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sábado, 14 de dezembro de 2024

A Ética do Cuidado

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Robson Ribeiro de Oliveira Castro Chaves

 

O cuidado com a vida surge da consciência de sua fragilidade, constituindo-se em um imperativo ético essencial para a preservação e promoção da existência humana. Sem o cuidado, a vida não se desdobra plenamente em seu potencial, tampouco alcança sua missão. O cuidado, portanto, não pode ser visto apenas como uma prática isolada, mas como parte de uma ética integral que se preocupa com a preservação da dignidade e da humanidade em sua totalidade.

Nesta realidade encontra-se a necessidade de se debater racionalmente sobre as formas mais eficazes de proteger e amparar a vida. A ética, como campo da filosofia, oferece as bases para essa discussão, que se desenvolve por meio de princípios racionais, mas que também perpassa a dimensão afetiva e espiritual. Assim, o cuidado pode ser compreendido não apenas como um ato, mas como uma virtude que deve orientar as ações humanas em direção ao bem comum.

A ética cristã, especialmente, desempenha um papel crucial na formação dos sistemas de vida no Ocidente, alicerçando-se em fontes como a Bíblia, a Tradição, e o magistério da Igreja. Ela é parte de uma construção histórica e comunitária, que tem como centro a pessoa de Jesus Cristo e seu evangelho. Este evangelho, ao mesmo tempo que oferece uma visão escatológica da vida, também oferece diretrizes práticas de conduta que se desdobram em formas concretas de comportamento moral e espiritual.

Nesse sentido, a ética cristã coloca a vida no centro de sua preocupação, inspirada no mandamento do amor, que exige que se cuide do próximo como de si mesmo (Mt 22,39). O amor ao próximo, expressão máxima do cuidado, não é apenas um sentimento, mas uma ação concreta que visa a salvaguarda da vida em todas as suas expressões. A partir dessa inspiração, a ética cristã propõe uma conduta de solidariedade, de justiça e de cuidado integral, em que a vida é defendida em todas as suas fases, desde a concepção até a morte natural.

A construção de uma conduta autêntica, que leve à humanização do ser, requer um compromisso ético com o cuidado, mas também com a transformação das estruturas sociais que geram injustiça, desigualdade e exclusão. A ética cristã não é uma ética de mera conformidade com regras morais abstratas, mas um compromisso dinâmico com a promoção da dignidade humana, refletida na ação em prol dos mais vulneráveis e marginalizados.

Diante dos desafios, somos chamados a participar do processo de reinvenção do cotidiano. Para tanto, é necessário ter cuidado com a vida, respeitar o próximo e, principalmente, as gerações.

Para tanto, só será possível uma real mudança se mudarmos a nossa conduta ética e moral, pois uma conduta moral duvidosa, sem apreço à vida, nos leva a deixar de vivenciar os melhores momentos e, acima de tudo, desrespeitar aqueles que sofrem com algum problema e não darmos a devida importância ao sofrimento das pessoas.  Por isso, ter esperança, ou esperançar, é ter iniciativa, é ir ao encontro, é buscar ouvir os que mais precisam.

É preciso, urgentemente, se fazer ouvir e articular o maior crescimento da consciência humana sobre o que é ser humano. A forma como se trata o tema ainda é um tabu. Durante séculos de nossa história, por razões religiosas, morais e culturais, falar do tema do suicídio era algo proibido e, principalmente, um pecado, por esta razão, ainda temos medo e/ou certa vergonha de comentar sobre o assunto.

De fato, ao falar desta realidade, estamos inseridos na sociedade que vive o problema de forma global e não se deixa abrir ao debate consciente. O tabu sobre a questão do suicídio perdeu a força diante dos inúmeros casos de problemas oriundos da pandemia. Hoje, frente à realidade, é urgente refletir sobre o bem-estar do próximo e não apenas o nosso. É a partir desta concepção que devemos observar a realidade sem receios e entender como tratar o outro, principalmente na escuta enquanto membro da sociedade e no período pandêmico que vivemos e estamos, ainda vivendo.

É preciso cultivar o caminho ético, sem preconceitos e comentários maldosos. Que a nossa conduta moral seja pautada por regras que devem ser respeitadas por cada um. Para tanto, é preciso se comprometer com a cultura do encontro e do diálogo para que possamos nos comprometer com a vida de cada um e ser mais solidários com a dor e a realidade do outro.

Assim, dotados dessa responsabilidade é urgente pensar que os projetos de formação da educação para o humanismo solidário têm por foco principal a ação consciente de cada um na construção de uma Educação para o humanismo solidário e que haja uma verdadeira inclusão de todos nesta realidade. O tema do mês de setembro é uma forma de falar com respeito diante da realidade do suicídio.

Nesse contexto, precisamos observar o caminho que seguimos e os exemplos que podemos dar em nossa realidade. Entre eles temos que alimentar o desejo de uma sociedade mais humana e exercitar o amor ao próximo por meio de gestos de solidariedade.

Devemos seguir o exemplo de Jesus : sua ética, seu comportamento, seu caráter, seu modo de ser e de agir. Ele assumiu uma conduta autêntica em uma sociedade contrária a tudo que ele pregava. Ele veio transformar o mundo, a começar pela sociedade de sua época. Assim, tratar o próximo com respeito é fazer valer o amor criador de Deus e sua proposta para o ser humano : ’O que fizer ao menor dos meus irmãos, a mim o fazeis’. (Mt 25,40). Por isso, cuidar do outro, escutá-lo e fazer um processo de encontro é a base das nossas relações.

Por fim, o caminho para uma conduta mais autêntica passa pela integração entre o cuidado e a ética. A consciência da fragilidade da vida leva à necessidade de uma responsabilidade maior com o outro e com o meio em que vivemos. Assim, propõe-se uma ética do cuidado que não apenas responde às urgências imediatas, mas que se alicerça em valores perenes de respeito, empatia e justiça, construindo, assim, uma sociedade mais humana e compassiva.

Essa ética do cuidado, inspirada no cristianismo, se expande para abarcar todas as dimensões da existência humana, desde as relações interpessoais até as preocupações globais com a ecologia e a justiça social. É um chamado à conversão ética, na qual o ser humano é convidado a assumir um papel ativo na construção de um mundo mais justo e solidário, onde o cuidado pela vida, em todas as suas formas, seja o princípio norteador das ações individuais e coletivas.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2024-12/etica-cuidado.html

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Sessenta bispos do Brasil escrevem carta contra Bolsonaro

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Mirticeli Medeiros,

jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras

credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé

 

‘A uma semana do segundo turno das eleições presidenciais, que acontece no próximo domingo, dia 30, parte da hierarquia católica resolveu se manifestar. Dessa vez, para se declararem publicamente contra o atual presidente da República, Jair Bolsonaro. Os prelados dizem que a motivação para a publicação do documento ‘está na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz’. Os bispos refutam as práticas adotadas por Bolsonaro, mostrando que a postura do atual mandatário da República não condiz com os 10 mandamentos bíblicos.

Por medo de represálias por parte dos apoiadores do candidato à reeleição, os bispos resolveram não assinar o texto. Portanto, é um documento original, mas redigido de maneira anônima.

Nossa equipe de reportagem teve acesso à carta por meio de um dos bispos redatores, que não quis se identificar, haja vista a onda de violência que tem se registrado em alguns lugares do Brasil durante missas e eventos religiosos. Eles têm medo de que, em suas dioceses, os fundamentalistas atentem contra sua integridade física.

‘Não cabe neutralidade quando se trata de decidir entre dois projetos de Brasil : um democrático e outro autoritário’, enfatizam.

Sem usar meias palavras, os bispos também rechaçam o terrorismo eleitoral praticado por centros culturais, padres e influencers católicos contra os eleitores que não apoiam o atual governo.

‘O chefe do governo e seus apoiadores, principalmente políticos e religiosos, abusaram do nome de Deus para legitimar seus atos e ainda o usam para fins eleitorais. O uso do nome de Deus em vão é desrespeito do segundo mandamento’, completam.

O slogan da campanha de Bolsonaro, usado pelo presidente em 2018, também foi criticado pelo grupo de prelados.

‘Enquanto dizia ‘Deus acima de tudo’, o presidente ofendia mulheres, debochava de pessoas que morriam asfixiadas, além de não demonstrar compaixão alguma com as quase 700 mil vidas perdidas para a Covid-19 e com as 33 milhões de pessoas famintas em seu país.

A política do armamento, também defendida pelo atual governo, também foi mencionada na carta.

‘Os discursos e medidas que visam armar todas as pessoas e eliminar os opositores estão em contradição com o 5 mandamento, que diz ‘não matarás’, quanto com a Doutrina Social da Igreja, que propõe o desarmamento e diz que ‘o enorme aumento das armas representa uma ameaça grave para a estabilidade e a paz’ (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 508).

Os autores do documento, que se apresentam como ‘bispos do diálogo pelo Reino’, encerram lançando um apelo ao povo brasileiro, e explicando que não se trata, dada a urgência da situação, de abraçar um projeto político, mas de uma escolha ética.

‘A Igreja não tem partido, nem nunca terá, porém ela tem um lado, e sempre terá : o lado da justiça e da paz, da verdade e da solidariedade, do amor e da igualdade, da liberdade religiosa e do Estado Laico, da inclusão social e do bem viver para todos. [...] Nossa motivação é ética e não decorre do seguimento de um líder político, nem de preferências pessoais, mas vem da fidelidade ao Evangelho de Jesus’, concluem.

Veja a carta completa  :

A GRAVIDADE DO SEGUNDO TURNO DAS ELEIÇÕES 2022

Irmãos e irmãs,

Somos bispos da Igreja Católica de várias regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e em plena comunhão com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB que, no exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz. Lideramos a escrita de uma primeira Carta ao Povo de Deus, em julho de 2020. Diante da gravidade do momento atual, nos dirigimos novamente a vocês.

O segundo turno das eleições presidenciais de 2022 nos coloca diante de um dramático desafio. Devemos escolher, de maneira consciente e serena, pois não cabe neutralidade quando se trata de decidir sobre dois projetos de Brasil, um democrático e outro autoritário; um comprometido com a defesa da vida, a partir dos empobrecidos, outro comprometido com a ‘economia que mata’ (Papa Francisco, A Alegria do Evangelho, 53); um que cuida da educação, saúde, trabalho, alimentação, cultura, outro que menospreza as políticas públicas, porque despreza os pobres. Os dois candidatos já governaram o Brasil e deram resultados diferentes para o povo e para a natureza, os quais podemos analisar.

Iluminados pelas exigências sociais e políticas de nossa fé cristã e da Doutrina Social da Igreja Católica, precisamos falar de forma clara e direta sobre o que realmente está em jogo neste momento. Jesus nos mandou ser ‘luz do mundo’ e a luz não deve ficar escondida (Mt 5,15).

Somos testemunhas de que o atual Governo, que busca a reeleição, virou as costas para a população mais carente, principalmente no tempo da pandemia. Apenas às vésperas da eleição, lançou um programa temporário de auxílio aos necessitados. A 59ª Assembleia Geral da CNBB constatou ‘os alarmantes descuidos com a Terra, a violência latente, explícita e crescente, potencializada pela flexibilização da posse e porte de armas […]. Entre outros aspectos destes tempos, estão o desemprego e a falta de acesso à educação de qualidade para todos. A fome é certamente o mais cruel e criminoso deles, pois a alimentação é um direito inalienável’ (Mensagem da CNBB ao Povo Brasileiro sobre o Momento Atual). A vida não é prioridade para este governo.

O chefe de Governo e seus apoiadores, principalmente políticos e religiosos, abusaram do nome de Deus para legitimar seus atos e ainda o usam para fins eleitorais. O uso do nome de Deus em vão é um desrespeito ao 2º mandamento. O abuso da religião para fins eleitoreiros foi condenado em nota oficial da presidência da CNBB (11/10/2022), para a qual ‘a manipulação religiosa sempre desvirtua os valores do Evangelho e tira o foco dos reais problemas que necessitam ser debatidos e enfrentados em nosso Brasil’.

Enquanto dizia ‘Deus acima de tudo’, o Presidente ofendia as mulheres, debochava de pessoas que morriam asfixiadas, além de não demonstrar compaixão alguma com as quase 700 mil vidas perdidas para a covid-19 e com os 33 milhões de pessoas famintas em seu país. Lembramos que o Brasil havia saído do mapa da fome em 2014, por acerto dos programas sociais de governos anteriores. Na prática, esse apelo a Deus é mentiroso, pois não cumpre o que Jesus apresentou como o maior dos mandamentos : amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo (Mt 22, 37). Quem diz que ama a Deus, mas odeia o seu irmão é ‘mentiroso’ (1Jo 4,20).

Os discursos e as medidas que visam armar todas as pessoas e eliminar os opositores estão em contradição tanto com o 5º mandamento, que diz ‘não matarás’, quanto com a Doutrina Social da Igreja, que propõe o desarmamento e diz que ‘o enorme aumento das armas representa uma ameaça grave para a estabilidade e a paz’ (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 508).

Vivemos quatro anos sob o reinado da mentira, do sigilo e das informações falsas. As fake news (notícias falsas veiculadas como se fossem verdades) se tornaram a forma ‘oficial’ de comunicação do Governo com o povo. Isso fere o 8º mandamento, de não levantar falso testemunho, mas mostra também quem é o verdadeiro ‘senhor’ dos que, perversamente, se dedicam a espalhar falsidades e ocultar informações de interesse público. Jesus diz que o Diabo é o pai da mentira (Jo 8, 44), enquanto Ele é o ‘caminho, a verdade e a vida’ (Jo 14,6).

Mensagem ao Povo Brasileiro, da 59ª Assembleia Geral da CNBB, alertou-nos, também, de que ‘nossa jovem democracia precisa ser protegida, por meio de amplo pacto nacional’. No entanto, o atual governo e os parlamentares que o apoiam ameaçam modificar a composição do Supremo Tribunal Federal para criar uma maioria de apoio aos seus atos. O controle dos poderes Legislativo e Judiciário sempre foi o passo determinante para a implantação das ditaturas no mundo.

Os cristãos têm capacidade para analisar qual dos dois projetos em disputa está mais próximo dos princípios humanistas e da ecologia integral. Basta analisar com dados e números e perguntar : qual dos candidatos concorrentes valorizou mais a saúde, a educação e a superação da pobreza e da miséria e qual retirou verbas do SUS, da educação e acabou com programas sociais? Quem cuidou da natureza, principalmente, da Amazônia e quem incentivou a queima das florestas, o tráfico ilegal de madeiras e o garimpo em terras indígenas?

Não se trata de uma disputa religiosa, nem de mera opção partidária e, tampouco, de escolher o candidato perfeito, mas de uma decisão sobre o futuro de nosso país, da democracia e do povo. A Igreja não tem partido, nem nunca terá, porém ela tem lado, e sempre terá : o lado da justiça e da paz, da verdade e da solidariedade, do amor e da igualdade, da liberdade religiosa e do Estado laico, da inclusão social e do bem viver para todos. Por isso, seus ministros não podem deixar de se posicionar, quando se trata de defender a vida do ser humano e da natureza. Nossa motivação é ética e não decorre do seguimento de um líder político, nem de preferências pessoais, mas vem da fidelidade ao Evangelho de Jesus, à Doutrina Social da Igreja e ao magistério profético do Papa Francisco.

Deus abençoe o povo brasileiro e o Espírito Santo de sabedoria e verdade ilumine nossas mentes e corações, na hora de votarmos nesse segundo turno das eleições de 2022. Vejamos Jesus no rosto de cada pessoa, especialmente dos pobres que sofrem e não em autoridades humanas que os manipulam em nome de um projeto ideológico de poder político e econômico.

 

Em 24 de outubro de 2022, Memória de Santo Antônio Maria Claret, bispo.

 

Bispos do Diálogo pelo Reino

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1591954

domingo, 7 de agosto de 2022

Política e força moral

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

 

‘O ano eleitoral de 2022 precisa incluir a importante tarefa de olhar o conjunto da comunidade política : não se pode considerar somente o Poder Executivo Federal. A indispensável conscientização política neste momento pede, dos cidadãos, essa tarefa - pois também é especialmente importante o conjunto de cargos eletivos que compõem as assembleias legislativas e o Congresso Nacional. A definição do voto não pode se pautar ainda, simplesmente, pelas polarizações ou ‘paixões’ costumeiras, sob pena de inadequado discernimento para escolhas tão importantes. Para efetivar uma política melhor, alicerçada no bem, sem submissão a interesses cartoriais e oligárquicos, capaz de ajudar na reconstrução da sociedade brasileira nos parâmetros da justiça e da paz, é fundamental escolher pessoas com envergadura moral e competência política. Neste horizonte, deve-se também observar e identificar aqueles que têm compromisso explícito, claro e comprovado com o sistema democrático.

A fidelidade aos princípios democráticos define a autoridade e a força moral dos candidatos. A Igreja Católica, em sua Doutrina Social, sublinha a importância da democracia, que assegura a participação dos cidadãos na vida política, a possibilidade de os governados elegerem e controlarem seus governantes. Por isso mesmo, neste ano eleitoral, sejam incansavelmente reafirmados os valores da democracia, irradiando uma luz que se acende na escuridão. Ao promoverem os valores democráticos, reconheça-se que uma autêntica democracia, conforme ensina a Doutrina Social da Igreja, é bem mais que a inegociável dimensão do respeito formal às regras das instituições. Contempla a convicta aceitação dos princípios essenciais ao fortalecimento do sistema democrático, que incluem o respeito à dignidade da pessoa humana e de seus direitos, a promoção do bem comum como fim e critério regulador das atividades políticas. E nesse horizonte, deve-se considerar a indissociável vinculação entre os campos social e ambiental, nos ricos parâmetros da ecologia integral, magistralmente apresentados pelo Papa Francisco na Carta Encíclica Laudato Si’ - sobre o cuidado com a casa comum.

Se não há fidelidade aos valores democráticos não se pode merecer a confiança do voto, pois desrespeita-se o verdadeiro sentido da democracia, comprometendo a sua estabilidade. O relativismo ético, que desconsidera critérios universais, a exemplo dos valores democráticos, é sério risco para o pleno exercício da cidadania. Seja, pois, observada a trajetória de cada candidato, para identificar se há fidelidade a entendimentos indispensáveis para o exercício da representação política. Quem assume a responsabilidade de ocupar cargos nas instâncias do poder, a partir do processo eleitoral, não pode subestimar a dimensão moral de sua representação. Isto significa, em primeiro lugar, que os políticos precisam ser realmente sensíveis às necessidades da população, procurando soluções para problemas sociais e ambientais.

O exercício do poder político, quando não é orientado a partir de adequados princípios morais, contribui para gerar deformações no sistema democrático – a exemplo da corrupção política, das manipulações interesseiras, da defesa de grupos oligárquicos, traindo os valores da justiça social. A carência de respeito à dimensão moral explica porque há, na atualidade, uma crescente desconfiança relacionada à política. Fundamental é buscar uma reação, ‘encantar’ a política definindo os quadros que exercerão a representatividade dos cidadãos nas instâncias do poder, observando um aspecto que vai além de simpatias, favores recebidos ou paixões cegas : a corrida eleitoral pede a avaliação da dimensão moral de candidatos para efetivar escolhas capazes de contribuir com o fortalecimento da democracia, essencial à promoção de uma ‘primavera’ de justiça social.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/artigos/?id=10077

sexta-feira, 29 de junho de 2018

O dilema do bom samaritano


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Crianças migrantes acampadas em frente à entrada do porto de San Ysidro, na divisa de Tijuana, em 30 de abril de 2018.
Crianças migrantes acampadas em frente à entrada do porto de San Ysidro,
na divisa de Tijuana, em 30 de abril de 2018

*Artigo de Adrian Pabst,
professor de política na Universidade de Kent 


Ética das Políticas de Migração

‘Esta semana o governo alemão liderado por Angela Merkel pode entrar em colapso devido a suas diferenças com seu ministro do Interior, Horst Seehofer, sobre a política de migração. Nos EUA, a administração de Donald Trump está separando as crianças de pais que foram pegos cruzando a fronteira mexicana sem permissão em nome de sua abordagem de ‘tolerância zero’ à imigração ilegal.

A imigração em massa e a deportação em massa talvez seja a grande questão moral de nossos tempos. O drama humano que traz este tipo de imigração levanta questões fundamentais sobre como chegar a um acordo justo e equitativo entre os países e comunidades de onde os refugiados ou migrantes se saem e os países e comunidades que os hospedam. As necessidades, direitos e obrigações dos refugiados ou migrantes podem ser equilibrados com as necessidades, direitos e obrigações dos cidadãos e residentes? Não há respostas simples para essas perguntas. O debate político e a formulação de políticas tendem a ser dominados por duas ideias de justiça. Cada um está em condições de pobreza.

A ideia de justiça é estritamente utilitária, na verdade reduzindo o que é a solução mais justa para o que é mais rentável, ou a melhor relação custo-benefício. Na campanha do referendo da UE, por exemplo, a discussão sobre a imigração foi quase inteiramente travada sobre seus alegados custos ou benefícios para a economia como um todo. O impacto de sair ou permanecer nos salários de certos grupos da sociedade, ou o tipo de pressões que seriam colocadas sobre serviços públicos para o atendimento dos migrantes em partes específicas do país, foram amplamente ocultados da vista. A análise utilitarista tende a esquecer que ninguém é uma estatística.

A abordagem alternativa reduz a justiça aos direitos individuais. Dentro da UE, a livre circulação de pessoas baseia-se na ideia de uma liberdade universal para buscar uma vida melhor em qualquer outro lugar que não seja em nosso país de origem. Certamente, de acordo com esta maneira de pensar, todos devem ter o direito de viver e trabalhar onde quer que escolham? Mas isso é ignorar os efeitos das ações individuais nas famílias e comunidades. A análise libertária tende a esquecer que ninguém vive em um vácuo social.

Utilidade e liberdade são valores importantes e não devem ser negligenciados. Mas nenhum deles tem muito a dizer sobre o que nos une como seres humanos. Cada um fica em silêncio sobre o que constitui o bem comum e a boa vida. Os cristãos acreditam que os seres humanos têm um valor intrínseco porque são criados à imagem e semelhança de Deus. Não são simplesmente coisas produzidas à venda no mercado, redutíveis ao seu valor monetário. Cada indivíduo é, literalmente, ‘além do preço’, aliás inestimável. Quando os seres humanos são tratados como mercadorias, isso leva a sistemas desumanos que perturbam as relações pessoais e os padrões duradouros da vida. As pessoas são tratadas como meios e não como fins. A sensação de que toda vida é sagrada é violada.

Os seres humanos não são simplesmente os portadores de direitos individuais. Nós temos corpos, mentes e almas. Estamos inseridos em relacionamentos e instituições - por mais difíceis e disfuncionais que possam ser. Nossos direitos não são simplesmente posses pessoais; eles derivam de um senso mais profundo de dignidade e deveres. A dignidade inalienável da pessoa consagrada em muitas constituições nacionais é talvez a mais próxima tradução secular da crença religiosa na santidade da vida. Deveres são obrigações que devemos a nós mesmos e aos outros - ser pai, professor ou político envolve obrigações para servir aos outros. Temos o dever de cuidar dos outros e de seu bem-estar; para liderar pelo exemplo.

Na tradição cristã, nosso dever é amar o próximo ‘como a nós mesmos’. Para alguns, isso significa que o amor é predominantemente reservado para aqueles que estão próximos a nós em nosso lar e em nossa comunidade antes de ser estendidos ao estranho, seja qual for a dificuldade que o estrangeiro possa ter experimentado ou pela que tenha passado. Para outros, significa que o amor deve ser dirigido, antes de tudo, aos mais vulneráveis neste mundo - os pobres, os oprimidos, os jovens, as crianças e os muito idosos, os perseguidos, todos os que não têm lar.

Essa tensão parece irresolúvel. A quem devemos nosso amor? A resposta cristã para essa questão é que não temos que escolher um ou outro. É ambos. Devemos nosso amor a ‘pessoas como nós’, nossos amigos e parentes, e ao ‘outro’, ao estranho que bate à nossa porta. O amor ao próximo nos chama a amar as pessoas que são nossos vizinhos - aquele que está diante de nós, não importa de onde eles sejam ou a que grupo possam pertencer. Isso é o que aprendemos da parábola do Bom Samaritano; o viajante tornou-se próximo do samaritano e o samaritano tornou-se próximo do viajante.

Porém, se somos chamados a amar aqueles que estão à nossa frente, isso exclui o amor por aqueles que moram longe, como o refugiado líbio em um campo italiano ou a criança mexicana detida na fronteira com os EUA? Não. É claro que a compaixão e a caridade devem ser estendidas aos refugiados que perderam suas casas e precisam de abrigo. Ao mesmo tempo, é importante não nos desconectarmos de nossos vizinhos imediatos em nosso desejo de servir aos próximos. Nascemos em um lugar particular e fazemos parte de uma comunidade local. É isso que nos dá uma sensação de pertencer. Só Deus pode amar todas as pessoas igualmente. A Igreja é chamada a ser uma fraternidade universal de solidariedade, especialmente solidariedade com os pobres, de onde quer que sejam. No Ensino Social Católico, isso é conhecido como ‘a opção preferencial pelos pobres’.

A outra noção chave do Ensino Social Católico é ‘o bem comum’. Isso traz algo diferente para nossa compreensão da justiça. Direitos ou liberdades são principalmente individuais; a utilidade é principalmente coletiva. O bem comum, pelo contrário, combina a realização pessoal com o florescimento mútuo. Como pessoas únicas com talentos únicos, só podemos contribuir para a sociedade e realizar o nosso potencial em conjunto com os outros. Somos seres relacionais, não solitários em uma massa anônima.

O bem comum é sobre os bens que, de fato, temos em comum - não apenas terras comuns e recursos compartilhados, mas nossos relacionamentos e amizades, e nossa linguagem e cultura compartilhadas; nossas músicas, nossas comidas favoritas, a maneira como criamos nossos filhos. Nenhum desses bens é abarcado pelos números como os gastos da nação. Assim, ao contrário dos direitos ou da utilidade, o bem comum inclui todas as relações entre pessoas que oferecem significado.

Assim como o amor ao próximo, que equilibra o amor ao ‘nosso povo’ com o amor aos ‘estranhos’, há um equilíbrio a ser alcançado entre a opção preferencial pelos pobres e pelo bem comum. Ao formar uma política justa de migração, isso sugere fazer uma distinção entre refugiados que fogem da guerra e escapam da perseguição, e migrantes que deixam para trás a pobreza e estão em busca de melhores oportunidades. A situação dos refugiados e requerentes de asilo é uma catástrofe humanitária. A situação de muitos migrantes econômicos é terrível, mas não tão desesperada. A opção preferencial pelos pobres sugere que os refugiados têm uma demanda prévia por nossa ajuda sobre os migrantes econômicos.

Países prósperos como a Grã-Bretanha têm o dever moral de receber mais refugiados e fornecer ajuda adequada, até porque a política externa e as vendas de armas do Reino Unido têm sido um fator significativo na criação da emergência de refugiados desde o verão de 2015, quando centenas de milhares de sírios começaram a fugir de seu país devastado pela guerra. A obrigação de receber migrantes econômicos de países onde não há guerra civil ou perseguição não se aplica na mesma medida. Enquanto isso pode soar sem coração, é exatamente o oposto. A emigração em massa tem profundas consequências sociais e culturais para as sociedades desses países ‘emissores’.

Como o ex-arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, escreveu no ano passado, ‘a migração em massa produz um enfraquecimento das solidariedades civis comuns. Em países obrigados a supor que uma proporção significativa de seu povo estará no exterior por um número indefinido de anos produtivos - produtivos não apenas financeiramente, mas em termos de serviço público e responsabilidade compartilhadas - a mobilidade excessiva das populações trabalhadoras esvazia o espaço cívico. Estas são sociedades que muitas vezes já são economicamente e socialmente vulneráveis’.

A obrigação dos estados prósperos é ajudar a limitar a emigração trabalhando com países ‘emissores’ para proporcionar mais segurança e melhores condições de vida. Essa é também a posição do Papa Francisco : ‘A Igreja está do lado de todos os que defendem o direito de cada pessoa a viver com dignidade, em primeiro lugar exercendo o direito de não emigrar e de contribuir para o desenvolvimento do país de origem’ (Mensagem no Dia Mundial dos Migrantes e Refugiados, 17 de janeiro de 2016). Mas, infelizmente, os países ocidentais não têm a vontade política de se comprometerem oferecendo os recursos necessários para tornar a permanência em um país ‘emissor’ uma opção possível e credível. Se isso não acontecer, mais migrantes continuarão chegando.

Outra razão para a justiça privilegiar os refugiados em relação aos migrantes econômicos está no bem-estar dos países ‘hospedeiros’. A imigração em massa pode levar a um ritmo de mudança que é incompatível com uma medida de coesão social na qual a coexistência pacífica e a integração hospitaleira dos migrantes dependem. O Ensino Social Católico sugere que precisamos combinar financiamento mais generoso para programas de integração com o incentivo a formas criativas de promover o respeito pelas leis e tradições dos países anfitriões. Somente cultivando uma casa estável e à vontade consigo mesma podemos receber outros com amor de boa vizinhança.’


Fonte :

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Ética islâmica e ética cristã

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 *Artigo do Padre Olmes Milani,
Missionário Scalabriniano


‘... Aos poucos vou chegando à conclusão de que é essencial mudar a atitude de comparar religiões, e adotar uma abordagem que respeite as diferenças, ensejando a abertura de caminhos para a fraternidade e enriquecimento.
 Tratando-se do relacionamento entre Islã e Cristianismo, as duas principais religiões monoteístas do planeta, existem muitos pontos comuns no campo da ética e moral.
Embora não exista ainda igualdade como nas sociedades ocidentais marcadas pela cultura cristã, constata-se uma evolução significativa quanto ao casamento e a vida conjugal, aproximando-se consideravelmente da moral cristã. A poligamia vai sendo abolida e o poder masculino de repudiar uma mulher deixa de ter respaldo legal.
A família é vista como a célula básica da sociedade por ambas as religiões. O matrimônio também é reconhecido como a única maneira de criar a entidade jurídica.
A promoção e a defesa da vida, do começo ao fim, são defendidas tanto por cristãos como islâmicos, sendo proibido o aborto, embora exista certa tolerância quanto ao chamado aborto terapêutico.
A  esterilização, mutilação e eutanásia são práticas não aceitas por islâmicos e cristãos.
Enfim, se a ética islâmica se revela assim próxima à bíblica e assume os ensinamentos do Antigo Testamento, é preciso reconhecer que, às vezes, ela oferece aos muçulmanos a possibilidade de admitir algumas posições do Evangelho.
Especialistas no estudo do Alcorão revelam que, de uma forma ou de outra, ‘o verdadeiro monoteísmo consiste no amor a Deus e no amor ao próximo’, interpretando assim o texto do Alcorão à luz do ensinamento Bíblico e Cristológico, do ‘duplo mandamento do amor’. Amar a Deus e ao próximo como a si mesmo.’


Fonte :


terça-feira, 28 de março de 2017

Nos tempos do fio de barba

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

O 'fio-de-barba' já não existe como garantia de negócio seguro.
*Artigo de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor


‘Quando era criança, escutava meu pai, vez ou outra, comentando sobre a garantia representada por um fio de barba. Confesso que não entendia aquilo muito bem. Contudo, o passar dos anos foram mostrando-me, de forma bastante prática e por vezes contristante, o significado e a importância do ‘fio de barba’. Fio este que vim a descobrir não ser exatamente da barba, mas quase sempre do bigode. Falemos um pouco de sua origem, para depois comentarmos sua importância, especialmente nos dias atuais.

A palavra ‘bigode’ teria surgido em torno do ano 1498, partindo de uma expressão germânica usada em juramentos : ‘bi Gott’, ou seja : ‘por Deus’. Com ela sedimentava-se um compromisso de forma inviolável.

Retrocedendo o relógio da história, voltamos aos tempos bíblicos, onde a barba era extremamente valorizada pelos judeus, tendo significado religioso profundo. Talvez aí tenha nascido a expressão ‘pelas barbas do profeta’, que possuía sentido de verdade indiscutível, ou compromisso irrevogável. Chegamos à Idade Média, período que abrange os séculos V ao XV, tempo dos cavaleiros andantes, símbolo (ainda que por vezes questionável) de honradez e seriedade. E usualmente, entre eles, entregava-se um fio de barba ao interlocutor, quando um compromisso era assumido. No Brasil do século XIX, selava-se um negócio com um fio de barba, mais especificamente do bigode – que quase todos homens sérios possuíam – colocado dentro de um envelope juntamente com o texto dos compromissos assumidos. Era um ritual ‘bi Gott’, onde Deus servia como testemunha.

Chegamos ao século XXI, onde a longa barba e o bigode deixaram de ser usuais, apesar de que, vivendo numa sociedade líquida, esses adereços faciais estão retornando, geralmente em personagens públicas como jogadores de futebol, cantores, artistas de televisão ou pessoas com aguda necessidade de se mostrar e ser notado. Vez ou outra, encontramos esse ornamento cápilo-facial, em pessoas comuns, não tão exóticas ou notórias. De qualquer forma, não mais como símbolo de austeridade, mas como componente de uma arquitetura capilar chamativa e, por vezes, até mesmo de formidável mau gosto.

Exatamente por isso o ‘fio-de-barba’ já não existe como garantia de negócio seguro, da mesma forma como o seu conjunto já não configura, com robustez, um homem probo.

Adentrando mais profundamente no quesito honestidade, percebemos hoje a inutilidade daquele elemento natural, tanto quanto dos muitos, e cada vez mais sofisticados, documentos utilizados nas mais diferentes transações. Partindo de um simples compromisso de prestação de serviço estabelecido entre cliente e profissional, passando pelo pressuposto dever de cumprimento da palavra empenhada, tanto numa relação interpessoal como na assunção de um cargo público – por nomeação ou por sufrágio – a palavra empenhada vale muito pouco ou quase nada, até quando entes superiores são tomados como testemunha : ‘bi Gott’!

Quantas pessoas amargam a espera, por dias seguidos, de um bombeiro compromissado para corrigir um vazamento em sua residência, mas que nunca aparece; de um pedreiro, um eletricista, um técnico de TV e tantos outros que não se importam em deixar o cliente a ver navios, sem qualquer explicação. Quantas pessoas agendam consulta com um médico – até por questões vitais – e são frustrados por atrasos ou até ausências (obviamente algumas inteiramente justificadas pela natureza do seu serviço, mas outras, por razões bastante prosaicas...). Quantas outras entregam para um advogado uma ação da qual dependem para sua própria sobrevivência, e o causídico que os atendeu tão prontamente na contratação dos seus serviços, tornam-se inalcançáveis, não dão qualquer retorno, frustram totalmente aquele que nele confiou. Li certa vez que cerca de 70% das queixas na OAB, contra advogados, são relacionadas à total falta de atenção desses profissionais.

Mutatis mutandis, o mesmo ocorre em praticamente todas as atividades liberais, assim como no comércio, na indústria, etc. e de modo ainda mais absurdo, nos serviços públicos.

Entrando na área política, o espaço desse artigo se torna absolutamente insuficiente para as necessárias citações. Recorro então ao noticiário dos jornais, rádios e TVs para um mamútico exemplo da total inutilidade do fio-de-barba nesse mundo promíscuo de empresários e políticos. Nele, nem um bigode do tamanho das madeixas de Rapunzel, conseguiria superar a hipocrisia e as mentiras dos milionários e bilionários que hoje, por graça especial de Moros, Janots, Federais e outros poucos mosqueteiros, disfrutam do ‘conforto’ das celas a que condenaram, com seus conchavos e falsetas, à fome, à miséria, às drogas e ao crime, tantos cidadãos brasileiros, muitos, quem sabe, até mesmo seus eleitores...’


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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

A honestidade como estética, a corrupção e a hipocrisia

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Prisão
*Artigo de Paulo Vasconcelos Jacobina


O desonesto contemporâneo vai além do hipócrita. Ele não admite nenhum critério, nenhuma direção, que possa permitir qualquer julgamento objetivo no campo da ética. São como monstros espirituais que elegeram a monstruosidade como padrão estético.


Não há dúvida de que o tema da corrupção está na linha de frente do nosso noticiário. Há, hoje, poucos membros do Ministério Público ou da Magistratura que não estejam ocupados com o tema, seja trabalhando diretamente com ele, no combate frontal, seja debatendo-o, seja de alguma forma apoiando aqueles que estão dedicados ao combate, acumulando o serviço burocrático que eles deixaram para trás, de modo a possibilitar que eles possam dedicar-se a esta atividade.

As coisas não eram assim há vinte e cinco anos, quando eu entrei no Ministério Público. Muitos temas ocupavam então a pauta de uma jovem Constituição Federal : destaco a nossa empolgação, à época, com as novidades do direito ambiental, da defesa do consumidor, da proteção a crianças, adolescentes, pessoas com deficiência e a consolidação da cidadania de modo geral, numa época, como aquela, de redemocratização recente e de otimismo cívico. Hoje, todos estes temas ainda nos ocupam, mas a questão da corrupção sem dúvida destaca-se como central na nossa atuação.

Não por coincidência, mas porque este tema tem relevância para o mundo inteiro, o Papa Francisco vem chamando a atenção de todos para a questão da corrupção, mas a partir de um ponto de vista muito mais profundo do que aquele que norteia nossa atuação judicial. Este tema está no capítulo sétimo de seu livro de entrevistas lançado agora, mas já vinha sendo repetido e destacado por ele em pronunciamentos e homilias desde o início do seu pontificado. Destaco a homilia de 11 de novembro de 2013, em que ele apontou muito claramente a diferença entre os pecadores, que somos todos nós, e os corruptos, aqueles que mergulharam na hipocrisia e são incapazes de arrependimento e de mudança. O Papa dizia :

A diferença é quem peca e se arrepende, pede perdão, se sente fraco, se sente filho de Deus, se humilha, e pede a Jesus a salvação. Mas quem escandaliza não se arrepende. Continua a pecar, mas faz de conta que é cristão : uma vida dupla. E a vida dupla de um cristão provoca muitos danos’.

O Papa Francisco afirmava muito duramente que o corrupto é aquele que é capaz de ir à Igreja, de declarar-se a favor dos pobres, mas com a outra mão rouba do estado, rouba dos mais pobres. ‘Aqui não se fala de perdão’, pois quem faz vida dupla é um corrupto e está preso num estado de suficiência, ‘não sabe o que é a humildade’. O Papa lembrava que Jesus falava deles como de um ‘sepulcro caiado’, ou seja, externamente belos, mas podres por dentro.

Todos nós conhecemos alguém que está nesta situação e quanto mal faz à Igreja! Cristãos corruptos, padres corruptos… Quanto mal provocam à Igreja! Porque não vivem no espírito do Evangelho, mas no espírito mundano’.

Na Carta aos cristãos de Roma, São Paulo dizia para não entrar nos esquemas, nos parâmetros deste mundo – esquemas que levam à vida dupla:

Uma podridão ‘vernizada ’: esta é a vida do corrupto. E Jesus não os chamava simplesmente de pecadores, mas de ‘hipócritas’. Com os outros, os pecadores, Jesus não se cansa de perdoar, com a condição de que não façam esta vida dupla. Peçamos hoje a graça ao Espírito Santo de nos reconhecer pecadores. Pecadores sim, corruptos não’.

Motivado por estas palavras de Francisco, resolvi aprofundar minhas pesquisas sobre a honestidade; para minha surpresa, descobri que eu não conseguiria definir com muita precisão o que é a honestidade. Minha concepção de honestidade ia pouco além de uma vaga ideia de autenticidade, de sinceridade, de capacidade de viver coerentemente com os próprios princípios e de falar abertamente sobre aquilo em que acredita. Mas isto é muito pouco. Na minha já longa carreira profissional, conheci muitos criminosos perigosos que, marcados pela psicopatia, eram capazes de uma enorme autenticidade : falavam claramente sobre os crimes que cometeram e viviam uma profunda coerência com seus próprios instintos destrutivos. Alguns desenvolveram uma escala própria de valores extremamente coerente, como aqueles que só roubavam de ricos ou só matavam ‘bandidos emprestáveis’. Não foram poucos os empresários sonegadores, fraudadores e lavadores de dinheiro que processei e que eram capazes de fazer uma defesa lúcida e coerente de suas próprias condutas fraudulentas a partir de postulados de teoria econômica ou política, e de transformar sua sonegação numa espécie de manifesto de resistência aos ‘maus políticos’ ou à ‘má política econômica’, ou mesmo à ‘sobrevivência do capitalismo’ ou à ‘liberdade de iniciativa’ ou de ‘oportunidade’, como ouvi, uma certa feita, de um réu que comandava uma quadrilha de tráfico internacional de pessoas. Honestidade deve ser algo a mais do que autenticidade, coerência ou franqueza, portanto.

Movido pelas palavras do Papa, mergulhei no estudo do pensamento cristão mais antigo e, para minha surpresa, encontrei uma bela defesa da honestidade numa página de São Tomás de Aquino, da sua impressionante ‘Suma Teológica’. Ali, Tomás relaciona a honestidade à temperança, e a define como uma ‘beleza espiritual’; essa definição estética da honestidade me surpreendeu. Tomás relaciona a honestidade com a proporção delicada e admirável do equilíbrio que adquire uma pessoa virtuosa. Ou seja, a honestidade é a capacidade de admirar e louvar as qualidades da virtude, bem como a alegria contemplativa de ter virtudes e agir em conformidade com elas. Uma capacidade estética muito mais profunda, portanto, do que aquela parte da estética que se preocupa apenas com a aparência das coisas e das pessoas. Trata-se, pois, de amar, em si mesmo, aquilo que é bem proporcionado, justo, pensado, ponderado e medido, e buscar viver em coerência com essa bela medida espiritual. Neste sentido, a honestidade pode e deve ser aprendida e ensinada. E relaciona-se, segundo Tomás de Aquino, com a virtude da temperança. Diz Tomás :

Chama–se honesto ao que tem uma certa beleza subordinada à razão. Ora, o ordenado segundo a razão é naturalmente conveniente ao homem. Pois, cada um naturalmente se deleita com o que lhe é conveniente. Por isso, o honesto é naturalmente deleitável ao homem, como o prova o Filósofo ao tratar dos atos de virtude.’ (S. Th, II, II, Q. 145).

O hipócrita, pois, é alguém que de certo modo ainda paga um ‘tributo’ à estética da honestidade : quer ‘salvar’ as aparências externas da beleza que não possui no seu interior. Considera-se, pois, justificado por cultivar uma vida cercada de confortos e riquezas, como uma espécie de ‘maquiagem’ da sua desarmonia interior, ainda que isto se dê às custas de sua probidade, da lisura no tratamento dos bens de terceiros ou dos bens públicos, do prejuízo aos mais fracos ou mais pobres, ou mesmo à coletividade.

O desonesto contemporâneo, no entanto, vai além do hipócrita. Ele nem sequer admite que haja, objetivamente, qualquer possibilidade de desenvolver uma beleza espiritual, porque não admite nenhum critério, nenhuma direção, que possa permitir qualquer julgamento estético no campo da ética. São desprovidos não somente da virtude, mas da própria ideia de que algo como o bem possa existir fora do campo da sua própria vontade. São monstros espirituais que elegeram a monstruosidade como padrão estético, e portanto até podem, muito autenticamente (segundo pensam), proclamar-se como ‘honestos’. Neste sentido, eles vão além da hipocrisia denunciada pelo Papa como raiz da corrupção: estragam os padrões estéticos de honestidade de gerações e gerações – formam nossas crianças e jovens para nem sequer serem hipócritas, mas verdadeiros ‘cegos morais’; adotam a monstruosidade ética como padrão de beleza e criam monstrinhos que se acham lindos. E em seguida proíbem os espelhos e denunciam a verdadeira estética espiritual como ‘intolerância’ ou ‘imposição religiosa’. Não é. Se fosse, não haveria tanta revolta no mundo inteiro, igualmente compartilhada entre ateus, agnósticos e fiéis das mais diversas culturas e religiões, contra a corrupção que assola nosso dia-a-dia.

Estabelecer a deformação espiritual como padrão estético, pela promoção da intemperança e da incontinência como virtude, como ocorre hoje na nossa educação formal e nos nossos meios de comunicação, não transforma a ‘autenticidade’ em honestidade, apenas multiplica a corrupção e a transforma no problema epidêmico em que ela se tornou hoje, porque destrói os critérios. Junto com a honestidade vai embora aquela outra postura que Tomás de Aquino aponta como pressuposto necessário à virtude, que é a capacidade de envergonhar-se (S. Th. II-II, Q. 144). Lembro-me das mães de antigamente, que, ao corrigirem seus filhos, diziam simplesmente : ‘que feio o que você fez!’. Temos que defender essa velha estética.’


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