo Afonso de Fortaleza, CE,
e vice-presidente da Previdência Sacerdotal


‘O século XII exultou de vitalidade cultural, originalidade intelectual e profundas marcas espirituais em São Bernardo de Claraval, homem extremamente assinalado e seduzido pela bondade infinita de Deus, na história da nossa civilização cristã católica. Em diversas ocasiões, obedecendo à voz de Deus, deixou a vida contemplativa para ir ao encontro de questões que agitavam o mundo no qual estava inserido. Sua presença foi determinante, além de concreta e segura em acontecimentos dolorosos que envolviam a humanidade, levando em conta que ele era homem de vida contemplativa, religioso e monge. Que o mesmo espírito de São Bernardo entre em nosso agitado mundo, que tem seu auge na ‘violência desumana do terrorismo’.

Que ele, como exímio pregador, místico, escritor, fundador de mosteiros, abade, conselheiro de papas, reis e bispos, possa ensinar a este nosso mundo tão conturbado, sensibilizando, também como político polêmico e ao mesmo tempo pacificador, a todos que têm responsabilidades com o destino do referido mundo. São Bernardo foi paladino do amor eterno, revelado e manifestado no Filho de Deus, desde Belém até o Gólgota. Também sempre foi lembrado como poeta do amor incomparável de Nossa Senhora : ‘Lembrai-vos, ó piedosíssima Virgem Maria (...)’. Pelo seu exemplo, que Maria nos ensine a seguir os passos de Jesus, pelo anúncio da compaixão de Deus, tendo na mente e no coração seu ardoroso sonho, que é o de um mundo verdadeiramente de irmãos, com absoluta confiança na grandeza do Bom Senhor, proclamada por sua Mãe Maria.

Como Bernardo de Claraval ajuda a compreender a figura de Maria, mulher que soube colocar e meditar no coração os atos e as palavras de seu Filho Jesus, tendo presente o canto de ação de graças por todos os dons, colocando-se a serviço da compaixão de Deus, ao manifestar sua misericórdia de geração em geração! Quão grandiosidade de Maria, como seguidora fiel, ao lado de seu Filho condenado, ultrajado e morto na cruz, ajudando-nos a absorver seu amor misericordioso para com todos.

Voltando ao paladino do amor eterno, pelo grande Poeta Dante, da Divina Comédia, elegendo-o como seu guia no Paraíso, colocou nos seus lábios a saudação à Virgem Maria : ‘Tu, ó Virgem, és tão valiosa na intercessão, de tal modo que quem quiser alcançar uma graça, sem recorrer a Ti, é semelhante a uma ave, que tenta voar sem asas’. A fé de Maria no Deus dos pequenos concorre para reavivar em nós o dom da fé e também a nossa missão, indicando-nos que no coração da mãe prevalece a ternura de Deus. Amém!’


Fonte :


terça-feira, 19 de agosto de 2014

São Bernardo, Abade e Doutor da Igreja

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Bento XVI, Papa Emérito

‘Hoje gostaria de falar de São Bernardo de Claraval, chamado ‘o último dos Padres’ da Igreja, porque no século XII, mais uma vez, renovou e tornou presente a grande teologia dos Padres. Não conhecemos os pormenores os anos da sua infância; sabemos contudo que ele nasceu em 1090 em Fontaines na França, numa família numerosa e discretamente abastada. Ainda jovem, prodigalizou-se no estudo das chamadas artes liberais – especialmente da gramática, da retórica e da dialéctica – na escola dos Cônegos da igreja de Saint-Vorles, em Châtillon-sur-Seine e amadureceu lentamente a decisão de entrar na vida religiosa. Por volta dos vinte anos entrou em Cîteaux, uma fundação monástica nova, mais activa em relação aos antigos e veneráveis mosteiros de então e, ao mesmo tempo, mais rigorosa na prática dos conselhos evangélicos. Alguns anos mais tarde, em 1115, Bernardo foi enviado por Santo Estêvão Harding, terceiro Abade de Cîteaux, para fundar o mosteiro de Claraval (Clairvaux). Aqui o jovem Abade, tinha apenas vinte e cinco anos, pôde apurar a própria concepção da vida monástica, e empenhar-se em pô-la em prática. Olhando para a disciplina de outros mosteiros, Bernardo recordou com decisão a necessidade de uma vida sóbria e comedida, tanto à mesa como no vestuário e nos edifícios monásticos, recomendando o sustento e a atenção aos pobres. Entretanto a comunidade de Claraval tornava-se cada vez mais numerosa, e multiplicava as suas fundações.

Nestes mesmos anos, antes de 1130, Bernardo iniciou uma ampla correspondência com muitas pessoas, quer importantes quer de modestas condições sociais. Às muitas Cartas deste período é preciso acrescentar numerosos Sermões, assim como Sentenças e Tratados. Remonta sempre a este tempo a grande amizade de Bernardo com Guilherme, Abade de Saint-Thierry, e com Guilherme de Champeaux, figuras entre as mais importantes do século XII. A partir de 1130, começou a ocupar-se de muitas e graves questões da Santa Sé e da Igreja. Por este motivo teve que sair cada vez mais do seu mosteiro, e por vezes da França. Fundou também alguns mosteiros femininos, e foi protagonista de um vivaz epistolário com Pedro o Venerável, Abade de Cluny... Dirigiu sobretudo os seus escritos polêmicos contra Abelardo, um grande pensador que iniciou um novo modo de fazer teologia, introduzindo sobretudo o método dialéctico-filosófico na construção do pensamento teológico. Outra frente contra a qual Bernardo lutou foi a heresia dos Cátaros, que menosprezavam a matéria e o corpo humano, desprezando, por conseguinte, o Criador. Ele, ao contrário, sentiu-se no dever de assumir a defesa dos judeus, condenando as manifestações de anti-semitismo cada vez mais difundidas. Devido a este aspecto da sua acção apostólica, algumas dezenas de anos mais tarde, Ephraim, rabino de Bonn, dirigiu a Bernardo uma vivaz homenagem. Naquele mesmo período o santo Abade escreveu as suas obras mais famosas, como os celebérrimos Sermões sobre o Cântico dos Cânticos. Nos últimos anos da sua vida – a sua morte verificou-se em 1153 – Bernardo teve que limitar as viagens, sem contudo as interromper totalmente. Aproveitou para rever definitivamente o conjunto das Cartas, dos Sermões e dos Tratados. Merece ser mencionado um livro bastante particular, que ele terminou precisamente neste período, em 1145, quando um seu aluno, Bernardo Pignatelli, foi eleito Papa com o nome de Eugênio III. Nesta circunstância, Bernardo, como Padre espiritual, escreveu a este seu filho espiritual o texto De Consideratione, que contém ensinamentos para poder ser um bom Papa. Neste livro, que permanece uma leitura conveniente para os Papas de todos os tempos, Bernardo não indica apenas como desempenhar bem o papel de Papa, mas expressa também uma visão profunda do mistério da Igreja e do mistério de Cristo, que no final se resolve na contemplação do mistério de Deus trino e uno :  ‘Deveria ainda prosseguir a busca deste Deus, que ainda não é bastante procurado’, escreve o santo Abade ‘mas talvez se possa procurar melhor e encontrar mais facilmente com a oração do que com o debate. Ponhamos então aqui um ponto final no livro, mas não na pesquisa’ (XIV, 32:  PL 182, 808), no estar a caminho rumo a Deus.

Gostaria de me deter agora sobre dois aspectos centrais da rica doutrina de Bernardo : eles referem-se a Jesus Cristo e a Maria santíssima, sua Mãe. A sua solicitude pela participação íntima e vital do cristão no amor de Deus em Jesus Cristo não contribui com novas orientações para o estatuto científico da teologia. Mas, de modo mais do que decidido, o Abade de Clairvaux configura o teólogo com o contemplativo e com o místico. Só Jesus – insiste Bernardo diante dos complexos raciocínios dialécticos do seu tempo – só Jesus é ‘mel para os lábios, cântico para os ouvidos, júbilo para o coração (mel in ore, in aure melos, in corde iubilum)’. Vem precisamente daqui o título, a ele atribuído pela tradição, de Doctor mellifluus :  de facto, o seu louvor de Jesus Cristo ‘escorre como o mel’. Nas extenuantes batalhas entre nominalistas e realistas – duas correntes filosóficas da época – o Abade de Claraval não se cansa de repetir que um só nome conta, o de Jesus de Nazaré. ‘Todo o alimento da alma é árido’, confessa, ‘se não for aspergido com este óleo; insípido, se não for temperado com este sal. Aquilo que escreves para mim não tem sabor, se nisso eu não ler Jesus’. E conclui :  ‘Quando discutes ou falas, para mim nada tem sabor, se eu não ouvir ressoar nisso o nome de Jesus’ (Sermones in Cantica Canticorum XV, 6:  PL 183, 847). De facto, para Bernardo o verdadeiro conhecimento de Deus consiste na experiência pessoal, profunda de Jesus Cristo e do seu amor. E isto, queridos irmãos e irmãs, é válido para cada cristão :  a fé é antes de tudo encontro pessoal, íntimo com Jesus, é fazer a experiência da sua proximidade, da sua amizade, do seu amor, e só assim se aprende a conhecê-lo cada vez mais, a amá-lo e a segui-lo sempre mais. Que isto se verifique com cada um de nós!

Noutro célebre Sermão no domingo entre a oitava da Assunção, o santo Abade descreve em termos apaixonados a íntima participação de Maria no sacrifício redentor do Filho. ‘Ó santa Mãe – exclama ele – deveras uma espada trespassou a tua alma!... A violência da dor trespassou de tal modo a tua alma, que justamente podemos chamar-te mais do que mártir, porque em ti a participação na paixão do Filho superou muito em intensidade os sofrimentos físicos do martírio’ (14:  PL 183, 437-438). Bernardo não tem dúvidas :  ‘per Mariam ad Iesum’, através de Maria somos conduzidos até Jesus. Ele testemunha com clareza a subordinação de Maria a Jesus, segundo os fundamentos da mariologia tradicional. Mas o corpo do Sermone documenta também o lugar privilegiado da Virgem na economia da salvação, após a particularíssima participação da Mãe (compassio) no sacrifício do Filho. Não por acaso, um século e meio depois da morte de Bernardo, Dante Alighieri, no último canto da Divina Comédia, colocará nos lábios do ‘Doutor melífluo’ a sublime oração a Maria :  ‘Virgem Mãe, filha do teu Filho, / humilde e nobre mais do que qualquer criatura, / termo fixo do eterno conselho...’ (Paraíso 33, vv. 1 ss.).

Estas reflexões, características de um apaixonado por Jesus e Maria como São Bernardo, provocam ainda hoje de modo saudável não só os teólogos, mas todos os crentes. Por vezes pretende-se resolver as questões fundamentais sobre Deus, sobre o homem e sobre o mundo unicamente com as forças da razão. São Bernardo, ao contrário, solidamente fundado na Bíblia e nos Padres da Igreja, recorda-nos que sem uma fé profunda em Deus, alimentada pela oração e pela contemplação, por uma relação íntima com o Senhor, as nossas reflexões sobre os mistérios divinos correm o risco de se tornarem uma vã prática intelectual, e perdem a sua credibilidade. A teologia remete para a ‘ciência dos santos’, para a sua intuição dos mistérios do Deus vivo, para a sua sabedoria, dom do Espírito Santo, que se tornam ponto de referência do pensamento teológico. Juntamente com Bernardo de Claraval, também nós devemos reconhecer que o homem procura melhor e encontra mais facilmente Deus ‘com a oração do que com o debate’. No final, a figura mais verdadeira do teólogo e de cada evangelizador permanece a do Apóstolo João, que apoiou a sua cabeça no coração do Mestre.

Gostaria de concluir estas reflexões sobre São Bernardo com as invocações a Maria, que lemos numa sua bonita homilia. ‘Nos perigos, nas angústias, nas incertezas – diz ele – pensa em Maria, invoca Maria. Que ela nunca abandone os teus lábios, nem o teu coração; e para obteres a ajuda da sua oração, nunca esqueças o exemplo da sua vida. Se a segues, não te podes desviar; se lhe rezas, não te podes desesperar; se pensas nela não podes errar. Se ela te ampara, não cais; se ela te protege, nada temes; se ela te guia, não te cansas; se ela te é propícia, alcançarás a meta...’ (Hom. II super ‘Missus est’, 17:  PL 183, 70-71).’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/audiences/2009/documents/hf_ben-xvi_aud_20091021_po.html


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Uma mística do serviço : A vida contemplativa segundo São Bernardo (Capítulo 3 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

São Bernardo 


Os Dons do Espírito
Bernardo opera uma síntese, graças à sua concepção da obra do Espírito Santo (4). Ele exprime claramente sua doutrina da fecundidade espiritual, comentando a que é chamado o amor entre a esposa (aqui a alma individual) e o Esposo. Ele parte da citação do Cântico : ‘Como perfume derramado é o teu nome’ (Ct 1,3).
Que verdade da nossa vida interior o Espírito Santo nos faz conhecer por esse texto? Sem dúvida nenhuma, ele explica a experiência que por vezes nos vem de suas duas operações. Pela primeira, Ele nos consolidou, interiormente, nas virtudes requeridas para nossa salvação. Pela segunda, Ele nos dispõe também exteriormente concedendo-nos seus dons a fim de ganhar os outros para Deus. As virtudes, recebemo-las para nós, os dons para o nosso próximo. Por exemplo, a fé, a esperança e a caridade nos são dadas para nós mesmos : porque sem elas, não podemos ser salvos. Ao passo que a linguagem da ciência ou da sabedoria, o carisma da cura, a profecia e outros dons semelhantes, os quais podem nos faltar sem nenhum prejuízo para nossa salvação, nos são seguramente concedidos para a salvação de nossos próximos. Essas operações do Espírito Santo, das quais fazemos experiência em nós mesmos ou nos outros, chama-las-emos, se o quiserem, infusão e efusão, para que os nomes correspondam à realidade’ (SCt 18,1; cf Div 88).     
Este texto apresenta dois tipos de dons do Espírito, mas afirma ao mesmo tempo a prioridade de ‘virtudes’, isto é, de ‘potencialidades’ que nos são necessárias para nós mesmos e cuja ausência comprometeria nossa ação para o exterior : a fé, a esperança e a caridade. Em outros termos, Bernardo jamais colocará em pé de igualdade a ‘infusão’ e a ‘efusão’. A segunda não será válida, senão decorrendo da primeira. Mas permanece verdade que os dons do Espírito, feitos para serem postos a serviço dos outros, não temos o direito de guardá-los para nós mesmos. Trata-se de respeitar a natureza dos dons e de respeitá-los pelo que eles são.
Mas aqui é preciso se precaver de um lado, para não dar o que recebemos para nós mesmos, e de outro, para dar com generosidade. Reténs para ti mesmo o bem de teu próximo, quando, por exemplo, estás cheio de virtudes e dotado também exteriormente de ciência e de eloquência e, por medo ou talvez por preguiça ou por humildade indiscreta (falsa humildade), te fechas num silêncio inútil, até mesmo censurável, calando a boa palavra da qual muitos poderiam tirar proveito’ (SCt 18,2).
Bernardo vai do interior para o exterior. Frequentemente, é muito depressa que nos expandimos para o exterior. Ele apela para a idéia do tonel e do canal : o canal é apenas um lugar de passagem. Para si mesmo, ele não retém nada; o tonel é um recipiente onde as coisas amadurecem, decantam e transbordam somente quando já estão maduras. A vida espiritual tem necessidade dessa maturação : é preciso tempo, formação, instrução, sabedoria.
A sabedoria consiste em fazer de si esse tonel e não um canal. Um canal recebe a água e em seguida a derrama; o tonel, ao contrário, espera ficar cheio para comunicar sua superabundância, sem se prejudicar. (...) Verdadeiramente, na Igreja hoje, temos muitos canais e muito poucos tonéis’ (SCt 18,3).
A contemplação precede a ação. Esta é fruto daquela. Porque o amor é fecundo. Para Bernardo, a ação se aplica primeiramente à pregação.
Este amor é apaixonado. É ele que convém ao amigo do Esposo; (...) este amor satisfaz, aquece, ferve, expande-se enfim, com segurança, rompendo todos os diques (...). Que ele pregue, que carregue fruto’ (SCt 18,6).
Pode-se interpretar este texto de maneira puramente psicológica : quando se está apaixonado, comunica-se aos outros seu entusiasmo. Mas para Bernardo, o motivo da ação encontra sua origem no fato que Deus criou o homem para amar e para ser amado. O homem é feito para Deus. E Deus é amor. O escopo da ação, enfim, será Deus. Através de tudo isso que desejamos e tudo que fazemos pelo nosso próximo, por detrás de tudo, estão o amor de Deus mesmo. Nosso amor por Ele, consequência de seu amor por nós, Bernardo o diz em uma frase muito densa : ‘Deus é caridade e nada no mundo poderia satisfazer a criatura feita à imagem de Deus, a não ser esse Deus-caridade, que, somente ele, é maior que sua criatura’ (SCt 18,6).
Assim, todo contemplativo se torna missionário. É mesmo de boa vontade que o contemplativo interromperá sua oração para ser ativo e missionário. Mais ainda, seu desejo de levar os outros para Deus é o sinal de uma contemplação autêntica.
A contemplação verdadeira e casta tem isto de particular : uma vez que, violentamente, abrasou o espírito com o fogo divino, ela o cumula por vezes de um tão grande zelo e de um tão grande desejo de ganhar para Deus almas igualmente amantes, que interrompe de boa vontade o prazer da contemplação, pelo labor a pregação’ (SCt 57,9; cf. SCt 58,1.3).
Amar a Deus que é amor, é querer ser como Ele, isto é, querer verdadeiramente o bem para os outros. Não está aí uma autêntica paternidade que é também a dos contemplativos?
Para a esposa, ser arrastada pelo Esposo é receber d’Ele mesmo o desejo de ser arrastada, o desejo das boas obras, o desejo de produzir frutos para o Esposo. Porque, para ela, viver é o Esposo, e morrer é um ganho’ (SCt 58,1).
A primeira parte da frase exprime a dimensão contemplativa, a que consiste em acolher o desejo que Deus quer colocar em nós. A segunda parte também é clara : morrer para o Esposo é morrer dando-se aos outros. 
 
Fecundidade Eclesial
Bernardo dá duas condições para que o ministério do pregador seja fecundo – isto se aplica também hoje a todos os que têm a missão de testemunhar a fé em Cristo. Antes de tudo, estar maduro não por ambição pessoal, mas por ter recebido a missão de o fazer :
É, pois, para examinar (as almas e as igrejas), para corrigí-las, para instruí-las, para salvá-las que é convidada uma alma mais perfeita, supondo-se que tenha obtido este ministério, não à custa de reivindicações, mas pelo chamado de Deus, como Aarão’ (SCt 58,3).
Mas em seguida, é preciso ainda alguma coisa de mais interior, essa chama que nos impele para os outros.
Que é este convite, senão um certo aguilhão interior da caridade, que suavemente nos incita a ter zelo pela salvação de nossos irmãos, zelo pela beleza da casa de Deus, pelo crescimento de seus grãos e frutos da sua justiça, para o louvor e a glória de seu nome? Aquele que deve dirigir as almas ou se entregar, por causa de seu cargo, ao trabalho da pregação, cada vez que sentir em si mesmo o homem interior movido por tais sentimentos de piedade para com Deus, compreenderá sem dúvida possível que o Esposo está lá e que Ele o convida para suas vinhas’ (SCt 58,3).
Nada impede que aquele que é chamado a instruir os outros seja muitas vezes importunado, pois precisamente neste momento, ele quereria se nutrir espiritualmente a si mesmo.
Note-se o que acontece : a esposa pede uma coisa e recebe outra. Ela aspira a calma da contemplação e se lhe impõe o trabalho da pregação; ela tem sede da presença do Esposo e se alegra por gerar filhos para Ele e nutri-los’ (SCt 41,5).
O repouso contemplativo não é, pois, um absoluto. As necessidades do próximo podem nos eximir dele. ‘Com efeito, é bem preferível repousar e estar com Cristo. Mas é necessário sair do repouso para ganhar os homens que devem ser salvos’ (SCt 46,’).
Bernardo jamais separa as diferentes formas de vida possíveis. Para ele só há uma orientação contemplativa, na qual tudo o mais deve adequar-se. Desde que se encontre bem no seu lugar nesta vocação contemplativa fundamental, trata-se de receber seu lugar pessoal. Que isto possa causar dilaceramentos interiores, é certo. Mas é normal e inevitável. Vivemos sempre as duas facetas de uma única vocação.
O sentimento da alma é bem diferente, conforme ela frutifica pelo Verbo, ou usufrui do Verbo. No primeiro caso, sua atenção se volta para as necessidades do seu próximo; no segundo, ela é chamada pela doçura do Verbo’ (SCt 85,13).
O princípio será sempre a caridade, o que é ‘util’ para os outros : ‘Não procurarei minha vantagem pessoal, nem o que me interessa, mas o que o é para o maior número’ (SCt 52,7). A expressão volta frequentemente : é preciso viver para os outros, para ‘todos’ (cf. SCt 41,6). É sempre o interesse comum que tem a primazia : ‘O que alegra o coração de um só homem é bem diferente do que edifica a muitos’ (SCt 9,8).
Essa doutrina tem por consequência que Bernardo relativiza, de certo modo, a própria vocação monástica, o que não deixará de espantar alguns. Ele considera a vida para fora do mosteiro, frequentemente ‘melhor’ ou ‘mais viril’ : ‘Fazes bem em ser vigilante na guarda de ti mesmo; mas o que é útil a muitos age melhor e mais virilmente’ (SCt 12,9). Sem dúvida, nem sempre se viu essa dimensão do ensinamento de Bernardo, talvez porque se julgou a priori, indigno de um místico dar tanta importância ao engajamento pastoral. Uma ‘mística de esponsais’ parecia se bastar e ser quase incompatível com uma ‘mística de serviço’. Todavia, os textos de Bernardo estão aí, para o comprovar (5).
Para concluir, volto a uma de minhas idéias do início : deixar-se levar pela Palavra de Deus significa, em geral, viver na Igreja e a seu serviço. O cristão faz suas as necessidades da Igreja universal (Ep 141,1). O que tem a primazia sempre, antes de tudo e depois de tudo, é a caridade :
Arrasta-me após ti : eu te sigo com alegria; eu me rejubilo contigo, com mais alegria ainda. Se és bom, Senhor, para aqueles que te seguem, como não serás para os que se rejubilam em ti?’ (SCt 47,6).

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(4) Esta concepção será encontrada mais tarde em Ruysbroeck.

(5) Alguns autores (Cuthbert, Mieth) reconhecem-no e vêem nesta ‘idéia de fecundidade’ uma contribuição original de Bernardo à tradição agostiniana e gregoriana.

 

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Uma mística do serviço : A vida contemplativa segundo São Bernardo (Capítulo 2 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

São Bernardo   
 Ser útil aos outros
            Compreendemos agora em que sentido Bernardo fala da caridade como alguma coisa de ‘útil’. A utilidade tem certamente o sentido espiritual de agir no que se refere a Deus : amar o próximo é aproximá-lo de Deus. Mas não é indigno do Espírito ser muito prático. É nesse duplo sentido que devemos compreender a famosa frase, na Carta 11: ‘A caridade não procura jamais o que é útil para si, mas a utilidade de um grande número’ (Ep 11,4) (3).
            Já em São Paulo, que Bernardo citava aqui muito livremente, a caridade é concreta e prática :
            Em suma : quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus. Não sejais motivo de tropeço para ninguém – judeus, gregos ou a Igreja de Deus -, como também eu me esforço por agradar em tudo a todos, buscando não o que é vantajoso para mim, mas o que é vantajoso para o maior número de pessoas, a fim de que sejam salvas’ (1Cor 10,31-33).
            Eu diria : não somente prático, mas francamente diplomático; a caridade se esforça por re-encontrar o outro em seu próprio terreno e por isso está pronta a concessões.
            A importância da caridade em ato bem prova que a ‘vida ativa’ é sempre necessária em uma comunidade. Bernardo aplica a imagem de duas irmãs, Marta e Maria. Tanto a contemplação (Maria) como as obras (Marta), são formas da luz. Ambas luminosas, na medida em que são bem vividas. ‘Marta é mesmo a irmã de Maria. Ainda que a alma caia da luz da contemplação (...), ela se mantém na luz de uma atividade louvável’ (SCt 51,2).
            Bernardo jamais admitiu que os Abades renunciassem a seu cargo abacial para levar uma vida mais contemplativa. A seu amigo Oger, escreveu severamente : ‘Confessa sinceramente : julgaste que tua própria tranquilidade é mais importante que a utilidade da comunidade’ (Ep 87,3). E em uma outra carta : ‘Se é lícito a alguém preferir ao bem comum (utilitati communi) sua própria tranquilidade, quem pois poderá proclamar em verdade : Para mim, de fato, o viver é Cristo e o morrer, lucro?’ [Fl 1,21] (Ep 82,1). Mais conhecidas ainda são as advertências muito severas, dirigidas a um outro amigo, Guilherme de Saint-Thierry : ‘Infeliz de ti, se és superior sem ser útil, mas bem maior tua infelicidade se, por temor de ser superior, foges da ocasião de ser útil’ (Ep 86,2).
            É sempre por causa dessa estima da vida comunitária que Bernardo tem apreensões a respeito da vida eremítica : ‘Aquele que é fraco tem necessidade da comunidade. Mas aquele que é forte, é a comunidade que tem necessidade dele’ (cf. Ep 115,2). Sempre fico impressionado com esta definição que Bernardo dá do degrau mais elevado do amor espiritual. Ela toma toda sua força nos lábios de um místico :
            Afinal, nós amamos espiritualmente nosso espírito quando, por amor, consideramos aquilo que é útil a nossos irmãos como sendo mais importante até que nossas ocupações espirituais’ (Div 101). 
 
            Fraqueza e Força 
            A força da comunidade cristã apóia paradoxalmente sua energia na partilha das fraquezas de seus membros. Entendamo-nos bem. Não digo que uma multiplicidade de misérias faça uma fortaleza. Ela pode fazer desmoronar o castelo. Mas em regime cristão, a consciência de seus próprios limites faz com que se procure apoio alhures, sem se atribuir o poder e a força. O caminho obrigatório – não somente para nossa vida espiritual pessoal, mas também para a saúde comunitária – é através de suas próprias zonas de sombra.
            Mas para que vosso coração seja tocado de compaixão pela miséria dos outros, é preciso que primeiramente reconheçais a vossa própria, a fim de que encontreis o sentimento do próximo no vosso, e aprendais de vós mesmos de que maneira deveis socorrê-lo’ (Hum 6).
            Nisso Bernardo se une à grande tradição dos mestres espirituais que sempre fundamentaram a caridade verdadeira num conhecimento esclarecido de si mesmo. Afinal, é uma questão de equilíbrio. É preciso dar tempo a Deus, a si mesmo e aos outros.
            Será considerado perfeito todo homem cuja alma deixar transparecer uma harmoniosa e feliz convergência dessas três realidades : ele sabe gemer por si mesmo, exultar em Deus e ao mesmo tempo, ele está em condição de contribuir para o bem de seus próximos’ (SCt 57,11).
            Uma semelhante frase é típica do espírito de Bernardo : ele tem o cuidado de reunir os elementos diferentes em uma síntese equilibrada. Não se pode negligenciar nem o tempo dado a Deus, nem a atenção a si mesmo, nem o cuidado dos outros. Negligenciar uma dessas três coisas é fragilizar não só sua vida espiritual, mas também a comunidade em que se vive. Nós devemos aos outros não somente a atenção caridosa, mas ainda nosso engajamento pessoal na oração, bem como o cuidado de nós mesmos. Deus sabe quantos religiosos e religiosas pagaram caro suas negligências nestes domínios, e quantas comunidades acabaram por ficar em perigo pela falta de lucidez e de coragem para remediar os problemas daí resultantes. 
 
            Mística do Serviço
            Mas o equilíbrio perfeito não existe. As necessidades da caridade fraterna entram sempre em concorrência com a contemplação.
            Nesse sentido, nenhuma contemplação continua fácil nem de duração agradável; a exigência constrangedora e imperiosa do trabalho e do dever nos pressiona’ (SCt 58,1).
            Jó é a figura bíblica que testemunha o dilaceramento que o contemplativo ressente, quando se põe ao mesmo tempo a serviço dos irmãos.
            Parece que o bem-aventurado Jó sofria algo de semelhante a isto quando dizia : ‘Quando me deito, penso : Quando virá o dia? Ao levantar-me : Quando chegará a noite?’ Isto quer dizer : Se estou tranquilo, me censuro por negligenciar o trabalho. Se estou ocupado, me censuro também por perturbar minha tranquilidade. Vês que este santo homem é dolorosamente sacudido entre o fruto do trabalho e o sono da contemplação. Ainda que ele se aplique a obras boas, todavia, está sempre na iminência de se arrepender, como se fossem más. A todo momento ele procura, gemendo, a Vontade de Deus. Sem nenhuma dúvida, o único remédio ou refúgio na ocorrência é a oração e um gemido frequentemente dirigido a Deus, para que Ele se digne sem cesar mostrar-nos o que Ele quer que façamos, e a qual momento, e até que ponto’ (SCt 57,9).
            Notemos uma vez mais o equilíbrio na última frase. É preciso rezar não só para que Deus mostre sua Vontade, mas ainda para saber a qual momento é preciso fazê-la, enfim, em que medida, porque a impetuosidade denota frequentemente menos o fervor que a falta de discernimento.
            O serviço a prestar é sempre uma carga? Mas a pessoa é impelida para ele e até atraída – pelo amor. Bernardo tem uma bela expressão em sua Carta 48 : Gravor, sed trahor (Ep 48,3). Poder-se-ia traduzir livremente : ‘Isto me pesa, mas estou arrastado’ (subentendido pelo amor). O critério é sempre : será que faço isso por amor de Deus? Será que a esposa sai da contemplação por causa do Esposo? Se sim, com a esposa podemos dizer a respeito daqueles a quem servimos :
            Eles me pouparão não me poupando, e eu antes encontrarei meu repouso naquilo que eles tinham receio de me perturbar por suas necessidades. Eu farei o que desejam, enquanto eu puder, e é neles que servirei meu Deus, tanto tempo quanto viver, por uma cariade sem fingimento’ (SCt 52,7).
            É isso que Bernardo chamará em outro lugar : a oportuna inoportunitas, a oportuna inoportunidade (Div 93,2). É que não só o amor nos impele interiormente para o serviço, mas o Esposo tão procurado o faz também.
            Enquanto ela mostra o pequeno leito, Ele a chama para o campo; Ele a convida para o trabalho. Ele julga que nada será mais persuasivo para decidi-la ao combate que se propor a si mesmo, seja como exemplo, seja como recompensa desse combate’ (SCt 47,6).
            Conforme São Bernardo, a ‘mística dos esponsais’ não é oposta a uma ‘mística do serviço’. Há um impulso para o serviço que é a expressão exata de um alto grau de contemplação. O amor impele a ir ao encontro dos outros, a partilhar com eles o que se recebeu. A nível pessoal, a sequência é sempre : conversão, ascese do desejo, fecundidade. Em um contexto eclesial, deixar-se guiar pela Palavra de Deus significa que se vive na Igreja, que se vive com os outros, na Igreja, o que permite tornar-se por sua vez, esposa de Cristo, que a Igreja misteriosamente já é.
            É nesse sentido que se pode compreender como, durante séculos, a expressão ‘vida apostólica’ exprimiu o objetivo da vida contemplativa cenobítica : o fato de querer viver intensamente a vida das primeiras comunidades na partilha dos bens e da oração. Atualmente, a expressão significa mais a missão junto aos ‘outros’, isto é, os que não fazem parte de nossa comunidade no sentido estrito do termo. A própria comunidade está a serviço dos outros. Portanto, poder-se-ia dizer que, primeiramente a expressão ‘vida apóstólica’, definiria a comunidade ‘ad intra’; atualmente ela designa a relação que mantém a comunidade ‘ad extra’.

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(3)  Cf. RB 72,7 : ‘Ninguém procure aquilo que julga útil para si, mas principalmente, o que o é para o outro’. Portanto, estamos na perspectiva do capítulo sobre o Zelo Bom.