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sexta-feira, 26 de abril de 2024

Verdade e realidade : o real se impõe!

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Dom Luiz Antonio Lopes Ricci Lopes Ricci,

Bispo de Nova Friburgo, RJ 


A definição filosófica de verdade, como ‘adequação do pensamento à realidade’, serve para constatar, com pesar, um perigoso distanciamento entre pensamento e realidade em vários setores e pessoas, especialmente nos pronunciamentos de alguns políticos e ‘comunicadores’ digitais. Constata-se uma espécie de ‘esquizofrenia’ culposa, porque com conhecimento e consentimento fazem questão de dissociar e separar o mundo real de suas próprias ideologias, que ofuscam o pensamento reto e verdadeiro. Sem contar aqueles que vão além, disseminando as destrutivas fake news e o ódio, manipulando a dignidade da consciência dos indivíduos. Não se acaba jamais de procurar a verdade, porque algo de falso sempre se pode insinuar, mesmo ao dizer coisas verdadeiras. De fato, uma argumentação impecável pode basear-se em fatos inegáveis, mas, se for usada para ferir o outro e desacreditá-lo à vista alheia, por mais justa que pareça, não é habitada pela verdade. A partir dos frutos, podemos distinguir a verdade dos vários enunciados : se suscitam polêmica, fomentam divisões, infundem resignação ou se, em vez disso, levam a uma reflexão consciente e madura, ao diálogo construtivo, a uma profícua atividade, como afirma o Papa Francisco.

A emoção desmedida não pode colocar a verdade em segundo plano. As ideologias prejudicam grandemente a racionalidade. Urge colaborar, como exigência da fé em Cristo, para a superação de todas as formas de violência, especialmente a digital, que, infelizmente, ainda persiste. O cristão é chamado a agir de modo diferente : entre vocês não deverá ser assim (cf. Mt 20,26), já advertia Jesus.

A realidade é mais importante do que a ideia, afirma o Papa Francisco : ‘Existe uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade : a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas deve-se estabelecer um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se da realidade. É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma. Isso supõe evitar várias formas de ocultar a realidade’ (Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 231). A realidade deve ser iluminada pelo pensamento. Dessa forma, evitam-se idealismos ineficazes e autorreferencialidade, que pode levar a uma forma de narcisismo estéril, a uma perigosa ‘autoverdade’. Precisamos de frutos concretos para uma realidade concreta! ‘Produzir frutos no amor, para a vida do mundo’ (Decreto Optatam Totius, 16).

Nesta nossa reflexão, cabe recordar o conceito de pós-verdade : ‘Que se relaciona ou denota circunstâncias, nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais’ (Universidade de Oxford, 2016). A verdade é o que corresponde à opinião pessoal ou modo de pensar. Ocorre assim, infelizmente, a perda do senso crítico e a assimilação de uma ideologia. 

Pós-verdade não é a mesma coisa que mentira. Os políticos, afinal, mentem desde o início dos tempos. O que a pós-verdade traz de novo ‘não é a desonestidade dos políticos, mas a resposta do público a isso. A indignação dá lugar à indiferença e, por fim, à convivência’ (M. D’Ancona, 2018). Massacrado por informações verossímeis e contraditórias, o cidadão desiste de tentar discernir a agulha da verdade no palheiro da mentira e passa a aceitar, ainda que sem consciência plena disso, que tudo o que resta é escolher, entre as versões e narrativas, aquela que lhe traz segurança emocional.

A verdade, assim, perde a primazia epistemológica nas discussões públicas e passa a ser apenas um valor entre outros, relativo e negociável, ao passo que as emoções, por outro lado, assumem renovada importância. Na base do fenômeno, argumenta D’Ancona, está o colapso da confiança nas instituições tradicionais’ (Editores, Pós-verdade, 2018).

Enfrente com serenidade! Em frente com fé, fortaleza e esperança! Com o meu abraço virtual, gratidão e bênção.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/verdade-e-realidade-o-real-se-impoe.html


quarta-feira, 3 de abril de 2024

Jesus, a verdade que ruge

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 *Artigo de Dom Lindomar Rocha Mota,

Bispo de São Luís de Montes Belos, GO


Caminhar no mundo é como perambular num vale desconhecido. Foi nesse deserto que o Senhor teve piedade e nos encontrou, andarilhos gastos com uma carga insuportável no alforje. 

Com centenas de mandamentos revertidos e simplificados na formulação elegante e simples do amor a Deus e ao irmão, Jesus resolveu as coisas para nós. Era quase impossível, mas Jesus deu um jeito. 

Paulo mesmo não deixava de se maravilhar pelo modo como a profecia antiga ganhou vida em Jesus. A revelação plena do mundo esperado foi quase escandalosa, por isso Ele mesmo disse ‘não vos escandalizeis comigo’ (Jo 16,1), porém, foi difícil não se escandalizar. 613 normas, em sua maioria proibições, não eram algo razoável. Tantas normas postas claramente entram em contradição e se anulam mutuamente, gerando o risco de recair sobre ombros humanos a responsabilidade de eleger a sua preferência. Muitas dessas leis eram excessivamente particulares, como a 348, que recomendava ‘salgar todos os sacrifícios’, ecoando Levítico 2,3. 

Questões éticas e morais se misturavam por toda parte, sem um fio condutor para orientar a tomada de decisão e a escolha do caminho. A revelação precisou ser acelerada para que o Reino de Deus não fosse impedido pelos incontáveis impedimentos que lhe foram postos diante. 

Não é, pois, estranho que muitas leis orientem a vida de um povo. Preceitos de todo tipo emergem no limite entre a ética, a moral, a política e o direito. Saberes se ladeiam para aprumar o caminho, mas, sem um fio condutor que os unifique, o aparato moral ou religioso vira uma mera certeza emocional de batalhas e conflitos sem fim. 

Jesus Cristo, que é o mesmo ontem, hoje e sempre, é a única norma vivente, universal e concreta. Sem a angularidade da norma encarnada, o mundo se pulveriza em estilhaços de verdades, incapazes de iluminar a estrada e curar os feridos no coração. 

Com Ele no meio de nós tudo é realinhado numa direção só. Uma verdade se liga a outra sem contradição. A pessoa é posta no centro! Entre as pessoas, começa-se pelos que precisam mais, pelos mais frágeis e excluídos. A partir dessa sensibilidade exterior, chega-se também à melhora e a cura interior. 

As palavras e ações de Jesus se transmutam numa conjunção de fé. Cada detalhe de sua vida é para nós uma proposição normativa e, como Ele mesmo não escreveu nenhum código, mas testemunhou com a sua humanidade o desenvolvimento dos enunciados propostos, muitos ficaram admirados com a sua autoridade (cf. Mc 1,27). 

Foi por isso que, querendo orientar o seu jovem amigo Timóteo, então bispo, a prosseguir no caminho do Senhor, São Paulo enfatiza que na memória da Igreja apenas Jesus Cristo tem a primazia. 

Como naquele tempo, também hoje faz-se necessário aprumar os objetivos e orientar as escolhas, acolhendo a recomendação do apóstolo que ecoa pelo tempo : ‘Lembra-te de Jesus Cristo’ (2Tm 2,8).

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/jesus-a-verdade-que-ruge.html

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

O conforto da filosofia: verdades antigas podem ajudar a salvar a sociedade moderna?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Rachel Lu,

escritora e editora

Tradução : Ramón Lara


Boécio, um estadista romano do século VI, estava no auge de sua vida quando sua carreira política teve um fim súbito e vergonhoso. Entrando em conflito com políticos corruptos, ele foi falsamente acusado de conspirar contra o rei, Teodorico, cujo favor desfrutava há muito tempo. Boécio caiu, literalmente da noite para o dia, de uma vida de ócio aprendido para as masmorras de Teodorico. Foi executado, mas não antes de ter escrito uma obra que reverberaria através dos séculos. O Consolação da Filosofia foi um dos livros mais lidos da Idade Média, um best-seller de vários séculos. Isso consolidou o próprio legado de Boécio e ensinou à Europa medieval o valor da disciplina que amava.

O livro começa com o infeliz Boécio sentado em sua cela, lamentando as terríveis injustiças do destino. Ele é acompanhado por uma bela mulher, vestida com um vestido rico, mas um tanto esfarrapado, que se identifica como a Senhora Filosofia, a personificação da busca pela sabedoria. Ela o repreende por sua autopiedade e o envolve em uma extensa discussão sobre o livre arbítrio, as vicissitudes do destino e o funcionamento da providência divina. Ao final do discurso, o personagem Boécio ganha um maior senso de perspectiva sobre sua situação. O debate o lembra dos limites da razão humana e o ajuda a confiar novamente na providência de Deus. A Senhora Filosofia ministra a Boécio encontrando-o onde está, usando seu intelecto dado por Deus para levá-lo a um lugar onde pode abandonar seu ressentimento e medo e encontrar a paz.

Teríamos a sorte de ter tal acompanhamento hoje. Precisamos dessa paz, desesperadamente. Os americanos estão mais solitários, ansiosos e isolados do que nunca. Em termos materiais somos, em geral, ricamente abençoados; mas social e espiritualmente estamos empobrecidos. Nossa nação está perigosamente polarizada politicamente e temos uma confiança cada vez menor em nossos compatriotas e em nosso governo. O sentimento generalizado de desintegração social torna o futuro sombrio.

Boécio teria relatado. Nascido em uma família aristocrática nos anos finais do Império Romano, ele entendeu bem como o potencial humano poderia ser arruinado pela corrupção e dissolução social. Percebeu, também, que estava vivendo à beira de um colapso civilizacional generalizado e, portanto, grande parte de sua vida foi dedicada a um esforço contínuo para mitigar os danos, preservando grandes obras de filosofia.

Boécio fez mais do que qualquer outra pessoa para traduzir e comentar as obras de Platão e Aristóteles; era seu presente para um futuro distante que ninguém ainda poderia vislumbrar. As horas finais de Boécio são muito mais dramáticas porque sabemos que estamos vendo o fim, não de um homem apenas, mas de toda uma cultura. No entanto, a Consolação não é uma obra de desespero. O conforto da Senhora Filosofia é acentuado para o leitor moderno pelo conhecimento de que a mais cara esperança de Boécio seria realizada nos séculos vindouros. A Europa redescobriria os grandes pensadores da antiguidade, com sua própria obra acadêmica servindo como uma ponte crucial entre as eras antiga e medieval.

Mas pode a filosofia antiga ser o tônico de que precisamos hoje? Algo de ceticismo é perdoável. Em nossos dias, enfrentamos questões emocionantes sobre justiça social, a identidade e o privilégio, a democracia e a representatividade e a profanação do mundo natural. Talvez seja difícil imaginar encontrar respostas para perguntas como essas em tomos acadêmicos empoeirados. A maioria dos católicos provavelmente está ciente de que sua fé tem uma tradição filosófica de longa data, mas os benefícios dessa tradição para a vida cotidiana do católico médio podem não ser óbvios.

E se acontecesse, porém, que essa rica tradição contivesse, se não respostas prontas para os problemas modernos, pelo menos um espaço dentro do qual as respostas pudessem ser frutíferas cultivadas? E se não fosse tarde demais para elevar nossas comunidades e universidades a centros vibrantes da vida intelectual e cultural católica, reminiscentes de seus precursores medievais? E se essa tradição filosófica for, de fato, o presente que o mundo mais precisa da Igreja neste tempo de ansiedade e dúvida?

Uma casa para bolsas de estudos

As universidades, na forma que hoje reconheceríamos, existem desde a Idade Média e foram, em grande parte, construídas por filósofos católicos. Isso pode parecer hoje um pouco trivial, mas as pegadas dos pensadores medievais ainda são visíveis. Em uma formatura universitária moderna, os trajes de doutorado ainda incluem tipicamente um tom azul escuro, marcando a cor da filosofia. Ainda chamamos nossos graduados mais graduados de ‘doutores em filosofia’, mesmo que tenham estudado ornitologia ou administração hoteleira.

Esses vestígios de um mundo mais antigo devem nos lembrar como a filosofia criou a universidade, ao mesmo tempo em que moldou e definiu a Igreja. O conhecimento filosófico é mais do que apenas uma abstração. Não fosse a forte crença dos medievais no poder da verdade e a capacidade da razão humana de revelá-la, a universidade nunca poderia ter nascido. O cristianismo europeu poderia ter se desenvolvido de forma mais fundamentalista, caindo sob o controle de patriarcas autoritários e políticos corruptos como os que executaram Boécio. Felizmente, a fé e a razão convergiram na Paris medieval de uma forma que se mostrou transformadora, não apenas para a França e o catolicismo, mas, em última análise, para o mundo inteiro.

O fato de isso ter acontecido em Paris teria sido bastante surpreendente para Boécio e seus contemporâneos. Quando Bolonha fundou a primeira grande escola de direito do mundo em 1088, isso era mais explicável. A Itália ainda era um centro de alta cultura e fazia sentido examinar os fundamentos da lei no coração do antigo império. A Grã-Bretanha já havia produzido alguns intelectuais importantes, como São Beda e Santo Anselmo. A França, ao contrário, estava bem longe dos grandes centros de aprendizado do mundo antigo; e no século 10, os francos eram amplamente vistos como rudes e culturalmente atrasados.

No entanto, no final do século 10, foi o norte da França que serviu de ímã para homens intelectualmente curiosos de toda a Europa. As escolas das catedrais tornaram-se o ponto de encontro de homens instruídos e estudantes ávidos que procuravam seguir o caminho traçado por Boécio séculos antes. Estudaram lógica e grandes textos filosóficos herdados da antiguidade, e trabalharam para aplicar essas habilidades e percepções às questões de seu próprio tempo. No século 13, a Universidade de Paris foi reconhecida em toda a Europa como a instituição preeminente para o estudo da filosofia, teologia e artes. A Paris medieval foi para a filosofia o que Florença do século 15 foi para a arte ou a Rússia do século 19 para a literatura.

A era dos sistematizadores

A Universidade de Paris era totalmente cosmopolita, no sentido de atrair homens de toda a Europa e forçá-los a subordinar suas lealdades e apegos mais particulares a um projeto maior. Isso não foi fácil. Os estudiosos de Paris tinham seus próprios preconceitos culturais e étnicos, como os humanos tendem a ter, e isso criava tensões e ocasionalmente até levava a surtos de violência física. No entanto, era amplamente entendido que o trabalho da universidade não poderia ser confiado a um único grupo nacional ou étnico.

A civilização europeia estava entrando em uma nova era, e o trabalho intelectual era necessário para pavimentar o caminho para uma sociedade cristã próspera e humana. Do ponto de vista moderno, pode parecer que os círculos intelectuais dessa época eram homogêneos e culturalmente fechados, mas isso seria uma visão tacanha. É verdade, claro, que a Europa da época era em grande parte agrária e católica, e que as universidades eram em sua maioria clubes de meninos. Mas essa era também uma época de turbulência política e rápida mudança cultural, e o ímpeto na Universidade de Paris estava afastando as pessoas de vínculos provincianos e aproximando-as de verdades universais que são a herança comum de todos os seres humanos.

Esta foi a era dos grandes sistematizadores. O projeto abrangente da época era sintetizar todos os aspectos da fé cristã em uma única imagem, que poderia então ser harmonizada com tudo o mais que era conhecido, ou mesmo que pudesse ser conhecido. Os escolásticos desse período acreditavam que toda verdade poderia ser unificada e planejavam mostrá-la. Eles entenderam que essa imagem precisaria combinar substância e lucidez com flexibilidade de mente aberta. Eles queriam uma filosofia que pudesse durar gerações, mas essa resistência só seria possível se suas teorias pudessem incorporar novas informações à medida que a raça humana continuasse a explorar e descobrir. Consequentemente, seu pensamento tendia a se mover em arcos amplos, criando uma estrutura, mas deixando amplo espaço para detalhes a serem preenchidos posteriormente. Às vezes, questões práticas eram abordadas, mas o sistema como um todo foi projetado para ter uma abertura que encorajasse a busca de conhecimento em vez de evitá-lo.

Para qualquer um que tenha passado por um programa de doutorado moderno, o método medieval de treinar filósofos é simultaneamente encantador e surpreendente em sua ambição. Aqui, pelo menos, as universidades medievais contrastavam fortemente com as nossas. Um aluno de pós-graduação moderno, mesmo em humanidades, passará anos mergulhando profundamente em um assunto estreito e bem definido, com o objetivo de produzir alguma pesquisa original. No lugar da dissertação moderna, os estudantes medievais de pós-graduação escreveriam comentários completos sobre as Sentenças de Pedro Lombardo, que é uma obra abrangente que cobre praticamente tudo de interesse para um estudioso cristão : Deus, criação, morte, julgamento, céu, inferno, a moral vida e os sacramentos. Em suma, a Universidade de Paris esperava que todo estudioso escrevesse seu próprio ‘livro de tudo’ antes de se tornar um ‘doutor’ de pleno direito, um estudioso qualificado para ensinar. Foi um sistema que realmente capturou o espírito da época. Os intelectuais parisienses estavam determinados a criar uma visão filosófica universalmente aplicável que pudesse resistir ao teste do tempo.

Miraram muito alto? Seu zelo pela consistência acabou sendo exposto como mera arrogância, apenas a fútil obsessão de mentes pequenas? Nenhum empreendimento humano é perfeito, e pode-se encontrar erros nos escritos escolásticos, como, por exemplo, em seu entendimento falho da embriologia humana. Alguns textos nos pareceriam fantasiosos e irrelevantes, como as extensas discussões de São Boaventura sobre angelologia. Podemos ficar perturbados com o julgamento moral ocasional, como quando São Tomás de Aquino tolera a execução de hereges.

Ainda assim, quando consideramos que estamos olhando para trás através de um abismo de vários séculos, é notável o quão bem a Escolástica ainda se mantém unida. A maior parte ainda parece completamente sensata e aplicável às questões modernas. Nem a ciência moderna nem os desenvolvimentos políticos modernos mostraram que a visão de mundo dos escolásticos é fundamentalmente implausível. Mas sua determinação foi testada muitas vezes, especialmente com a rápida redescoberta de novos textos aristotélicos no século XIII. Preservados em muitos monastérios e discutidos abertamente nos círculos intelectuais islâmicos por pensadores como Al-Farabi e Al-Ghazali, os textos de Aristóteles acabaram se transferindo para os círculos parisienses e se tornaram objeto de furiosos debates. Como um pagão com muitos insights profundos, mas sem acesso à revelação cristã, Aristóteles trouxe à tona questões difíceis sobre os limites da filosofia e a relação entre fé e razão. Algumas autoridades religiosas agiram para suprimir o estudo de Aristóteles, temendo que a filosofia desacreditasse ou subjugasse a fé cristã. No final, os pensadores parisienses (especialmente São Tomás de Aquino) sintetizaram com sucesso Aristóteles com os Padres da Igreja, extraindo muitos outros insights gregos e islâmicos ao longo do caminho.

No final, apesar de todos os seus falsos começos e falhas pessoais, os intelectuais de Paris conseguiram uma fusão espetacular de fé e filosofia. Ao fazê-lo, abriram o caminho para uma Europa capaz de abraçar a razão humana, explorando a verdade em todas as suas facetas sem rejeitar Deus. Se a Senhora Filosofia fosse tão clarividente quanto sábia, ela poderia ter dado a Boécio um conforto ainda mais poderoso. Sem suas contribuições, a Europa medieval talvez nunca tivesse abraçado a filosofia na medida em que o fez. Sem a filosofia, o cristianismo nunca poderia ter escapado da armadilha do fundamentalismo. Sua vida pode ter sido curta, mas certamente não viveu em vão.

Unindo Fé e Razão

Num mundo caído, a vitória da razão humana nunca é completa. O fundamentalismo retornará periodicamente, assim como a corrupção política, a dúvida, o preconceito e muitas distorções da fé. Mesmo o escolasticismo, com todas as suas características admiráveis, tem o potencial de desviar as pessoas. Pode ser reduzido a um sistema seco e formalista, indiferente às realidades vividas e cego às questões que inquietam o coração das pessoas.

Nos últimos sete séculos, os católicos tiveram muitas vezes de renovar seu compromisso de buscar novas verdades e harmonizar todo conhecimento com o repositório da fé. Uma e outra vez, a experiência vivida revelou lugares onde as suposições mais antigas eram imprecisas, preconceituosas ou simplesmente erradas. Questões difíceis e dolorosas podem surgir, mas os católicos as enfrentam com a audácia destemida dos escolásticos, porque entendemos que fé e razão se sustentam e se alimentam. Essa união de fé e razão é o legado dos filósofos católicos e sempre foi fundamental para a educação católica, refletida nas universidades católicas e na Ratio Studiorum que moldou as escolas jesuítas, que tiveram um impacto particularmente forte, desde os tempos coloniais até os dias atuais.

Pode parecer que esse legado perdeu relevância, agora que vivemos em um mundo com bilhões de pessoas, dezenas de diferentes crenças e um maior reconhecimento da variedade de culturas, raças, linguagens e perspectivas em nossas sociedades. Então, novamente, pode ser que a filosofia católica tenha sido feita para um momento como este. Na melhor das hipóteses, é preciso e flexível, bem definido e expansivo, prático e transcendente. Ele absorve novas informações, as digere e adapta o quadro maior para refletir a verdade com mais precisão. Por estar enraizado tanto na lógica quanto na observação natural, pode envolver interlocutores de uma ampla gama de origens e perspectivas. Os escolásticos buscavam elevar-se acima dos apegos provinciais e articular verdades que eram comuns a todos os seres humanos. Esse projeto parece tão relevante agora quanto em qualquer outro momento da história.

Nos níveis primário e secundário, várias escolas católicas foram revitalizadas através da introdução de currículos clássicos. O rápido crescimento do movimento escolar clássico canaliza o espírito dos sintetizadores medievais de inúmeras maneiras. Ele conecta os alunos a uma tradição intelectual de longa data e busca verdades universais que são patrimônio comum de toda a humanidade. Ele prioriza a amplitude sobre o conhecimento especializado e afirma com firmeza o poder da razão. A crescente demanda por escolas clássicas fala de uma necessidade amplamente sentida de fontes de sabedoria que possam atravessar a polarização política, a desconfiança mútua e a fragmentação social que definem nossa época. Em um mundo ansioso, oferece um farol de esperança. Talvez possamos, afinal, encontrar maneiras de raciocinar juntos.

Os departamentos de filosofia poderiam oferecer um serviço semelhante no nível universitário? Imagine se as universidades católicas fossem novamente vistas como uma luz para as nações, repletas de sabedoria e preparadas para ajudar a sintetizar as muitas e diversas verdades que o ser humano desvendou ao longo dos séculos. Temos muitos recursos para isso, mesmo além da rica tradição do pensamento escolástico. Temos a tradição contemporânea do personalismo cristão, explorada por pensadores como Dietrich von Hildebrand e São João Paulo II. Temos a doutrina social católica, que aplica deliberadamente percepções da antiguidade a problemas sociais mais modernos. Temos a tradição neotomista, iniciada em 1879 quando o Papa Leão XIII emitiu a encíclica ‘Aeterni Patris’, conclamando os católicos a recuperarem as grandes percepções dos pensadores medievais. Estes são apenas alguns dos muitos recursos que os católicos podem usar, provando mais uma vez que o caminho mais seguro para a verdade não é aquele que evita ou enterra perspectivas desconhecidas, mas sim aquele que sintetiza percepções de uma ampla gama de fontes.

É claro que diferentes pessoas estarão inclinadas a aplicar as intuições da tradição católica a diferentes questões, algumas centradas em questões sociais, outras na espiritualidade cotidiana e outras ainda em questões de geopolítica, ciências ambientais ou bioética. Mas todas essas questões podem ser abordadas com maior zelo e confiança quando nos entendemos como parte de um esforço maior que transcende as limitações de nosso próprio lugar e tempo.

Nas profundezas de seu desespero, Boécio foi consolado pela Senhora Filosofia e seu bálsamo da verdade. Este foi um consolo que nenhum tirano terreno poderia tirar dele, e ainda está disponível para nós hoje. Nosso Senhor ofereceu uma promessa semelhante. Embora as nações possam se enfurecer e a pilhagem violenta, a verdade finalmente nos libertará.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1599331


quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Bento XVI: "Tudo se desmorona se falta a verdade"

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Élio Gasda


O Papa mais longevo da história da Igreja renunciou em 2013 alegando ‘incapacidade de administrar bem o ministério’. Como bispo emérito da Diocese de Roma, viveu seus últimos dias em um mosteiro, onde faleceu em 31 de dezembro de 2022. O último pontífice a renunciar foi Gregório XII, em 1415.

Para Bento XVI, ‘no mundo atual, omite-se quase totalmente o tema da verdade, parecendo algo demasiado grande para o homem’ por isso seu lema : Colaborador da Verdade. 

Foram três encíclicas : Deus Caritas Est, Spe salvi. Caritas in Veritate (CV) é sua encíclica social sobre o ‘desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade’. Foi publicada em 2009, com dois anos de atraso, devido à crise econômica que explodiu em 2007. A mais grave desde 1929, começou nos Estados Unidos e se alastrou pelo mundo, derrubou governos, gerou elevadas taxas de desemprego, aumento dos preços e a fome em todo planeta. ‘A fome ceifa a vida de muitíssimos Lázaros impedidos de sentar-se à mesa… do rico epulão’ (CV 27). A reforma agrária, o acesso à alimentação e à água como direitos universais de todos os seres humanos sem distinção ou discriminações são urgências (CV 27). Em pleno século XXI, ‘dar de comer aos famintos é um imperativo ético de Jesus. Eliminar a fome tornou-se um objetivo para paz e a vida na terra’ (CV 27).

Caritas in Veritate, dividida em sete capítulos e conclusão, recebeu muitas reações. Esquerdista! Socialista! Bradaram os capitalistas neoliberais. Será que realmente leram o texto de quase 130 páginas contendo 159 notas, escrito em latim por um teólogo alemão?

Ratzinger reserva o primeiro capítulo da CV à releitura da Populorum Progressio (PP) de Paulo VI. Escrita em 1967, é uma profunda reflexão sobre o desenvolvimento humano. ‘Deesenvolvimento não se reduz a simples crescimento econômico. O desenvolvimento somente é moral quando promove a todas as pessoas’ (PP 14). Para que os seres humanos possam ser cada mais humanos é preciso passar de ‘condições de vida menos humanas a condições de vida mais humanas’ (PP 20).

Como teólogo, Bento XVI foi ao essencial da fé : ‘A experiência de Deus leva a reconhecer no outro a imagem divina e a viver um amor que se torna cuidado do outro e pelo outro’ (CV 11). ‘Amor eterno e Verdade absoluta - constituem ‘a principal força propulsora para o autêntico desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade’ (CV 1). Esta vinculação desautoriza o assistencialismo descomprometido que não transforma a realidade (CV 4). A Caridade informada pela Verdade será sempre libertadora (CV 5).

A Verdade tem seu maior inimigo na mentira. Se verdade é o caminho da vida, a mentira leva à morte. O principal confronto de Jesus é com a mentira que mata (Jo 8,44-45). Matar a verdade leva a matar seres humanos (Jo 19,5). É preciso denunciar as políticas, as ideologias e os sistemas alicerçados na mentira.

A Doutrina Social da Igreja é expressão do amor ao próximo vinculado à Verdade (CV 2). Amor, Verdade e Justiça constituem uma unidade em Deus. A caridade exige a justiça : ‘O amor - caritas - é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz (CV 1). O amor ganha forma operativa na justiça como critério orientador da ação política que busca o bem comum (CV 6).

Toda a sociedade deve estar fundada no direito e na justiça. A justiça é medida e virtude que deve orientar a vida social e política. Sua concreção em estruturas sociais e estatais é competência da política. Mas cabe aos cristãos contribuir na formação da consciência ética fundada na justiça (CV 7). Querer o bem comum e trabalhar por ele é uma exigência de justiça e de caridade. Isso implica ‘valer-se daquele conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que deste modo toma a forma de pólis, cidade’ (CV 7).

Toda pessoa é chamada a entrar em comunhão fraterna na sociedade civil, na economia e na política (CV 2). Tolerar a injustiça é tolerar o sofrimento humano. O dever moral para com os que sofrem é dever de justiça.

Bento XVI confirma a Igreja como advogada da justiça e defensora dos Lázaros que morrem de fome às portas dos ricos (CV 27). A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica (Bento XVI).

‘Em Cristo, a caridade na verdade torna-se o Rosto da sua Pessoa’ (CV 1). Dar de comer a quem tem fome é revelar o rosto da Verdade que liberta!

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://domtotal.com/noticias/?id=1598952

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

É mentira que cada um tenha a “sua verdade”: a Verdade não é relativa

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 PONTIUS PILATE, CHRIST


‘O bispo da diocese norte-americana de Phoenix, dom Thomas Olmsted, escreveu um artigo em que fala do conceito da Verdade, que Cristo identificou consigo próprio : ‘Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida’.

‘Os homens e as mulheres têm fome insaciável da verdade; almejam respostas e sentido na vida. Nós fomos criados para a verdade porque fomos feitos à imagem de Deus. Pela nossa própria natureza como pessoas humanas, somos ordenados à verdade, temos fome de verdade e temos a obrigação moral de buscá-la’.

Ele retoma a definição apresentada por São Tomás de Aquino em sua obra máxima, a Suma Teológica :

‘A verdade é a conformidade do intelecto à realidade, seja do mundo físico, seja do mundo espiritual’.

Esta definição afirma a existência de uma realidade objetiva e não subjetiva : ‘ela existe independentemente do nosso conhecimento ou opinião’.

Este conceito objetivo encontra resistências ferozes em muita gente da nossa época : as pessoas ‘têm dificuldades para aceitar um conceito elementar de verdade’ porque preferem considerá-la como suposta ‘construção social’, como algo subjetivo, que cada um pode moldar ao seu bel-prazer e conveniência.

‘Reclamar a verdade absoluta, aquela em que todos devem crer e que todos devem seguir, é considerado por muitos como algo imoral, porque seria impôr a própria crença aos outros. Aos poucos, a verdade é catalogada como intolerância e preconceito contra o pensar dos outros.’ 

‘Houve tempos em que as pessoas mantinham um conjunto compartilhado de crenças em Deus e naquilo que Deus ensina e espera. Numa cultura pluralista, o Direito Natural era a base essencial para se construírem pontos em comum. Na sociedade contemporânea, o Direito Natural se reduz em geral a um não fator, o que implica um passo atrás na realidade, um passo atrás no mundo criado por Deus, uma retirar-se para dentro da mente de cada um, o que leva a perder por completo o contato com a realidade. É o que acontece quando nos distanciamos da realidade e buscamos a verdade em nossa própria mente em vez de buscá-la na criação e na revelação de Deus’.

A consequência dessa relativização da verdade já era exposta por São Paulo em sua Carta aos Romanos, na qual ele critica os homens que, ‘pela sua injustiça, mantêm a verdade refém (…) Substituíram a verdade de Deus pela mentira, adorando e servindo às criaturas em vez do Criador, que é bendito eternamente’.

O bispo continua, contundente :

‘Esta confusa noção da realidade chamada relativismo está no coração da crise que ameaça a cultura hoje. O relativismo muda o foco da realidade para o sujeito individual. E, dado que as pessoas têm percepções diferentes, a verdade é vista como relativa. Isto, porém, só pode levar a uma ‘ditadura’ de opiniões, porque quando não podemos apoiar-nos na realidade e na razão para provar o nosso argumento, ficamos discutindo e lutando pelo poder, o que resulta em caos e até mesmo em violência’.

A plena Verdade é o próprio Cristo.

‘O próprio Jesus é a Verdade, uma Verdade que vem de fora do mundo, mas que dá sentido ao mundo; uma Verdade absoluta e imutável. Quanto mais buscarmos a Verdade e quanto mais rápido nos conformarmos à Sua Santa Vontade, seja ela manifestada nas leis imutáveis da natureza, seja ela revelada na Sagrada Escritura, mais rapidamente encontraremos o significado, a felicidade e a realização para as quais fomos criados. Portanto, quanto mais conhecermos o Senhor, mais conheceremos a Verdade; porque a Verdade não é simplesmente um conjunto de fatos, mas um relacionamento pessoal com Deus. Diferente do relativismo, que constrói a sua casa na areia das opiniões subjetivas, Cristo nos chama a edificar a nossa vida sobre a rocha que é Ele. A Verdade tem o seu próprio poder, um poder que nenhum mal vencerá. Jesus encarna a esperança do triunfo final da verdade’.’


Fonte :

sábado, 14 de dezembro de 2019

História dos cristãos: entre manipulação e verdade

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
'Conquista de Constantinopla', de David Aubert
(Wikipedia/ Domínio público)

*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé


‘Como a história do cristianismo é transmitida para o público em geral? O que está por trás de uma seleção criteriosa dos fatos? Por que alguns eventos históricos e personagens receberam tanto destaque e outros não? Se formos analisar a fundo essa operação, chegaremos à conclusão que uma interpretação maniqueísta da história do cristianismo é algo que perdura há séculos.

Nos deparamos sempre com aquele antagonismo radical entre cristãos e pagãos, bárbaros e romanos, cruzados e invasores. É como se, no caso dos cristãos, seja um sacrilégio constatar que a história da religião com maior número de adeptos do mundo também é feita de sombras. É quase um pecado dizer que a maioria das campanhas militares das cruzadas medievais visavam muito mais a expansão dos territórios que a propagação da fé ou a defesa dos territórios sagrados, por exemplo. Negar fatos históricos, reproduzidos após anos de pesquisa criteriosa, é mais um indicativo dessa imaturidade na fé revestida de ‘zelo’ que caracteriza muitos católicos da atualidade.

Por outro lado, há quem, em vez de contribuir com a reflexão, acaba fazendo o contrário. Muitos ataques gratuitos contra a Igreja Católica também são desprovidos de qualquer fundamento científico. Se por um lado o iluminismo gerou um primeiro impulso na busca dessas respostas, no século 18, esse mesmo movimento também foi uma verdadeira fábrica de análises incompletas a respeito do catolicismo.

E muitos desses conceitos iluministas ainda hoje compõem as principais cartilhas da disciplina de história. Um deles foi a afirmação de que a Igreja teria propagado ‘o mito da terra plana’. A instituição, ao contrário, praticamente desconsiderava essa teoria, a qual foi desenvolvida por um monge grego do século 6, chamado Cosme Indicopleustes. Só para citar um exemplo.

Porém, em resposta aos ataques, a Igreja acabou respondendo mal. E assim ela passou a produzir uma narrativa paralela caracterizada majoritariamente por triunfos. Vemos essa tendência se repetir entre os religiosos que fazem sucesso nas redes sociais atualmente – o areópago virtual onde cada qual se sente no direito de antepor a ideologia à pesquisa científica. Absolutismo historiográfico : as redes sociais tem sido um antro daquelas que a praticam.

É difícil questionar um popstar da fé sem, no mínimo, ser tachado de herege. E assim se coloca em descrédito o trabalho sério de historiadores de carreira que simplesmente identificam que a história do cristianismo é composta por uma trajetória tão humana como a de qualquer outra religião ou instituição. Uma história feita de luzes e sombras, disputas e conquistas, erros e acertos.

Já nos primeiros séculos, os escritos hagiográficos eram alguns dos meios mais eficazes de propagação da religião nascente. Muitas dessas histórias, reunidas numa espécie de coletânea, elencavam os feitos heróicos de alguns personagens. Tal narrativa criou a consciência coletiva de que a perfeição e o heroísmo seriam as principais características de uma história protagonizada por cristãos.

Passou-se a reproduzir a história do cristianismo sem aquela interdisciplinaridade proposta pela Nouvelle Histoire dos anos 70, a qual combate justamente esse positivismo praticado por muitos escritores católicos na atualidade. Confiamos à teologia a tarefa de produzir veredictos por causa do medo que ainda temos de chegar às faíscas de verdade que muitos fragmentos nos deixaram. A resposta imediata de que ‘foi a providência divina’ é muito mais cômoda que os porquês salutares que perturbam, mas enriquecem a existência.’


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terça-feira, 10 de setembro de 2019

O problema da ditadura do relativismo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Prof. Felipe Aquino



O Papa Emérito Bento XVI usou essa expressão para explicar o regime filosófico que se deseja impor no mundo. Há duas formas de ditadura : das armas e da cultura. Essa última é muito pior, porque dura muito mais tempo. A expressão relativismo mostra a ideia central, isto é, a ausência da verdade absoluta, renascimento de uma ideologia antiga. É uma ditadura, porque deseja proibir você de sustentar o contrário. Tudo passa a ser, então, relativo, exceto o próprio relativismo, que é um absurdo.

Ora, se tudo é relativo e não existe a verdade objetiva, então, a própria afirmação ‘tudo é relativo’ ou ‘não existe verdade absoluta’ também não podem ser tidas como verdadeiras. Além do relativismo ser um grave erro, que destrói as bases da civilização, o pior de tudo é não admitir que alguém dele discorde. Essa triste mentalidade, na verdade, é uma lógica muito esperta e maldosa daqueles que desejam eliminar a religião. Se a liberdade é absoluta para pensar no que eu quero, então, todas as afirmações são igualmente aceitas, e você joga tudo no mesmo saco, mentiras e verdades.

A incoerência se nota quando se percebe que os defensores da verdade absoluta são perseguidos e caluniados; ora, então ‘a liberdade não é tão absoluta nem a verdade tão relativa’, como disse o amigo advogado Rafael Vitola. E ele afirma, com razão, que ‘o que está por trás disso não é o amor à liberdade, mas o ódio à verdade. Sob a capa de uma liberdade absoluta – que, aliás, seria imoral –, esconde-se a mais terrível das tiranias. Na realidade, nem os que propugnam a verdade relativa nela acreditam. Pensam, no fundo, que ela é absoluta – pois negam a liberdade a seus opositores. Sua agravante é a hipocrisia. E a hipocrisia – atroz e autoritária – é sua arma principal’.

O relativismo está na moda?

É a luta do bem contra o mal; a luta da verdade contra a mentira, da luz contra as trevas. Na homilia que o então Cardeal Joseph Ratzinger, hoje Papa emérito Bento XVI, pronunciou na Missa ‘Pro Eligendo Pontífice’, celebrada no dia 18 de abril de 2005, às vésperas de sua eleição como Papa, ele disse :

‘Quantos ventos de doutrina conhecemos nestas últimas décadas, quantas correntes ideológicas, quantas modas do pensamento. A pequena barca do pensamento de muitos cristãos, com frequência, fica agitada pelas ondas, levadas de um extremo a outro: do marxismo ao liberalismo, até o libertinismo; do coletivismo ao individualismo radical; do ateísmo a um vago misticismo religioso; do agnosticismo ao sincretismo etc. A cada dia, nascem novas seitas e se realiza o que diz São Paulo sobre o engano dos homens, sobre a astúcia que tende a induzir no erro (cf. Efésios 4, 14). Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, é etiquetado com frequência como fundamentalismo.

Enquanto que o relativismo, ou seja, o deixar-se levar «guiados por qualquer vento de doutrina», parece ser a única atitude que está na moda. Vai-se construindo uma ‘ditadura do relativismo’, que não reconhece nada como definitivo e que só deixa como última medida o próprio eu e suas vontades’.

Nós temos outra medida : o Filho de Deus, o verdadeiro homem. Ele é a medida do verdadeiro humanismo. «Adulta» não é uma fé que segue as ondas da moda e da última novidade; adulta e madura é uma fé profundamente arraigada na amizade com Cristo. Essa amizade nos abre a tudo o que é bom e nos dá a medida para discernir entre o verdadeiro e o falso, entre o engano e a verdade’.

Bento XVI e João Paulo II

Em outra ocasião, na visita à Polônia, na Praça da Vitória (Pilsudski) de Varsóvia, a mesma onde, em 1979, João Paulo II exaltou os seus compatriotas, encorajando-os a vencer o governo comunista, o Papa emérito Bento XVI convidou os 300 mil fiéis que participaram da Eucaristia, a ‘não cair na tentação do relativismo ou da interpretação subjetiva e seletiva da Sagrada Escritura’, denunciando a tentativa da parte de ‘pessoas ou ambientes falsificarem a Palavra de Deus e retirar do Evangelho as verdades’ segundo eles, ‘demasiado incômodas para o homem moderno’.

O Papa anterior, João Paulo II, foi à Polônia para combater o comunismo. Bento XVI voltou lá para combater o ‘relativismo religioso’ e a ‘ditadura do relativismo’, as novas bases do secularismo. Para esse relativismo, que nega que possa haver uma verdade absoluta e permanente, ficando por conta de cada um definir a ‘sua’ verdade e aquilo que lhe parece ser o seu bem, ‘a pessoa se torna a medida de todas as coisas’, como dizia o filósofo grego Protágoras.

Evidentemente, a Igreja rejeita isso, porque há verdades que são permanentes. As verdades da fé e da moral cristã são perenes, porque foram dadas por Deus. Cristo afirmou solenemente : ‘Eu sou a Verdade’ (Jo 14,6); ‘a verdade vos libertará’ (Jo 8,32); e Ele disse a Pilatos que veio ao mundo exatamente ‘para dar testemunho da verdade’ (Jo 18,37). São Paulo disse que ‘Deus quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade’ (1Tm 2,4), e que ‘a Igreja é a coluna e o fundamento da verdade’ (1Tm 3,15).

O dicionário da Verdade

Ora, se negarmos que existe a verdade objetiva e perene, o Cristianismo fica destruído desde a sua raiz. O Evangelho é o dicionário da Verdade. Segundo o relativismo, no campo moral não existe ‘o bem a fazer e o mal a evitar’, pois o bem e o mal são relativos. Isso destrói completamente a moral católica que moldou o Ocidente e a nossa civilização. Ele ignora a lei natural, que é a lei de Deus colocada na consciência de todo ser humano, desde que ele dispõe do uso da razão.

Por causa do relativismo moral, os governantes propõem leis contra a Lei Natural que Deus colocou no coração de todos os homens. Dessa forma, a palavra do legislador humano vai superando a do Legislador Divino, que é a mesma para todos os homens. Quem não estiver dentro do ‘politicamente correto’ é anulado, desprezado, zombado com cinismo e perseguido.

O relativismo derruba as normas morais válidas para todos os homens. Ele é ateu, ele vê, na religião e na moral católicas, um obstáculo e um adversário, pois Deus é visto como um escravizador do homem e a moral católica destinada a tornar o homem infeliz. O relativismo atual coloca a ciência como uma deusa que vai resolver todos os problemas do homem; e que está acima da moral e da religião, mas se esquece de dizer que o homem nunca foi tão infeliz como hoje; nunca houve tantos suicídios, nunca se usou tanto antidepressivo e remédio para os nervos; nunca se viu tanta decadência moral, destruição da família e da sociedade.

Uma nova ‘teologia liberal’

O relativismo é embalado também pelo ceticismo e utilitarismo, que só aceita o que pode ajudar a viver num bem-estar hedonista aqui e agora. Há uma aversão ao sacrifício e à renúncia. Infelizmente, esse perigoso relativismo religioso, que tudo destrói, penetrou sorrateiramente também na Igreja, especialmente nos seminários e na teologia. Isso levou o Papa João Paulo II a alertar os bispos na Encíclica Veritatis Spendor, de 1992, sobre o perigo desse relativismo que anula a moral católica. No centro da ‘crise’, o Papa viu uma grave ‘contestação ao patrimônio moral da Igreja’.

Ele diz : ‘Não se trata de contestações parciais e ocasionais, mas de uma discussão global e sistemática do patrimônio moral. Rejeita-se, assim, a doutrina tradicional sobre a lei natural, sobre a universalidade e a permanente validade dos seus preceitos; consideram-se simplesmente inaceitáveis alguns ensinamentos morais da Igreja’ (n. 4).

E chama a atenção para o fato grave de que ‘a discordância entre a resposta tradicional da Igreja e algumas posições teológicas está acontecendo mesmo nos Seminários e Faculdades eclesiásticas’. (idem) No centro da ‘crise moral’ enfatizada pelo Pontífice, ele revela qual é a sua causa – o homem quer ocupar o lugar de Deus : ‘A Revelação ensina que não pertence ao homem o poder de decidir o bem e o mal, mas somente a Deus’ (Gen 2,16-17). Não é lícito que cada cristão queira fazer a fé e a moral segundo o ‘seu’ próprio juízo do bem e do mal.

É por causa desse relativismo moral que encontramos, vez ou outra, religiosos e sacerdotes que aceitam o divórcio, o aborto, a pílula do dia seguinte, o casamento de homossexuais, a ordenação de mulheres, a eutanásia, a inseminação artificial, a manipulação de embriões, o feminismo e outros erros que o Magistério da Igreja condena explicitamente.

Esse mesmo relativismo é a razão que move os contestadores do Papa, do Vaticano, dos Bispos e da hierarquia da Igreja, como se tivessem usurpado o poder sagrado, e não recebido do próprio Cristo pelo sacramento da Ordem. Esse relativismo fez surgir na Igreja uma ‘teologia liberal’ de Rudolf Bultman, que por sua vez alimentou uma teologia ‘da libertação’, uma teologia ‘feminista’, e agora falam já de uma ‘teologia gay’.


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