Mostrando postagens com marcador Palavra. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Palavra. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Natal: Deus se faz próximo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Antônio Ferreira, CMF

 

‘Enquanto os evangelhos de Lucas e Mateus detalham o nascimento de Jesus, o Evangelho de João nos apresenta uma perspectiva diferente. Ele se inicia antes da criação, revelando Jesus como a Palavra de Deus, que era Deus e estava com Deus desde o princípio. Ao longo dos séculos, Deus revelou-se na criação, nas suas alianças com o povo de Israel, em Moisés, e revelou-se nos profetas. Aqueles que acreditaram nessa revelação tornaram-se filhos e filhas de Deus. Segundo João, a revelação mais plena ocorre com a encarnação do Verbo, demonstrando o amor infinito de Deus e superando a lei mosaica.

Ao ecoar as primeiras palavras de Gênesis, ‘‘No princípio’ (1,1), João estabelece um paralelo entre os dois relatos, a criação original e a nova criação em Cristo. A encarnação do Verbo representa um novo ato criativo, em que Deus, em sua infinita misericórdia, decide habitar entre os seres humanos, inaugurando um novo momento na história da humanidade. A encarnação do Verbo é, portanto, o ponto culminante de toda a história da salvação.

Como em Gênesis, também aqui a luz é um elemento primordial ligado à vida e à superação das trevas. A luz, identificada com Cristo, representa a força salvadora de Deus, enquanto as trevas simbolizam o pecado e a morte. A oposição entre luz e trevas, presente em ambos os textos, adquire em João uma dimensão mais espiritual e teológica, simbolizando a força do bem sobre mal. Enquanto em Gênesis a escuridão é um estado da criação, em João ela representa as forças que se opõem à revelação divina. Em João, esses elementos são representantes de Cristo ou de seus oponentes. Assim como em Gênesis, a luz em João é sinônimo de vida e vitória sobre as trevas. 

O evangelista João nos apresenta um paradoxo : Jesus, a luz do mundo, esteve entre nós e, no entanto, não foi reconhecido. Essa falta de reconhecimento não se limita à ignorância, mas à rejeição consciente de sua mensagem. Ao dizer que ‘o mundo não o conheceu’, João afirma que a humanidade se colocou em oposição a Deus. A cruz de Cristo revela a responsabilidade de cada um diante desse amor rejeitado e, ao mesmo tempo, a universalidade do amor divino. Conhecer Jesus implica mais do que ter informações sobre Ele, significa acolher seu ensinamento e seguir seus passos. A cruz revela também que mesmo aqueles que rejeitaram a luz podem encontrar perdão e restauração em Deus.

O Natal celebra o mistério da encarnação : Deus se fez homem, partilhando nossa condição humana em todas as suas dimensões, exceto o pecado. A afirmação de que Deus se tornou humano representa uma revolução teológica radical, tanto para os judeus quanto para os romanos e gregos. A figura de Jesus, um líder humilde e itinerante, contrasta com as expectativas do Messias poderoso, guerreiro, comum na cultura judaica. Para os gregos, a ideia de um deus se tornar homem era incompreensível, desafiando suas concepções mitológicas. O Natal celebra essa verdade paradoxal : Deus, em sua infinita misericórdia, fez-se homem para compartilhar nossa condição humana e nos oferecer a salvação. É a celebração desse amor divino que se fez próximo.

No Natal, a luz divina irrompe nas trevas do mundo, revelando-nos o rosto de Deus criança. Nascido numa manjedoura, Ele nos convida a um novo nascimento, à renovação da esperança. Aquele que criou os Céus e a Terra se faz pequeno para que possamos acolhê-lo em nossos corações. Sua presença transforma nossas vidas, convidando-nos a construir um mundo mais justo e fraterno seguindo seu exemplo de amor e compaixão. Da manjedoura, Deus olha-nos com o rosto de uma criança, cheio de esperança e vitalidade, dizendo a nós ‘Quero crescer na tua família, na tua comunidade, na tua vida’. Deus se faz próximo.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/natal-deus-se-faz-proximo.html


 

domingo, 29 de setembro de 2024

Uma iniciação às Sagradas Escrituras

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
As palavras divinas colocam a conversão humana para que brilhe nas pessoas e no mundo as obras de paz e de amor, em vista do Reino de Deus.  (@ BAV Vat. lat. 39, f. 67v)

 *Artigo de Dom Vital Corbellini,

Bispo de Marabá, PA 


As Sagradas Escrituras são palavras de Deus que possuem valor eterno pois elas vêm do próprio Deus para a realidade humana. Muitas pessoas elaboraram estas Palavras e sendo inspiradas por Deus, pelo Espírito Santo, escreveram a respeito do mistério de Deus, da vida humana e de sua salvação. É fundamental dizer também que as palavras divinas têm por objetivo a realização do amor a Deus, ao próximo como a si mesmo (cfr. Mt 22,37-39), impulsionando à salvação do ser humano. Elas colocam a conversão humana para que brilhe nas pessoas e no mundo as obras de paz e de amor, em vista do Reino de Deus. Cassiodoro, século V, leigo romano que elaborou uma obra que visava ao povo a iniciação às Sagradas Escrituras [1] colocou pontos importantes em seu tempo sobre a introdução às Sagradas Escrituras. A seguir nós veremos alguns dados elaborados por esta pessoa tão influente no período da Igreja primitiva.

A falta de mestres das Sagradas Escrituras

Cassiodoro reconheceu na sua época a existência de muitos mestres das letras seculares nas escolas, mas que faltavam mestres públicos das Sagradas Escrituras, divinas, para que assim a difusão da Palavra de Deus fosse mais ampla possível na Igreja e no mundo [2]. Ele entrou em diálogo com o Papa, bispo de Roma, Agapito I (535-536) para que na cidade de Roma, as escolas cristãs recebessem mais pessoas, educadoras educadores ligados às Sagradas Escrituras em vista do estudo, conhecimento da Palavra de Deus, da mesma forma como tinha em Alexandria, no Egito e também em Antioquia, na Síria [3]

O reconhecimento do livro do Gênesis

O autor romano falou do reconhecimento do livro do Gênesis como o primeiro livro das Sagradas Escrituras, onde se colocam os relatos da criação de todas as criaturas, sobretudo do ser humano, percebido como a imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,126), o paraíso, o pecado, o dilúvio e a aliança do Senhor para nunca mais destruir a natureza humana (cf. Gn 1-8). Ele lembrou São Basílio em relação a criação humana e os seres dados para a glória divina e humana. Ele mencionou também Santo Agostinho na disputa contra os maniqueus devido às idéias dualistas do deus do bem e do deus do mal que o bispo de Hipona, superou-as ao afirmar que o bem vem somente de Deus Criador e o mal proveio pela desobediência humana [4].

Uma palavra sobre os profetas 

Cassiodoro teve presentes os profetas, como anunciadores da vinda do Senhor Jesus neste mundo. Tudo estava em profunda ligação com a chegada do Messias. Ele comentou São Jerônimo que proporcionou claríssimas explicações sobre a generosidade do Senhor Jesus pela encarnação do Verbo neste mundo para nos salvar [5]. Ele também disse que o capítulo dezoito de Isaias é uma referência aberta aos mistérios de Cristo e da Igreja [6]. O autor romano disse que São Jerônimo comentou os profetas, classificando-os como maiores por serem longos os seus relatos, e os chamou de menores pela brevidade de seus livros [7].

Em relação ao saltério 

Cassiodoro falou que se alguns padres como Santo Hilário, Santo Ambrósio trataram alguns salmos, no entanto Santo Agostinho fez comentários de todos eles em grandes obras, escrevendo sobre a graça do Senhor, a sua atuação amorosa no mundo [8]. Para o autor romano os salmos são cento e cinqüenta de modo que eles são divididos em três secções como forma de honra à Santíssima Trindade e também para pedir ajuda, saúde, a graça do amor de Deus em cada ser humano [9].

Em relação aos evangelhos

O autor romano colocou a importância dos quatro evangelhos que a Igreja desde o inicio fechou o cânone sendo palavra de vida eterna de Jesus Nazareno, o enviado do Pai. São Jerônimo explicou as características particulares de cada evangelho de uma forma diligente para perceber a unidade dos livros. Ele colocou que diversos autores como Santo Hilário, Santo Ambrósio, Eusébio de Cesaréia, Santo Agostinho realizaram comentários muito importantes sobre os evangelhos [10] colocando como palavra plena de Deus revelada por Jesus Cristo em comunhão com o Espírito Santo.

A respeito das cartas dos apóstolos

Cassiodoro falou a respeito das cartas dos apóstolos para dar visibilidade a missão da Igreja antiga junto aos judeus e junto aos pagãos, após Pentecostes. O docetismo, o pelagianismo estavam ainda presentes, heresias que negavam a humanidade de Jesus, e o pecado original de modo que era preciso reforçar as cartas dos apóstolos, sobretudo aquelas de São Paulo onde se colocavam a humanidade e a divindade do Verbo na Pessoa de Jesus Cristo e o pecado original transmitido para toda a humanidade e através do batismo vem superado este pecado, ainda que persistam as tendências ao pecado, mas a graça de Cristo Jesus é superior ao pecado [11].

Em relação aos Atos dos Apóstolos e do livro do Apocalipse

Foram diversos os comentários a respeito dos Atos dos Apóstolos para colocar a presença do Espírito Santo sobre os Apóstolos na Igreja primitiva no anúncio da ressurreição de Jesus Cristo e na pregação evangélica nos diversos povos. Cassiodoro disse também que foi São Jerônimo quem comentou mais a respeito do livro do Apocalipse, conduzindo os leitores à uma contemplação superior e discernir com a mente os acontecimentos da Igreja primitiva e a realidade social do Império romano [12].

Os quatro Concílios reconhecidos 

Cassiodoro teve presentes que os Concílios de Nicéia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431), Calcedônia (451) reconheceram os livros das Sagradas Escrituras como livros inspirados, de modo que eram lidos nas comunidades cristãs. As suas leituras davam luzes para as comunidades viverem a Palavra de Deus para assim enfrentarem as heresias, as hostilidades do tempo e a viverem o amor a Deus, ao próximo como a si mesmo (cfr. Mt 22,37-39) [13].

Os dois Testamentos segundo São Jerônimo 

Cassiodoro afirmou que São Jerônimo fez toda a tradução dos livros sagrados em latim, tendo presentes os livros do Antigo Testamento, sendo o Testamento primeiro da Palavra de Deus e o Novo Testamento, o Testamento segundo, realizado e assumido por Jesus Cristo, a Palavra do Pai. Os dois Testamentos são Palavra de Deus, pois Deus é o seu devido autor, proveniente de sua boca e tudo realizado em Jesus Cristo, o Messias, o Envidado do Pai. Segundo o autor romano São Jerônimo ordenou toda a sua tradução à Autoridade divina de modo a tornar a Palavra de Deus mais próxima do povo por causa da língua vernácula, o latim [14].

Esta introdução às Sagradas Escrituras feita por Cassiodoro ajude-nos na leitura da Palavra de Deus neste mês bíblico, fazer a compreensão em vista da conversão e testemunho de vida de todos nós, povo de Deus e ministros ordenados tendo presente o dom divino da salvação, dado por Deus Uno e Trino ao ser humano, pela realização de obras de caridade neste mundo.’ 

  

[1] Cfr. Casiodoro. Iniciación a las Sagradas Escrituras. Madrid: Editorial Ciudad Nueva, 1998.
[2] Cfr. Idem, pg. 67.
[3] Cfr. Ibidem, pg.  67-68.
[4] Cr. Ibidem, pgs. 81-82.
[5] Cfr. Ibidem, pg. 95.
[6] Cfr. Ibidem, pg. 96.
[7] Cfr. Ibidem, pg. 97.
[8] Cfr. Ibidem, pg. 99.
[9] Cfr. Ibidem, pg. 101.
[10] Cfr. Ibidem, pgs. 111-112.
[11] Cfr. Ibidem, pgs. 113-120.
[12] Cfr. Ibidem, pg. 121.
[13] Cfr. Ibidem, pg. 127.
[14] Cfr. Ibidem, pgs. 129-131.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2024-09/uma-iniciacao-as-sagradas-escrituras-dom-vital-corbellini.html

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

O silêncio como oração

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Francisco Thallys Rodrigues

 

‘Vivemos num mundo marcado por agitação, barulho e um fluxo frenético de informações e falatórios no qual o silêncio se torna cada vez mais incomum. O silêncio torna-se cada vez difícil, sobretudo, quando ele conduz ao encontro consigo mesmo e com Deus. Foge-se dele por meio de diálogos intermináveis, manifestações e barulhos constantes. Mesmo as orações se desenvolvem numa contínua verbalização. Quando olhamos a experiência das escrituras, nos deparamos com profundas experiências com Deus por meio do silêncio. É o caso de Elias, Jesus e Maria. Por conseguinte, o silêncio é fonte do encontro com Deus, torna-se oração enquanto une o coração do orante ao coração de Deus.

Em nossa sociedade da informação, a ‘palavra’ perdeu sua força e eficácia, apresenta-se carente de sentido, de significado. A liquidez de nossa sociedade tem conduzido a relações voláteis e frágeis que se rompem com a mesma velocidade que se estabelecem. Neste contexto, o silêncio, como oração que nos conecta a Deus, pode ser um caminho de integração de nossa humanidade e recuperação da força da palavra.

Quando olhamos o conjunto das Escrituras, algumas experiências se destacam no que concerne ao silêncio. Elias procura a presença de Deus em diferentes experiências : no fogo, na tempestade, no terremoto e na ventania, mas Deus não está ali. É na brisa suave que Elias encontra-se com Deus, na ausência de barulho e de fala (1 Rs 19,10-15). O silêncio é espaço de meditação e acolhida da Palavra no coração da Virgem Maria (Lc 2,19). Do mesmo modo em diversos momentos da vida e da atuação de Jesus o encontramos em silêncio. Portanto, o silêncio torna-se espaço da contemplação de Deus, meditação dos mistérios da vida e do sagrado, mesmo que este ocorra nos momentos de maior sofrimento e angústia.

No desenvolvimento e expansão da fé cristã, desde a experiência dos primeiros monges cristãos, que iam para os desertos e florestas, o silêncio se tornava espaço de encontro consigo mesmo e com Deus. Charles de Foucault encontrou Deus na profunda experiência de contemplação e silêncio, assim como Francisco de Assis, ele passava horas a fio diante do Santíssimo Sacramento em silêncio. Esta experiência foi vivida por inúmeros santos e santas, homens e mulheres que descobriram o silêncio como oração, fonte do encontro com Deus. O papa Francisco recorda que ‘parte-se do silêncio e chega-se à caridade para com os outros’. A experiência profunda de encontro com Deus sempre nos conduz a nos lançarmos ao próximo.

O silêncio não deve ser imposto como mecanismo de defesa ou fuga diante de forças autoritárias que se impõem e exigem o silêncio. Ao longo da história, diferentes grupos e forças impuseram o silêncio como parte da submissão ao seu pensamento ou modelo de sociedade. Este não é o tipo de silêncio ao qual nos referimos. Martin Luther King alertava para o problema deste tipo de silêncio : ‘Eu não me preocupo com o grito dos maus, mas com o silêncio dos bons’. O silêncio deve ser uma opção pessoal para todo aquele que deseja mergulhar na profundidade de si mesmo, na descoberta das belezas vida e no encontro com Deus. Por isso, ele só tem sentido enquanto livremente assumido.

O silêncio abre espaço para o encontro consigo mesmo, para a consciência de nossa própria finitude e fragilidade. Nele podemos contemplar nossa vida, meditando nossas atitudes e gestos, percebendo a presença amorosa de Deus que nos acompanha. Ele pode ser o primeiro passo num processo de autoconhecimento, que abre espaço para encontrar a presença de Deus em todas as coisas. Presença serena e suave, perceptível somente quando nos tornamos capazes de contemplar a beleza em si mesma, para além dos desejos de apropriação advindos da busca pelo conhecimento. Contemplar a beleza da vida que renasce a cada dia, da criança que sorri sem motivos, dos idosos que continuam a amar, da esperança que teima em persistir.

Nossas liturgias e orações comunitárias têm sido marcadas pelo excesso de palavras. Pronunciadas, proclamadas, gritadas, as palavras são utilizadas demasiadamente, pouco guardando espaço para o silêncio. Mesmo quando as orientações o sugerem, pouco se efetiva realmente. Há um desejo desenfreado por verbalizar tudo que se passa no interior do coração sem que haja uma preocupação por descobrir as moções do Espírito que conduzem a tais atitudes. Outras vezes elas se tornam repetições pronunciadas sem paixão, sem percepção do mistério que nos circunda. Na medida em que se toma consciência da presença de Deus, em todos os momentos e situações da vida, pode-se viver o silêncio como oração. Isto exige sensibilidade e abertura para o próximo e para os apelos de Deus.

Não esqueçamos que no silêncio podemos descobrir o essencial da vida como bem recorda Dietrich Bonhoeffer : ‘No silêncio está inserido um maravilhoso poder de observação, de clarificação, de concentração sobre as coisas essenciais’. O silêncio nos conecta com o profundo de nós mesmos no qual descobrimos a escrita de Deus em nossa vida, sua teografia, que nos acompanha antes mesmo de nosso nascimento. O silêncio é a linguagem de Deus no qual Ele se revela como Deus amor que tudo cria para o bem.

Portanto, mais do que em outros tempos, torna-se necessário descobrir o valor e importância do silêncio livremente assumido. Primeiro como possibilidade de encontro com o profundo de nós mesmos : nossas alegrias, medos, angústias, desejos, anseios e opções. Depois, como espaço do encontro com Deus e sua Palavra que nos transforma a fim de vivermos autenticamente como testemunhas de seu amor.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1538515/2021/09/o-silencio-como-oracao/

sexta-feira, 30 de abril de 2021

A voz da Palavra: um breve ensaio sobre a sacramentalidade da voz

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Daniel Reis


‘Concorde ao princípio da Encarnação, onde Deus se fez acessível à nossa humanidade para nos salvar, o escopo de todo e qualquer sacramento é comunicar-nos essa salvação por Ele oferecida através de sinais sensíveis à nossa condição humana. Um desses sinais sacramentais, componente da estrutura simbólico-ritual da Liturgia, é a voz.

A voz é o elemento sensível que embala a Palavra de Deus proclamada, cantada e rezada. Como som que é, toda voz aspira a tornar-se palavra, a ganhar forma e sentido, contribuindo ou prejudicando para a manifestação do conteúdo da fala ou do significado das palavras. Como afirmava Santo Agostinho em um de seus sermões : ‘Suprime a palavra; o que se torna a voz? Esvaziada de sentido, é apenas um ruído. A voz sem palavras ressoa ao ouvido, mas não alimenta o coração.’ (Sermo 293).

Especialmente para a fé cristã, a voz deve estar sempre a serviço da Palavra divina e, com ela, em perfeita simbiose, a fim de ultrapassar seu caráter informativo e alcançar o seu condão performativo, ou seja, sua força transformadora, animadora, libertadora e salvadora. Com o auxílio da voz, pode-se potencializar a eficácia sacramental da proclamação da Palavra de Deus, para que ela seja, efetivamente, Palavra da Salvação.

Nesse sentido, voltando ao sermão do bispo de Hipona, encontramos : ‘O som da voz te faz entender a palavra; e quando te fez entendê-la, esse som desaparece, mas a palavra que ele te transmitiu permanece em teu coração’. Assim, no âmbito pastoral-ministerial, deve-se dar a máxima importância aos gêneros literários da Sagrada Escritura, bem como aos gêneros musicais e oracionais (suplicante, laudatório, penitencial, etc.), para que através de um adequado revestimento vocal das leituras, da música e das orações, as vozes contribuam para uma fecunda comunicação da Palavra à assembleia litúrgica, fazendo com que, mesmo depois de passada a voz, permaneça gravada no coração do ouvinte a Palavra que não passa (cf. Mt 24,35).

A responsabilidade da qualidade comunicacional da Palavra pela voz não recai somente sobre o aspecto vocal, uma vez que dependerá também de uma boa e dócil acolhida por parte dos interlocutores. E aqui reside uma grande dificuldade : o Povo de Deus, de ontem e de hoje, ‘é um povo de cabeça dura’ (Ex 32,9), de ‘dura cerviz e incircuncisos de coração e ouvido’ (At 7,51). Por isso o tema da ‘escuta’ nas Sagradas Escrituras é frequente, seja para denunciar a ‘surdez’, seja para exaltar a audição atenta.

No Monte Sinai, Deus instrui Moisés : ‘Se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos.’ (Ex 19,5). Assim, por diversas vezes, Moisés, a mando do Senhor, dirige-se ao povo clamando : ‘Escuta ('Shemá'), ó Israel, as normas que eu hoje proclamo aos vossos ouvidos!’ (Dt 5,1. 6,3. 4,1). O profeta Jeremias se revolta com os ‘ouvidos fechados’ do povo, dizendo : ‘A quem falarei, para que ouça? Eis que seus ouvidos estão incircuncisos e não podem ouvir!’ (Jr 6,10). Por outro lado, o profeta Samuel, na narrativa de sua vocação, responde confiante : ‘Fala, Senhor, que o teu servo te escuta.’ (1Sm 3,10). Neemias, narrando uma autêntica Liturgia da Palavra em seu tempo, detalha a atitude da assembleia ali formada : ‘[...] Então o sacerdote Esdras leu o livro da Lei de Moisés desde a aurora até o meio-dia, na presença dos homens, das mulheres e dos que tinham o uso da razão. E todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da Lei.’ (Ne 8,3).

Nos evangelhos, a temática também está ‘na boca’ de Jesus. Quando avisado da chegada de sua família, responde a seus discípulos : ‘Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática!’ (Lc 8,21). Anunciando as bem-aventuranças, apresenta a maior delas : ‘Felizes, antes, os que ouvem a Palavra de Deus e a observam.’ (Lc 11,28). Sobre a maior prudência humana, diz : ‘Todo aquele que ouve as minhas palavras e as põe em prática são como o homem prudente que constrói sua casa sobre a rocha.’ (Mt 7, 24). Sobre nossa pertença e filiação a Deus, Jesus exclama : ‘Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus.’ (Jo 8,47). Temos também o que parece ser um bordão utilizado por Jesus : ‘Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!’ (Mc 4,23; Mt 11,15).

Ainda no Novo Testamento, encontramos no episódio da Transfiguração a voz do Pai que sai da nuvem mandando ouvir o Filho muito amado (cf. Mc 9,7). Também Paulo, em sua carta aos romanos, onde assevera : ‘A fé vem por se ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a Palavra de Cristo.’ (Rm 10,17).

O lugar por excelência onde escutamos a voz de Deus, na Palavra que é Cristo, falada sob o fôlego do Espírito, é a Liturgia. Assim afirmou o papa Bento XVI : ‘Considerando a Igreja como 'casa da Palavra', deve-se antes de tudo dar atenção à Liturgia Sagrada. Esta constitui, efetivamente, o âmbito privilegiado onde Deus nos fala no momento presente da nossa vida : fala hoje ao seu povo, que escuta e responde.’ (Verbum Domini, nº 52).

A Liturgia, assim, é o especial e primeiro locus theologicus, porque nela escutamos, sacramentalmente, o próprio Cristo se dirigir a nós, ‘pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura’, bem como ‘quando a Igreja reza e canta’ (Sacrosanctum Concilium, nº 7). É nela que podemos e devemos escancarar os ouvidos do coração para escutarmos a voz do nosso amado (cf. Ct 2,8), a voz do nosso Pastor (cf, Jo 10,3-4), para que a Palavra se faça carne em nós, e assim possamos anunciá-la ao mundo, reverberando nele o amor do Verbo.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1513321/2021/04/a-voz-da-palavra-um-breve-ensaio-sobre-a-sacramentalidade-da-voz/ 

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Missa : liturgia da Palavra

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


 INCENSE,MASS
*Artigo do Padre Bruno Roberto Rossi



A estrutura dessa parte da Missa compõe-se, desde o século IV, de três leituras nos Domingos e Solenidades, ao passo que durante a semana só há duas. A Primeira Leitura é, via de regra, tirada do Antigo Testamento e está intimamente ligada à temática do Evangelho. Evidencia o ensinamento de Santo Agostinho de Hipona († 430) : ‘No Antigo Testamento, está latente o Novo e no Novo está patente o Antigo’ (Quaest. in Hept. 2,73: PL 34, 623). Ocorre, no entanto, uma exceção no Tempo Pascal. Nele, a Primeira Leitura é extraída dos Atos dos Apóstolos ou do Apocalipse, pois esses livros retratam, de modo vivo, o tempo imediato à Páscoa.

Segunda Leitura é sempre extraída do Novo Testamento e vai sendo lida ao longo dos anos sem um necessário nexo com a Primeira Leitura e com o Evangelho. Daí, caso seja preciso, em um Domingo, suprimir uma das leituras, suprima-se a segunda. Todavia, não é viável fazê-lo sem justa razão, dado que toda a Sagrada Escritura deseja nos conduzir a um assunto comum : a salvação que Deus oferece aos seres humanos por meio de Jesus Cristo. Já nos dias de Solenidades ou Festas, as três leituras se prendem ao tema do dia celebrado.

Evangelho dominical se divide em três ciclos : anos A (Mateus), B (Marcos) e C (Lucas), ao passo que São João não tem um ano específico, pois fica reservado para os períodos solenes tais como o fim da Quaresma, a Páscoa ou outras Solenidades. Nos dias de semana, os trechos dos Evangelhos são lidos em sequência, de modo que em um só ano lemos Mateus, Marcos e Lucas. Já as leituras são tiradas de dois ciclos : Ano ímpar e Ano par, de maneira que, se o católico participa da Santa Missa todos os dias, lê, em três anos, quase toda a Bíblia.

Entre a Primeira e a Segunda Leitura, ambas terminadas com a proclamação ‘Palavra do Senhor!’, há um Salmo de resposta para melhor assimilação do conteúdo lido. Após a Leitura, pode-se observar um tempo de silêncio meditativo. Caso o Salmo seja cantado, deve sê-lo de tal modo que toda a assembleia o acompanhe, claramente, no refrão. Depois da Segunda Leitura, tem-se a Aclamação ao Evangelho, normalmente com o Aleluia, salvo no tempo da Quaresma.

Após o Evangelho, prevê-se uma Homilia – curta, objetiva e bem preparada – capaz de ser aplicada à vida dos fiéis em geral e levar à oração, à meditação e à conversão. Embora seja praxe aos domingos, nos dias de semana também deve haver uma breve reflexão sobre a Palavra de Deus. O próprio Senhor Jesus, ao terminar uma leitura na sinagoga, se pôs a explicá-la : ‘Hoje se cumpriu essa passagem da Escritura’ (Lc 4,21). Da parte do padre são condições indispensáveis para uma boa homilia a oração, a meditação pessoal, bem como o estudo de boas obras que o ajudem a adquirir conteúdo para a pregação. Em algumas ocasiões, a Homilia pode ser substituída pelo Sermão. Este se dá quando apenas um tema é abordado : a ressurreição dos mortos em Missa de corpo presente ou de sétimo dia, ou a vida de um santo em sua Festa etc.

Uma vez ouvida a Palavra de Deus e sua explicação, passa-se ao Credo (Creio) que desde o século XII está presente na Liturgia da Igreja em todo o mundo e visa dar provas da nossa reta fé. Normalmente, se rezam duas fórmulas do Credo : o mais comum e sintético, chamado de Apostólico, ou, então, o mais longo e explicativo, chamado de Niceno-Constantinopolitano, pois foi elaborado nos Concílios de Niceia I (325) e Constantinopla I (381), respectivamente.

Vem, a seguir, a Oração da Comunidade. É um costume antigo interceder pelo próximo, pela Igreja, pelos governantes etc. (cf. 1Tm 2,1-2; S. Policarpo de Esmirna Aos Filipenses 12,3 e São Justino na Apologia 67,4s).’


Fonte :  

sábado, 8 de setembro de 2018

Encontrar o noivo!

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 A bíblia é a gramática ou enciclopédia do povo de Deus, que, de modo correto, quer orientar homens e mulheres, na diversidade de dons, talentos, carismas e funções.
*Artigo do Padre Geovane Saraiva,
Pároco de Santo Afonso de Fortaleza, CE,
e vice-presidente da Previdência Sacerdotal


‘A proposta da Igreja no Brasil é a de viver na alegre esperança do nosso compromisso batismal, haurindo essa proposta da fonte inesgotável da Bíblia, livro inspirado e inspirador. Ela é a gramática ou enciclopédia do povo de Deus, que, de modo correto, quer orientar homens e mulheres, na diversidade de dons, talentos, carismas e funções. A Bíblia foi escrita, num passado longínquo, por pessoas que viveram contextos diferentes do nosso. Mas Deus quer de nós, seus filhos, astúcia, convencendo-nos do que realmente importa, a Palavra de Deus, que é sempre atual, ‘viva e eficaz, mais cortante que qualquer espada de dois gumes, capaz de penetrar, a ponto de dividir alma e espírito’ (cf. Hb 4, 12).

Ouvintes e praticantes da Palavra de Deus, pelos elementos a nos favorecer, no âmbito da vida como um todo, aproximam-se sempre e cada vez mais de Deus, que deseja de nós, cristãos, uma fé sólida e uma religião, não de aparências, mas apoiada, de verdade, no Livro Sagrado, consciente de que ‘toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça’ (2 Tim 3, 16).

Que neste mês de setembro nos voltemos para as figuras dos apóstolos, pilares ou colunas da Igreja, os quais, alegoricamente, nos atentam para o sentido de uma melhor compreensão do edifício da nossa fé : a própria Igreja. É importante guardar a história da humanidade, a partir da arquitetura antiga, quando as construções eram feitas com pedras. Uma pedra muito singular era talhada no tamanho e formato correto para ser utilizada nas construções, recebendo o maior peso do edifício, para, assim, sustentá-lo. Ela era conhecida como pedra angular, em que, de modo seguro, ficava definida a colocação das outras pedras, alinhando toda a construção.

O convite do nosso bom Deus, pela voz da Igreja, é para pensarmos no valor e importância da Palavra de Deus, livro do amor, alma e vida, que nos ilumina e conduz ao momento do grande encontro com o noivo. Como é maravilhoso carregar, na mente e no coração, o acabamento do mundo, na imagem de Jesus! Ele é o noivo da humanidade a aguardar sua noiva - a Igreja -, que caminha na sua direção, não desatenta e distraída, mas na fé e na esperança, vestida com a roupa apropriada para o alegre, feliz e inaudito encontro. Assim seja!’.


Fonte :

segunda-feira, 7 de maio de 2018

A voz do silêncio


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Vivemos em uma época em que a pobreza, ou seja, a falta de Deus, não é mais percebida como uma falta.
*Artigo de Roberto Mela,
teólogo


‘O exegeta cardeal passeia no jardim da palavra humana, palavra fraca e frágil, para a qual foi confiada a revelação da Palavra, atestada na Bíblia. Esta última é, justamente, O grande código no qual bebeu a cultura do mundo ocidental e - em menor escala, e ‘secularizada’ - até os dias de hoje. A palavra é arrebatadora, poderosa, especialmente aquela poética. A palavra bíblica não é apenas epifania da revelação, mas diafania (Teihard De Chardin), transparência do divino. Especialmente a poesia abraça em si os ‘espaços em branco’ que são igualmente e talvez mais expressivos do que as palavras ditas para expressar a profundidade da realidade cantada.

A fraqueza da palavra, especialmente aquela judaica dotada apenas de 5.740 palavras, tende à expansão máxima de sentido através da musicalidade das suas expressões. Dôdî lî waānî ledôdî, ‘Eu sou do meu Amado, e o meu Amado é meu’, declara a Amada no Cântico dos Cânticos.

A poesia canta o êxtase do amor, da primavera que passa como um sopro de vento nas estações de Israel. Canta a tragédia dos sofrimentos, como aquela de Jerusalém prostrada no chão da poeira do exílio, de cuja boca escapa apenas um sussurro.

Elias no Monte Horeb só ouvirá ‘a voz de um silêncio sutil’, um silêncio que fala, porque não é um silêncio ‘negro’ - ausência de ruídos e de palavras, muito temido pelos jovens de hoje - mas um ‘silêncio branco’ mais expressivo do que o ressoar da palavra.

YHWH, o nome do Deus de Israel, o máximo do conteúdo da experiência religiosa judaica, é impronunciável, é proibido pronunciá-lo e deve ser substituído por outro nome, 'Adonay'.

A Bíblia é o alfabeto colorido da esperança, na qual mergulharam seus pincéis durante séculos os pintores’(Marc Chagall). Na paleta artística a Palavra pode ser atualizada (Paul Gauguin, Visão depois do sermão : depois da homilia, as mulheres bretãs reveem na praça de seu vilarejo a luta do anjo com Jacó no Vau do Jaboque); a palavra pode ser deformada (Carl Gustav Jung, Resposta a Jó : Deus fica curioso sobre o homem que protesta contra sua inquestionável vontade e envia Jesus à Terra para ouvir os argumentos de Jó, Jesus compreende que Jó está certo e contra os momentos da ira de Deus, desde aquele momento em diante, a levantar-se contra o Todo-Poderoso não será apenas Jó, mas também Jesus); a Palavra também pode ser transfigurada (Wolfgang Amadeus Mozart, nas Vésperas Solenes do Confessor K339 comenta o curto Salmo 116 [117] fazendo subir a soprano cada vez mais até ‘cair’ na assembleia do coro que canta com confiança agora ‘cristã’ o Glória; as palavras hésed e 'emet' do salmo, que expressam relação amorosa e não tanto misericordia e veritas da Vulgata de Jerônimo, encontram aqui expressão exaltada e fascinante).

Wozu Dichter, Por que os poetas’, questionava-se Friedrich Hölderlin, ‘por que os poetas em tempo de pobreza?’. Vivemos em uma época em que a pobreza, ou seja, a falta de Deus, não é mais percebida como uma falta’, comentava Heidegger em Os caminhos da floresta. Em um tempo de ouvidos obstruídos por urtigas as palavras dos profetas devem irromper ‘pelos portões da noite, traçando feridas de palavras nos campos do hábito’ (Nelly Sachs, The Prophets). A palavra deve encontrar ouvidos que a saibam ouvir e acolher.

Hoje, o poder da palavra dos profetas e dos poetasparece insignificante, mas ela é mais necessária do que o pão(Ravasi, p. 42), e realiza-se assim a profecia de Am 8:11 ‘...enviarei a fome a toda esta terra... não fome de pão, nem sede de água, mas fome e sede de ouvir as palavras do Senhor’.’


IHU/ Settimana News - Tradução : Luisa Rabolini


Fonte :

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Mês da Bíblia : anunciar o Evangelho e dar a própria vida

Resultado de imagem para mes da bíblia
*Artigo de Dom Eurico dos Santos Veloso,
Arcebispo Emérito de Juiz de Fora, MG


‘Setembro vem chegando florido e, para nós católicos, é o mês dedicado à Bíblia. Mais algumas pessoas me indagaram porque um mês para a Bíblia? A finalidade  deste mês temático é para que povo católico se aproxime mais das Sagradas Escrituras, no cotidiano e no trabalho a leia e medite, a conheça e aprofunde os seus conhecimentos bíblicos, promovendo cursos bíblicos, etc...

São Pedro ensinou que : ‘Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação pessoal porque jamais uma profecia foi proferida por efeito de uma vontade humana. Homens inspirados pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus’ (2 Pd 1,20-21). A Carta aos Hebreus nos lembra de que que ‘a palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois gumes, e atinge até à divisão da alma e do corpo, das juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração’ (Hb 4,12).

O mês da Bíblia de 2017 é dedicado ao estudo da Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses. Tem como fundamento anunciar o Evangelho e dar a própria vida. Tema : para que n´Ele nossos povos tenham vida – Primeira Carta aos Tessalonicenses. O tema do mês da Bíblia é ‘Ser Discípulos Missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida’, em sintonia com o Documento de Aparecida.

Lema : Anunciar o Evangelho e doar a própria vida (cf. 1Ts 2, 8).

Uma sugestão seria a realização de quatro encontros comunitários neste mês. Pode-se acessar o site https://www.paulinas.org.br/loja/anunciar-o-evangelho-e-doar-a-propria-vida e baixar gratuitamente o subsídio. ‘Este fascículo tem como objetivo proporcionar aos grupos de reflexão e círculos bíblicos um encontro pessoal e comunitário com a Palavra, a partir da Primeira Carta de Paulo aos Tessalonicenses. O subsídio contém quatro encontros precedidos por um texto preparatório sobre o texto bíblico abordado.  O primeiro encontro reflete sobre a identidade cristã, que é revelada a partir da fé, da esperança e do amor, virtudes que sustentam a vida pessoal e da comunidade (1Ts 1,2-10). O tema da edificação do trabalho como dignidade para a vida (1Ts 4,9-12) é abordado no segundo encontro. A vinda do Senhor e a crença na ressurreição são os temas do terceiro encontro, elementos que revelam a esperança cristã (1Ts 4,13-5,11). O quarto encontro retrata a comunidade cristã, vivida na alegria, em oração e no discernimento (1Ts 5,12-22). O último encontro é reservado para a celebração de encerramento, fazendo memória dos quatro encontros anteriores’.

No estudo da Palavra de Deus, na sua leitura, na sua ‘lectio divina’ Deus escuta aos homens e mulheres e responde às suas inquietudes. Nesse sentido é sempre bom lembrar o que nos ensina a Igreja : ‘Neste diálogo com Deus, compreendemo-nos a nós mesmos e encontramos resposta para as perguntas mais profundas que habitam no nosso coração. De fato, a Palavra de Deus não se contrapõe ao homem, nem mortifica os seus anseios verdadeiros; pelo contrário, ilumina-os, purifica-os e realiza-os. Como é importante, para o nosso tempo, descobrir que só Deus responde à sede que está no coração de cada homem! Infelizmente na nossa época, sobretudo no Ocidente, difundiu-se a ideia de que Deus é alheio à vida e aos problemas do homem; pior ainda, de que a sua presença pode até ser uma ameaça à autonomia humana.

Na realidade, toda a economia da salvação mostra-nos que Deus fala e intervém na história a favor do homem e da sua salvação integral. Por conseguinte é decisivo, do ponto de vista pastoral, apresentar a Palavra de Deus na sua capacidade de dialogar com os problemas que o homem deve enfrentar na vida diária. Jesus apresenta-Se-nos precisamente como Aquele que veio para que pudéssemos ter a vida em abundância (cf. Jo 10, 10). Por isso, devemos fazer todo o esforço para mostrar a Palavra de Deus precisamente como abertura aos próprios problemas, como resposta às próprias perguntas, uma dilatação dos próprios valores e, conjuntamente, uma satisfação das próprias aspirações. A pastoral da Igreja deve ilustrar claramente como Deus ouve a necessidade do homem e o seu apelo. São Boaventura afirma no Breviloquium : «O fruto da Sagrada Escritura não é um fruto qualquer, mas a plenitude da felicidade eterna. De facto, a Sagrada Escritura é precisamente o livro no qual estão escritas palavras de vida eterna, porque não só acreditamos mas também possuímos a vida eterna, em que veremos, amaremos e serão realizados todos os nossos desejos’(cf. Verbum Domini, 23).

Vivamos o mês da Bíblia anunciando o Evangelho, testemunhando a Palavra de Salvação com a coerência de nossa vida iluminada sempre pelas escrituras sagradas. Que Deus assim nos ajude!’


Fonte :

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Papa Francisco : Mensagem para a Quaresma 2017

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



‘...Texto integral da Mensagem do Santo Padre Francisco para a Quaresma 2017, sobre o tema ‘A Palavra é um dom. O outro é um dom’ :

Amados irmãos e irmãs!

A Quaresma é um novo começo, uma estrada que leva a um destino seguro : a Páscoa de Ressurreição, a vitória de Cristo sobre a morte. E este tempo não cessa de nos dirigir um forte convite à conversão : o cristão é chamado a voltar para Deus «de todo o coração» (Jl 2, 12), não se contentando com uma vida medíocre, mas crescendo na amizade do Senhor. Jesus é o amigo fiel que nunca nos abandona, pois, mesmo quando pecamos, espera pacientemente pelo nosso regresso a Ele e, com esta espera, manifesta a sua vontade de perdão (cf. Homilia na Santa Missa, 8 de janeiro de 2016).

A Quaresma é o momento favorável para intensificarmos a vida espiritual através dos meios santos que a Igreja nos propõe : o jejum, a oração e a esmola. Na base de tudo isto, porém, está a Palavra de Deus, que somos convidados a ouvir e meditar com maior assiduidade neste tempo. Aqui queria deter-me, em particular, na parábola do homem rico e do pobre Lázaro (cf. Lc 16, 19-31). Deixemo-nos inspirar por esta página tão significativa, que nos dá a chave para compreender como temos de agir para alcançarmos a verdadeira felicidade e a vida eterna, incitando-nos a uma sincera conversão.


1.      O outro é um dom

A parábola inicia com a apresentação dos dois personagens principais, mas quem aparece descrito de forma mais detalhada é o pobre : encontra-se numa condição desesperada e sem forças para se solevar, jaz à porta do rico na esperança de comer as migalhas que caem da mesa dele, tem o corpo coberto de chagas, que os cães vêm lamber (cf. vv. 20-21). Enfim, o quadro é sombrio, com o homem degradado e humilhado.

A cena revela-se ainda mais dramática, quando se considera que o pobre se chama Lázaro, um nome muito promissor pois significa, literalmente, «Deus ajuda». Não se trata duma pessoa anônima; antes, tem traços muito concretos e aparece como um indivíduo a quem podemos atribuir uma história pessoal. Enquanto Lázaro é como que invisível para o rico, a nossos olhos aparece como um ser conhecido e quase de família, torna-se um rosto; e, como tal, é um dom, uma riqueza inestimável, um ser querido, amado, recordado por Deus, apesar da sua condição concreta ser a duma escória humana (cf. Homilia na Santa Missa, 8 de janeiro de 2016).

Lázaro ensina-nos que o outro é um dom. A justa relação com as pessoas consiste em reconhecer, com gratidão, o seu valor. O próprio pobre à porta do rico não é um empecilho fastidioso, mas um apelo a converter-se e mudar de vida. O primeiro convite que nos faz esta parábola é o de abrir a porta do nosso coração ao outro, porque cada pessoa é um dom, seja ela o nosso vizinho ou o pobre desconhecido. A Quaresma é um tempo propício para abrir a porta a cada necessitado e nele reconhecer o rosto de Cristo. Cada um de nós encontra-o no próprio caminho. Cada vida que se cruza conosco é um dom e merece aceitação, respeito, amor. A Palavra de Deus ajuda-nos a abrir os olhos para acolher a vida e amá-la, sobretudo quando é frágil. Mas, para se poder fazer isto, é necessário tomar a sério também aquilo que o Evangelho nos revela a propósito do homem rico.


2.     O pecado cega-nos

A parábola põe em evidência, sem piedade, as contradições em que vive o rico (cf. v. 19). Este personagem, ao contrário do pobre Lázaro, não tem um nome, é qualificado apenas como «rico». A sua opulência manifesta-se nas roupas, de um luxo exagerado, que usa. De facto, a púrpura era muito apreciada, mais do que a prata e o ouro, e por isso se reservava para os deuses (cf. Jr 10, 9) e os reis (cf. Jz 8, 26). O linho fino era um linho especial que ajudava a conferir à posição da pessoa um caráter quase sagrado. Assim, a riqueza deste homem é excessiva, inclusive porque exibida habitualmente : «Fazia todos os dias esplêndidos banquetes» (v. 19). Entrevê-se nele, dramaticamente, a corrupção do pecado, que se realiza em três momentos sucessivos : o amor ao dinheiro, a vaidade e a soberba (cf. Homilia na Santa Missa, 20 de setembro de 2013).

O apóstolo Paulo diz que «a raiz de todos os males é a ganância do dinheiro» (1 Tm 6, 10). Esta é o motivo principal da corrupção e uma fonte de invejas, contendas e suspeitas. O dinheiro pode chegar a dominar-nos até ao ponto de se tornar um ídolo tirânico (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 55). Em vez de instrumento ao nosso dispor para fazer o bem e exercer a solidariedade com os outros, o dinheiro pode-nos subjugar, a nós e ao mundo inteiro, numa lógica egoísta que não deixa espaço ao amor e dificulta a paz.

Depois, a parábola mostra-nos que a ganância do rico fá-lo vaidoso. A sua personalidade vive de aparências, fazendo ver aos outros aquilo que se pode permitir. Mas a aparência serve de máscara para o seu vazio interior. A sua vida está prisioneira da exterioridade, da dimensão mais superficial e efémera da existência (cf. ibid., 62).

O degrau mais baixo desta deterioração moral é a soberba. O homem veste-se como se fosse um rei, simula a posição dum deus, esquecendo-se que é um simples mortal. Para o homem corrompido pelo amor das riquezas, nada mais existe além do próprio eu e, por isso, as pessoas que o rodeiam não caiem sob a alçada do seu olhar. Assim o fruto do apego ao dinheiro é uma espécie de cegueira : o rico não vê o pobre esfomeado, chagado e prostrado na sua humilhação.

Olhando para esta figura, compreende-se por que motivo o Evangelho é tão claro ao condenar o amor ao dinheiro : «Ninguém pode servir a dois senhores : ou não gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (Mt 6, 24).


3.     A Palavra é um dom

O Evangelho do homem rico e do pobre Lázaro ajuda a prepararmo-nos bem para a Páscoa que se aproxima. A liturgia de Quarta-Feira de Cinzas convida-nos a viver uma experiência semelhante à que faz de forma tão dramática o rico. Quando impõe as cinzas sobre a cabeça, o sacerdote repete estas palavras : «Lembra-te, homem, que és pó da terra e à terra hás de voltar». De fato, tanto o rico como o pobre morrem, e a parte principal da parábola desenrola-se no Além. Dum momento para o outro, os dois personagens descobrem que nós «nada trouxemos ao mundo e nada podemos levar dele» (1 Tm 6, 7).

Também o nosso olhar se abre para o Além, onde o rico tece um longo diálogo com Abraão, a quem trata por «pai» (Lc 16, 24.27), dando mostras de fazer parte do povo de Deus. Este detalhe torna ainda mais contraditória a sua vida, porque até agora nada se disse da sua relação com Deus. Com efeito, na sua vida, não havia lugar para Deus, sendo ele mesmo o seu único deus.

Só no meio dos tormentos do Além é que o rico reconhece Lázaro e queria que o pobre aliviasse os seus sofrimentos com um pouco de água. Os gestos solicitados a Lázaro são semelhantes aos que o rico poderia ter feito, mas nunca fez. Abraão, porém, explica-lhe : «Recebeste os teus bens na vida, enquanto Lázaro recebeu somente males. Agora, ele é consolado, enquanto tu és atormentado» (v. 25). No Além, restabelece-se uma certa equidade, e os males da vida são contrabalançados pelo bem.

Mas a parábola continua, apresentando uma mensagem para todos os cristãos. De facto o rico, que ainda tem irmãos vivos, pede a Abraão que mande Lázaro avisá-los; mas Abraão respondeu : «Têm Moisés e os Profetas; que os oiçam» (v. 29). E, à sucessiva objeção do rico, acrescenta : «Se não dão ouvidos a Moisés e aos Profetas, tão-pouco se deixarão convencer, se alguém ressuscitar dentre os mortos» (v. 31).

Deste modo se patenteia o verdadeiro problema do rico : a raiz dos seus males é não dar ouvidos à Palavra de Deus; isto levou-o a deixar de amar a Deus e, consequentemente, a desprezar o próximo. A Palavra de Deus é uma força viva, capaz de suscitar a conversão no coração dos homens e orientar de novo a pessoa para Deus. Fechar o coração ao dom de Deus que fala, tem como consequência fechar o coração ao dom do irmão.

Amados irmãos e irmãs, a Quaresma é o tempo favorável para nos renovarmos, encontrando Cristo vivo na sua Palavra, nos Sacramentos e no próximo. O Senhor – que, nos quarenta dias passados no deserto, venceu as ciladas do Tentador – indica-nos o caminho a seguir. Que o Espírito Santo nos guie na realização dum verdadeiro caminho de conversão, para redescobrirmos o dom da Palavra de Deus, sermos purificados do pecado que nos cega e servirmos Cristo presente nos irmãos necessitados. Encorajo todos os fiéis a expressar esta renovação espiritual, inclusive participando nas Campanhas de Quaresma que muitos organismos eclesiais, em várias partes do mundo, promovem para fazer crescer a cultura do encontro na única família humana. Rezemos uns pelos outros para que, participando na vitória de Cristo, saibamos abrir as nossas portas ao frágil e ao pobre. Então poderemos viver e testemunhar em plenitude a alegria da Páscoa.

Vaticano, 18 de outubro de 2016.

Festa do Evangelista São Lucas

FRANCISCO’


Fonte :