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terça-feira, 5 de março de 2024

Unidade para salvar a humanidade

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Dom Reginaldo Andrietta,

Bispo da Diocese de Jales, SP


O mundo enfrenta, atualmente, uma de suas piores crises humanitárias. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), se todas as pessoas que necessitam de ajudas humanitárias emergenciais se juntassem em uma nação, essa seria a quinta nação mais populosa do planeta, com perto de 235 milhões de habitantes. A Organização das Nações Unidas também destaca, entre as principais causas da extrema pobreza que atinge 736 milhões de pessoas, diversos tipos de conflitos.

Nesses conflitos, em geral, de cunho político, econômico, étnico e religioso, comumente as elites locais, associadas a interesses de grandes nações e corporações internacionais, buscam apropriar-se dos poderes do Estado, impor-se midiática e militarmente, tirar proveito de recursos públicos e naturais e beneficiar seus negócios. Embora os setores sociais e econômicos mais frágeis sofram as piores consequências desses conflitos, todos perdem.

Conflitos assim, além de gerarem mortes e miséria, destroem culturas e o potencial de fraternidade entre povos e nações. Conflitos nunca são benéficos; como solucioná-los senão sanando suas causas, por meio do diálogo civilizado, fundado nos valores de fraternidade, justiça, liberdade, corresponsabilidade? Como, pois, exercer o diálogo no Brasil atual, com esses critérios, neste tempo de grandes tensões que afetam nossa vida cotidiana?

Consideremos, por exemplo, que o grande número de mortos pela covid-19 podia ter sido evitado se, desde o início dessa pandemia, cidadãos, instituições e gestores públicos tivessem agido unificadamente, de modo mais corresponsável. Mortes podem ainda ser contidas. No entanto, prevalecem autoritarismos políticos e estímulos a polarizações e divisões na sociedade, que sufocam clamores populares em defesa da saúde pública.

Quais outras situações conflituosas, de grande magnitude, afetam-nos? Desigualdades econômicas extremas, racismo e intolerância a modos de vida, a religiões e a visões políticas diferentes. Divididos somos facilmente dominados e explorados. Desunida, nossa nação continua sendo saqueada. Vale, pois, enfatizar a afirmação de Cristo : ‘Todo reino dividido ficará em ruínas; toda cidade ou casa dividida não se sustentará’ (Mt 12,25).

Como acabar com o que nos divide e construir uma convivência social pacífica e justa? O que a Igreja nos propõe, por meio da Campanha da Fraternidade deste ano, é simples e fundamental : derrubar os muros da inimizade por meio de nossa comunhão em Cristo, fonte de paz. Na perspectiva bíblica, a paz é fruto da justiça (cf. Is 32,17), construída pelo diálogo amoroso que une corações e unifica ações em prol de um projeto comum de sociedade.

Rejeitemos, portanto, tudo o que divide o próprio corpo de Cristo, a Igreja. Testemunhemos o amor fraterno de forma inquestionável, pois assim seremos reconhecidos como discípulos de Jesus (cf. Jo 13,35). Sejamos solidários, especialmente com os que necessitam de ajuda emergencial para sobreviver. Unamo-nos contra todo tipo de dominação e violência. Almejemos, enfim, ser ‘perfeitos na unidade’ (Jo 17,23) para salvar a humanidade.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/unidade-para-salvar-a-humanidade.html


sexta-feira, 18 de março de 2016

'O caminho rumo à unidade dos cristãos' - Quinta pregação da Quaresma de 2016

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Canada: documento vescovi del 50° dell’Unitatis Redintegratio
*Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)

                          Reflexão sobre a ‘Unitatis Redintegratio’

  1. O caminho ecumênico após o Vaticano II
A moderna ciência hermenêutica tornou familiar o princípio de Gadamer da ‘história dos efeitos’ (Wirkungsgeschichte). De acordo com este método, compreender um texto exige levar em conta os efeitos que ele produziu na história, inserindo-se nessa história e dialogando com ela [1]. O princípio se mostra muito útil quando aplicado à interpretação da Escritura. Ele nos diz que não podemos compreender plenamente o Antigo Testamento a não ser à luz do seu cumprimento no Novo – e que não se pode entender o Novo Testamento se não à luz dos frutos que ele produz na vida da Igreja. Não é suficiente, portanto, o habitual estudo histórico-filológico das ‘fontes’, ou seja, das influências sofriadas por um texto; é necessário levar em conta também as influências exercidas por ele. É a regra que Jesus tinha formulado muito tempo antes, dizendo que toda árvore se conhece pelos frutos (cf. Lc 6, 44).
Guardadas as proporções, este princípio – como vimos nas meditações anteriores – também se aplica aos textos do Vaticano II. Hoje eu quero mostrar a sua aplicação, especialmente, ao decreto sobre o ecumenismo, Unitatis Redintegratio, que é o tema desta meditação. Cinquenta anos de caminho e progresso no ecumenismo estão demonstrando as potencialidades contidas naquele texto. Depois de recordar as razões profundas que levam os cristãos a procurar a unidade entre si, e depois de observar entre os crentes das diversas Igrejas a difusão de uma nova atitude a este respeito, os Padres conciliares expressaram assim a intenção do documento :
Portanto, considerando com alegria todos esses fatos, depois de ter exposto a doutrina sobre a Igreja e movido pelo desejo de restaurar a unidade entre todos os discípulos de Cristo, este sagrado Concílio pretende agora propor a todos os católicos as ajudas, diretrizes e modos para que possam responder a esta vocação e a esta graça divina[2].
As realizações ou frutos deste documento foram de dois tipos. No âmbito doutrinal e institucional, foi constituído o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos; foram também lançados diálogos bilaterais com quase todas as confissões cristãs, a fim de promover um melhor conhecimento mútuo, um debate de posições e a superação dos preconceitos.
Junto com este ecumenismo oficial e doutrinal, desenvolveu-se desde o início um ecumenismo do encontro e da reconciliação dos corações. Neste âmbito, destacam-se alguns encontros célebres que marcaram o caminho ecumênico nestes 50 anos : o de Paulo VI com o patriarca Atenágoras, os inúmeros encontros de João Paulo II e de Bento XVI com os líderes de diferentes igrejas cristãs, do papa Francisco com o patriarca Bartolomeu em 2014 e, mais recentemente, com o patriarca de Moscou, Cirilo, em Cuba, que abriu um novo horizonte para o caminho ecumênico.
A este mesmo ecumenismo espiritual pertencem ainda as muitas iniciativas em que os crentes de diferentes Igrejas se encontram para orar e proclamar juntos o Evangelho, sem tentativas de proselitismo e na plena fidelidade de cada um à própria Igreja. Eu tive a graça de participar de muitos desses encontros. Um deles permanece particularmente vivo na minha lembrança porque foi como uma profecia daquilo a que o movimento ecumênico deveria nos levar.
Em 2009, foi realizada em Estocolmo uma grande manifestação de fé chamada ‘Jesus manifestation’, ‘Manifestação por Jesus’. No último dia, os crentes das várias Igrejas, cada um por uma via diferente, caminhavam em procissão para o centro da cidade. O pequeno grupo local de católicos, liderados pelo bispo local, também andava pelo seu caminho, rezando. Chegados ao centro, as filas se rompiam e era uma única multidão que proclamava o senhorio de Cristo perante 18.000 jovens e transeuntes atônitos. Aquela que pretendia ser uma manifestação ‘por’ Jesus se tornou uma poderosa manifestação ‘de’ Jesus. Sua presença podia quase ser tocada com a mão num país não habituado a manifestações religiosas desse tipo.
Esses desenvolvimentos do documento sobre o ecumenismo também são fruto do Espírito Santo e sinal do invocado novo Pentecostes. Como é que o Ressuscitado convenceu os apóstolos a se abrirem para os gentios e a acolhê-los na comunidade cristã? Levou Pedro até a casa do centurião Cornélio e o fez assistir à vinda do Espírito sobre os presentes com as mesmas manifestações que os apóstolos tinham experimentado no dia de Pentecostes : o falar em línguas, o glorificar a Deus em alta voz. Não restou a Pedro senão tirar a conclusão : ‘Se Deus deu a eles o mesmo dom que deu a nós… quem era eu para pôr impedimentos a Deus?’ (Atos 11, 17).
O Senhor ressuscitado está fazendo a mesma coisa hoje. Ele envia o seu Espírito e os seus carismas para os fiéis das mais diversas Igrejas, mesmo às que acreditávamos mais distantes de nós, muitas vezes com idênticas manifestações externas. Como não ver nisto um sinal de que Ele nos exorta a aceitar-nos e reconhecer-nos como irmãos, embora ainda a caminho de uma unidade visível mais plena? Em todo caso, foi isso o que me converteu ao amor pela unidade dos cristãos, habituado como estava pelos meus estudos pré-conciliares a ver ortodoxos e protestantes apenas como ‘adversários’ a refutar em nossas teses de teologia.

  1. A um ano do V Centenário da Reforma Protestante (1517) 
Na Quaresma do ano passado, tentei mostrar os resultados obtidos pelo diálogo ecumênico, no campo da teologia, com o Oriente ortodoxo. O título que dei ao livreto dessas meditações foi ‘Dois pulmões, uma única respiração’, que resume o nosso rumo e o que, em grande parte, já foi realizado [3]. Nesta ocasião, eu gostaria de voltar a atenção para as relações com o outro grande interlocutor do diálogo ecumênico, o mundo protestante, sem entrar em questões históricas e doutrinais, mas para mostrar que tudo que nos impulsiona a avançar no esforço de restaurar a unidade do Ocidente cristão.
Uma circunstância torna esse esforço particularmente atual. O mundo cristão se prepara para os quinhentos anos da Reforma em 2017. É vital, para o futuro da Igreja, não desperdiçarmos esta oportunidade mantendo-nos prisioneiros do passado, ou simplesmente usando tons mais irônicos ao apontar erros e razões de ambos os lados. É o momento, penso eu, de um salto qualitativo, como quando um barco chega à eclusa de um canal que lhe permitem continuar a navegação num nível superior.
A situação mudou profundamente nestes quinhentos anos, mas, como sempre, é difícil notá-lo. As questões que causaram a separação entre a Igreja de Roma e a Reforma no século XVI foram, sobretudo, as indulgências e o modo como ocorre a justificação do ímpio. Mas, de novo, podemos dizer que estes são os problemas determinantes da fé do homem de hoje? Numa conferência realizada no ‘Centro Pró-União’ de Roma, o cardeal Walter Kasper salientava justamente que, enquanto o problema existencial número um para Lutero era como superar o sentimento de culpa e obter um Deus benévolo, o problema hoje é o contrário : como devolver ao homem de hoje o verdadeiro senso do pecado que ele perdeu completamente.
Acredito que todas as discussões seculares entre católicos e protestantes sobre a fé e as obras acabaram nos fazendo perder de vista o ponto principal da mensagem paulina. O que o apóstolo quer afirmar acima de tudo em Romanos 3 não é que somos justificados pela fé, mas que somos justificados pela fé em Cristo; não é tanto que somos justificados pela graça quanto que somos justificados pela graça de Cristo. Cristo é o coração da mensagem, antes ainda que a graça e a fé.
Depois de apresentar nos dois capítulos precedentes da carta a humanidade em seu estado universal de pecado e perdição, o Apóstolo tem a incrível coragem de proclamar que esta situação mudou radicalmente ‘em virtude da redenção realizada por Cristo’, ‘pela obediência de um só homem’ (Rm 3, 24; 5, 19).
A afirmação de que esta salvação é recebida pela fé, e não pelas obras, está presente no texto e era a coisa mais urgente sobre a qual lançar luz no tempo de Lutero, quando era pacífico, ao menos na Europa, que se tratava da fé em Cristo e da graça de Cristo. Mas esta vem em segundo plano, não no primeiro. Cometemos o erro de reduzir a um problema de escolas, dentro do cristianismo, aquela que, para o Apóstolo, era uma afirmação bem mais ampla e universal. Hoje somos chamados a redescobrir e proclamar juntos o fundo da mensagem paulina.
Na descrição das batalhas medievais há sempre um momento em que, superados os arqueiros, a cavalaria e todo o resto, concentravam-se todos em torno do rei. Ali se decidia o fim da batalha. Para nós também a batalha é hoje em torno do Rei… A pessoa de Jesus Cristo é o que realmente está em jogo. Precisamos voltar, do ponto de vista da evangelização, à época dos apóstolos. Há uma analogia entre o nosso tempo e o deles. Eles tinham diante de si de um mundo pré-cristão; no Ocidente, temos diante de nós um mundo largamente pós-cristão.
Quando o apóstolo Paulo quer resumir em uma frase a essência da mensagem cristã, ele não diz ‘Anunciamos esta ou aquela doutrina’. Ele diz : ‘Nós anunciamos Cristo crucificado’ (1 Cor 1,23). E ainda : ‘Nós anunciamos Cristo Jesus, o Senhor’ (2 Cor 4,5). Este é o verdadeiro ‘articulus stantis et cadentis Ecclesiae’, o artigo com que a Igreja fica em pé ou cai.
Isto não significa ignorar tudo o que a Reforma protestante produziu de novo e de válido, seja na teologia, seja na espiritualidade, especialmente com a reafirmação do primado da Palavra de Deus. Significa, antes, permitir que toda a Igreja se beneficie das suas conquistas positivas, livrando-se de certos excessos e enrijecimentos devidos ao calor do momento, a ingerência da política e às polêmicas sucessivas.
Um passo significativo nesta direção foi a ‘Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação’, assinada em 31 de outubro de 1999 entre a Igreja católica e a Federação Mundial das Igrejas Luteranas [4]. Em sua conclusão, ela diz :
A compreensão da doutrina da justificação exposta nesta Declaração mostra a existência de um consenso entre luteranos e católicos sobre verdades fundamentais da doutrina da justificação. À luz desse consenso, são aceitáveis as diferenças ​​que subsistem no que diz respeito à linguagem, à elaboração teológica e às ênfases tomadas pela compreensão da justificação […] Por este motivo, a elaboração luterana e a católica da fé na justificação estão abertas uma à outra, em suas diferenças, e não invalidam o consenso atingido sobre verdades fundamentais[5].
Eu estava presente quando o acordo foi proclamado em São Pedro durante vésperas solenes presididas pelo papa João Paulo II e pelo arcebispo de Uppsala, Bertil Werkström. Uma observação que o papa fez na homilia me impactou. Expressava, se bem me lembro, este pensamento : chegou a hora de parar de fazer desta doutrina da justificação pela fé um tema de lutas e disputas entre teólogos, e de ajudar todos os batizados, em vez disso, a fazerem desta verdade uma experiência pessoal e libertadora. Desde aquele dia, eu nunca deixei, toda vez que tive a oportunidade na minha pregação, de exortar os irmãos a fazerem essa experiência.
A justificação mediante a fé em Cristo deveria ser pregada por toda a Igreja e com maior vigor do que nunca. Mas não mais em oposição às ‘boas obras’, que é uma questão superada e resolvida, mas em oposição, se a algo, à pretensão do mundo secularizado de salvar-se sozinho, com a sua ciência, com a tecnologia ou com técnicas espirituais de invenção própria. Estou convencido de que, se estivessem vivo hoje, esta seria a maneira de Lutero, Calvino e dos outros reformadores de pregar a justificação gratuita mediante a fé!
As sociedades modernas – lemos num livro que fez história – são construídas sobre a ciência. Devem a ela a sua riqueza, o seu poder e a certeza de que riquezas e poderes ainda maiores estarão amanhã disponíveis ao homem, se ele quiser […]. Equipadas de todo poder, dotadas de todas as riquezas que a ciência lhes oferece, as nossas sociedades ainda tentam viver e ensinar sistemas de valores já minados na própria base por esta mesma ciência[6].
Os ‘sistemas de valores ultrapassados’, para o autor, são, naturalmente, os sistemas religiosos. Jean-Paul Sartre chega à mesma conclusão a partir de um ponto de vista filosófico. Ele põe nos lábios de um seu personagem : ‘Eu mesmo me acuso e só eu posso absolver-me, eu, o homem. Se Deus existe, o homem não é nada[7]. E a esse tipo de desafios do cientificismo ateu e do secularismo devem responder os cristãos de hoje com a doutrina de que ‘o homem não é justificado diante de Deus pelas próprias obras, mas pela graça e pela fé’ (cf. Gal 2, 16).

  1. Além das fórmulas 
Estou convencido de que sobre o diálogo ecumênico com as igrejas protestantes pesa com força o freio das fórmulas. Explico. As formulações doutrinais e dogmáticas, que, em seu início, eram fruto de processos vitais e refletiam a vida coral da comunidade e a verdade laboriosamente alcançada, tendem com o passar do tempo a se enrijecer e se tornar ‘palavras de ordem’, etiquetas que indicam alguma ‘pertença’. A fé não termina mais na realidade da coisa, mas na sua formulação. Estamos no oposto do que deveria ser, de acordo com a famosa declaração de Tomás de Aquino : ‘Fides non terminatur ad enuntiabile, ad sed rem’ : a fé não termina em sua formulação, mas na coisa em si [8].
É o fenômeno do formalismo, já vivo na antiguidade uma vez terminada a fase de entendimento dos grandes dogmas [9]. Só recentemente se entendeu, por exemplo, que as divisões no Oriente cristão entre calcedonianos e as chamadas Igrejas monofisitas ou nestorianas se baseavam, em muitos casos, em fórmulas e no sentido diferente aplicado, nelas, aos termos ousia e hipóstase, que não tocavam a substância da doutrina. Foi possível restaurar, assim, a comunhão entre e com várias Igrejas orientais.
Este obstáculo é especialmente visível nas relações com as Igrejas da Reforma. Fé e obras, Escritura e tradição : são contraposições compreensíveis e, em parte, justificadas no seu nascimento, mas que se tornam enganosas se forem repetidas e mantidas como se nada tivesse mudado em quinhentos anos de vida.
Consideremos a contraposição entre fé e obras. Ela faz sentido se por boas obras se entendem de modo especial (como infelizmente acontecia nos tempos de Lutero) indulgências, peregrinações, jejuns, esmolas, velas votivas e assim por diante. Deixa de fazer sentido se por boas obras entendemos as obras de caridade e de misericórdia. Jesus, no Evangelho, nos adverte que sem elas não entraremos no reino dos céus – e que Ele será forçado a dizer : ‘Afasta-te de mim’. Não somos justificados, portanto, pelas boas obras, mas não somos salvos sem as boas obras. Nisto acreditamos todos, católicos e protestantes, e já o dizia o Concílio de Trento.
O mesmo deve ser dito da contraposição entre Escritura e tradição, o vem à tona tão logo se toca o problema da revelação, como se os protestantes tivessem só as Escrituras e os católicos Escritura e Tradição juntas. Mas, na realidade, não há nenhuma Igreja sem a própria tradição. O que explica a existência de tantas denominações diferentes dentro do protestantismo se não a sua forma diferente de interpretar as Escrituras? E o que é a Tradição, no seu conteúdo mais verdadeiro, se não, precisamente, a Escritura lida na Igreja e pela Igreja?
Nem mesmo a fórmula luterana ‘simul iustus et peccator’, ‘justo e pecador ao mesmo tempo’, é um obstáculo intransponível para a comunhão. Faz parte da tradição católica, desde o tempo dos Padres, a definição da Igreja como ‘casta meretriz’ (casta meretrix) e como ‘santa e sempre necessitada de reforma[10]. O que é dito da Igreja como um todo, como corpo de Cristo, não se deveria aplicar também a cada um dos seus membros?
O que pode estar sujeito a explicação diferente e complementar é a forma de se entender essa coexistência de santidade e pecado no homem redimido. No anexo à declaração conjunta sobre a justificação há uma explicação da fórmula ‘simul iustus et peccator’ que não está em desacordo com a doutrina católica. Afirma-se que a justificação opera uma real renovação na vida do batizado, ainda que nunca se torne uma posse adquirida, na qual o homem possa apoiar-se diante de Deus, mas permaneça sempre dependente da ação do Espírito Santo.
Em 1974, uma notícia surpreendeu e divertiu o mundo inteiro. Um soldado japonês, enviado durante a última guerra mundial a uma ilha das Filipinas para se infiltrar entre os inimigos e recolher informações, tinha vivido trinta anos escondendo-se aqui e ali pela selva e alimentando-se de raízes, frutas e alguma caça, convencido de que guerra ainda estava acontecendo e de que ele ainda estava em sua missão. Quando enfim o encontraram, não foi fácil convencê-lo de que a guerra tinha acabado e de que ele podia voltar para casa. Eu acho que acontece algo semelhante entre os cristãos. Há cristãos que é preciso convencer, em ambos os lados, de que a guerra acabou, de que as guerras de religião entre católicos e protestantes acabaram. Temos muito mais o que fazer em vez de guerra uns contra os outros! O mundo esqueceu, ou nunca conheceu, o seu Salvador, Aquele que é a luz do mundo, o caminho, a verdade e a vida, e nós perdemos tempo polemizando entre nós?

  1. Unidade na caridade 
Mas não é suficiente este motivo prático para fazer a unidade dos cristãos. Não basta estarmos unidos na evangelização e na ação de caridade. Este é um caminho que o movimento ecumênico experimentou em seu início com o movimento ‘Vida e Ação’ (‘Life and Work’), mas que logo se revelou insuficiente. Se a unidade dos discípulos deve ser um reflexo da unidade entre o Pai e o Filho, ela deve ser, acima de tudo, uma unidade de amor, porque esta é a unidade que reina na Trindade. As três pessoas divinas não são unidas por ‘operarem conjuntamente’ a criação e todas as outras obras ad extra; elas o são no seu próprio ser. A Escritura nos exorta a ‘fazer a verdade na caridade – veritatem facientes in caritate’ (Ef 4, 15). E Santo Agostinho diz que ‘não se entra na verdade senão pela caridade – non intratur in veritatem nisi per caritatem[11].
O extraordinário sobre esse caminho para a unidade baseado no amor é que ele já está escancarado diante de nós. Não podemos ‘queimar etapas’ no tocante à doutrina, porque as diferenças existem e devem ser resolvidas com paciência nas instâncias apropriadas. Podemos, porém, ‘queimar etapas’ na caridade e ser totalmente unidos desde já. O sinal verdadeiro e certo da vinda do Espírito não é, como escreve ainda Santo Agostinho, o falar em línguas, mas o amor pela unidade : ‘Sabeis que tendes o Espírito Santo quando permitis que adira o vosso coração à unidade através da sincera caridade[12].
Pensemos no hino à caridade de São Paulo. Cada frase adquire um significado atual e novo se aplicada ao amor entre membros das diferentes Igrejas cristãs, nas relações ecumênicas :
A caridade é paciente…
A caridade não é invejosa…
Não procura só o seu interesse [ou só os interesses da sua própria Igreja].
Não leva em conta o mal recebido [quando muito, o mal causado ​​ao outro!].
Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade [não se alegra com as dificuldades das outras Igrejas, mas sim com os seus sucessos espirituais].
Tudo crê, tudo espera, tudo suporta’ (l Cor 13, 4s).
Amar-se’, foi dito, ‘não significa olhar-se um ao outro, mas olhar juntos na mesma direção’. Mesmo entre os cristãos, amar-se quer dizer olhar na mesma direção que é Cristo. ‘Ele é a nossa paz’ (Ef 2, 14). Se nos convertermos a Cristo e formos juntos para Ele, nós, cristãos, nos aproximamos entre nós até ser, como Ele pediu, ‘um só com Ele e com o Pai’ (cf. Jo 17, 21). Acontece como com os raios de uma roda. Eles partem de pontos distantes da circunferência, mas, à medida que se aproximam do centro, também se aproximam entre si, até formar um só ponto. Acontece como naquele dia em Estocolmo…
Estamos nos aprestando a celebrar a Páscoa. Na cruz, Jesus ‘derrubou o muro de separação que havia no meio, a inimizade […] Por meio dele, podemos todos apresentar-nos ao Pai em um só Espírito’ (Ef 2, 14-18). Nós deixemos de fazê-lo, para a alegria do Coração de Cristo e para o bem do mundo inteiro.

Fonte :
*Artigo na íntegra
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[1] Cf H.G. Gadamer, Wahrheit und Methode, Tübingen 1960.
[2] UR, 1.
[3] Due polmoni, un unico respiro. Oriente e Occidente di fronte ai grandi misteri della fede. Libreria Editrice Vaticana 2015.
[4] O texto da declaração conjunta pode ser encontrado na Enchiridion Vaticanum (EV) 17,744-817.
[5] Ib, núm. 40.
[6] J. Monod, Il caso e la necessità, Mondadori, Milão 1970, 136s.
[7] J.-P. Sartre, O diabo e o bom Deus, X, 4, Gallimard, Paris 1951, p. 267 s.
[8] S.Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-IIae , q. 1,a.2,ad 2.
[9] G. L. Prestige, God in Patristic Thought, Londres 1952, cap. XIII; ed. italiana  Dio nel pensiero dei Padri, Bolonha, Il Mulino, 1969, pp. 273 ss. (Il trionfo del formalismo).
[10] Cf. H.U. von Balthasar, ‘Casta meretrix, in  Sponsa Chnristi, Morcelliana, Brescia, 1969.
[11] Agostinho, Contra Faustum, 32, 18 (CCL 321, p. 779).
[12] Agostinho, Discursos, 269, 3-4 (PL 38, 1236 s).


quinta-feira, 7 de maio de 2015

Noite das Catedrais, um sinal de unidade

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


‘Arte, cultura e espiritualidade são os três pontos em torno aos quais se realizará na França no próximo sábado (9/05) a ‘Noite das Catedrais’. O evento envolverá 33 lugares de culto em todo o país, que deixarão suas portas abertas até à meia-noite. Os fieis, e não somente, terão a oportunidade de participar de encontros espirituais e culturais, concertos, mostras, conferências, visitas guiadas, meditações, momentos de oração comunitária e individual.


Iniciativa nasceu em 2007

A ideia da ‘Noite das Catedrais’ nasceu em 2007, quando Luxemburgo foi escolhida como capital europeia da cultura. Na ocasião, as catedrais das Dioceses de Metz e Tréves permaneceram abertas durante a noite. Após, as Conferências Episcopais dos países limítrofes decidiram dar prosseguimento à iniciativa em suas próprias dioceses. ‘O objetivo – explica o site dos bispos franceses – era e é o de demonstrar que a cultura e a espiritualidade pertencem à origem da vida comunitária da Europa, sempre mais unida’.


Dar um sinal de unidade à Europa

Que outros lugares como as catedrais, monumentos religiosos e históricos, podem ser encontrados para simbolizar esta presença na vida pública? – lê-se ainda no site. Que lugares melhores do que as catedrais são capazes de conter, quer as recordações das gerações passadas que os desejos e as esperanças das gerações presentes?’.

No dia 9 de maio, portanto, em cada catedral da França que aderir à iniciativa, serão realizados programas específicos para recordar que a ‘Noite das Catedrais é um sinal de unidade, um sinal de diversidade cultural e espiritual’’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.news.va/pt/news/noite-das-catedrais-um-sinal-de-unidade

  

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Consolação e esperança

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
  

‘O Papa tem uma palavra para todos : pastores; jovens, idosos, organizações carititativas, cristãos em geral, membros doutros grupos religiosos e étnicos, comunidade internacional... a todos apelando a não resignar-se à situação de conflito, mas a dar, isso sim,  o próprio contributo para que se possa construir o mosaico da paz.

Seguindo as pegadas de São Paulo na sua carta aos Coríntios, o Papa Franscisco situa a suamissiva no espírito da consolação e esperança que nos vêm de Deus e que se manifesta mais uma vez, de forma inefável, na comemoraçao do nascimento de Cristo.

O Papa diz acompanhar todos os dias as notícias que chegam do Oriente Médio, onde aflições e tribulações não têm faltado, infelizmente, mas mostra-se particularmente preocupado por aquilo a que define de ‘organização terrorista, de dimensões antes inconcebíveis, que comete toda a espécie de abusos e práticas indignas do homem’, atingindo de forma particular os cristãos expulsos das suas terras, onde viviam desde o tempo dos apóstolos. Um sofrimento que brada a Deus, apelando ao compromisso de todos por meio da oração e iniciativas.

A todos, sem distinção de religião ou grupo étnico, o Papa exprime, em seu nome e da Igreja em geral ‘unidade e solidariedade’. E fá-lo pensando de modo particular ‘nas crianças, nas mães, nos idosos, nos deslocados e refugiados, em quantos padecem a fome, naqueles que têm de enfrentar a dureza do inverno sem um teto para se protegerem’.

Franciso encoraja à unidade em Cristo, nossa consolação e nossa esperança, uma unidade mais do que nunca necessária. E recorda os ‘pastores e fiéis, a quem foi pedido o sacrifício da vida, nos últimos tempos, muitas vezes pelo simples fato de serem cristãos’; as ‘pessoas sequestradas, incluindo bispos ortodoxos e sacerdotes de diferentes Ritos’, pedindo a Deus para que possam regressar sãs e salvas às suas comunidades.

O Papa indica depois alguns sinais do ‘Reino de Deus’ no meio dessas hostilidades e sofrimentos :

Antes de mais, alegra-se pela a comunhão vivida com fraternidade e simplicidade entre católicos, ortodoxos e fiéis de outras Igrejas na região. Um ‘ecumenismo do sangue’ – diz - exprimindo o desejo de que possam sempre ‘dar testemunho de Jesus através das dificuldades. A vossa presença é preciosa para o Oriente Médio’ – escreve Francisco na sua carta em que agradece aos cristãos pela sua ‘perservença’; cristãos que ele define de ‘fermento na massa’, um pequeno rebanho, mas com ‘grande responsabilidade’ na terra onde nasceu e donde irradiou o cristianismo.

Outro sinal do ‘Reino de Deus’ indicado pelo Papa é ‘o esforço por colaborar com pessoas doutras religiões, com os judeus e com muçulmanos’. Francisco recorda que não há outro caminho senão o do diálogo inter-religioso. O diálogo é um ‘serviço à justiça e uma condição necessária para a tão desejada paz’ – remata.

O Papa encoraja aos cristãos a ajudarem a maioria muçulmana que vive à sua volta a dar, com coragem e firmeza, testemunho de um Islã como religião de paz e respeitoso dos direitos humanos. Encoraja-os também a usufruir do direito de participar plenamente na vida e crescimento das suas nações, a serem construtores de paz, reconciliação e desenvolvimento, a construirem pontes segundo o espírito das bem-Aventuranças e a colaborarem com as autoridades nacionais e internacionais.

E aqui exprime a sua gratidão aos pastores, desde os patriarcas às religiosas pela sua presença, acompanhamento e solicitude junto das comunidades, recordando-lhes que a presença dos pastores junto dos seu rebanho é importante sobretudo nos momentos de dificuldade.

Aos jovens, o Papa manda um abraço, convidando-os a não terem medo, nem vergonha de ser cristãos. Aos idosos, memória do povo, exprime a sua estima, esperando que a essa memória seja semente de crescimento para as novas gerações. O seu apreço vai também para a Cáritas e outras organizações caritativas católicas de vários países, enaltecendo de modo particular o esforço na educação para a cultura do encontro, respeito e dignidade de cada ser humano.

Assegurando a ajuda de toda a Igreja, em oração e todos os meios à disposição, o Papa repudia mais uma vez o tráfico de armas, recordando que o que é necessário são projetos de vida. E incita a Comunidade internacional a acudir os povos do Oriente Médio, ‘promovendo a paz por meio da negociação e da atividade diplomática’.

Nos rastos da sua viagem ao Oriente Médio e do encontro de oração no Vaticano com os Presidentes de Israel e da Palestina, o Papa convida a continuar a rezar pela paz no Oriente Médio.

E conclui recordando ‘às queridas irmãs e irmãos cristãos do Oriente Médio’ que têm uma ‘grande responsabilidade’ e que não estão sozinhos a enfrentá-la. Exprime também o desejo de ‘ter a graça de ir pessoalmente’ visitá-los e confortá-los.’


Fonte :
* Artigo na íntegra de http://www.news.va/pt/news/consolacao-e-esperanca-papa-aos-cristaos-do-medio
  

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Santo Inácio de Antioquia, Bispo e Mártir

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Bento XVI, Papa Emérito


‘...Hoje falamos de Santo Inácio, que foi o terceiro Bispo de Antioquia, entre os anos 70 e 107, data do seu martírio.

Naquele tempo, Roma, Alexandria e Antioquia eram as três grandes metrópoles do império romano. O Concílio de Niceia fala de três ‘primados’ : o de Roma, mas também Alexandria e Antioquia participam, num certo sentido, a um ‘primado’. Santo Inácio era Bispo de Antioquia, que hoje se encontra na Turquia. Aqui, em Antioquia, como sabemos dos Actos dos Apóstolos, surgiu uma comunidade cristã florescente : primeiro Bispo foi o apóstolo Pedro assim nos diz a tradição e ali ‘pela primeira vez, os discípulos começaram a ser tratados pelo nome de ‘cristãos (Act 11, 26). Eusébio de Cesareia, um historiador do IV século, dedica um capítulo inteiro da sua História Eclesiástica à vida e à obra literária de Inácio (3, 36). ‘Da Síria’, ele escreve, ‘Inácio foi enviado a Roma para ser lançado às feras, por causa do testemunho por ele dado a Cristo. Realizando a sua viagem através da Ásia, sob a vigilância severa dos guardas’(que ele chamava ‘dez leopardos’na sua Carta aos Romanos 5, 1), ‘nas várias cidades por onde passava, com pregações e admoestações, ia consolidando as Igrejas; sobretudo exortava, muito fervorosamente, a evitar as heresias, que na época começavam a pulular, e recomendava que não se separassem da tradição apostólica’. A primeira etapa da viagem de Inácio rumo ao martírio foi a cidade de Esmirna, onde era Bispo São Policarpo, discípulo de São João. Ali Inácio escreveu quatro cartas, respectivamente às Igrejas de Éfeso, de Magnésia, de Tralli e de Roma. ‘Tendo partido de Esmirna’, prossegue Eusébio, ‘Inácio chega a Tróade, e de lá enviou novas cartas’ : duas às Igrejas de Filadélfia e de Esmirna, e uma ao Bispo Policarpo. Eusébio completa assim o elenco das cartas, que chegaram até nós da Igreja do primeiro século como um precioso tesouro. Lendo estes textos sente-se o vigor da fé da geração que ainda tinha conhecido os Apóstolos. Sente-se também nestas cartas o amor fervoroso de um santo. Finalmente de Tróade, o mártir chegou a Roma, onde, no Anfiteatro Flávio, foi lançado às feras.

Nenhum padre da Igreja expressou com a intensidade de Inácio o anseio pela união com Cristo e pela vida n'Ele. Por isso lemos o trecho do Evangelho sobre a vinha, que segundo o evangelho de João é Jesus. Na realidade, afluem em Inácio duas ‘correntes’ espirituais : a de Paulo, que tende totalmente para a união com Cristo, e a de João, concentrada na vida n'Ele. Por sua vez, estas duas correntes desembocam na imitação de Cristo, várias vezes proclamado por Inácio como ‘o meu’e ‘o nosso Deus’. Assim Inácio suplica os cristãos de Roma para que não impeçam o seu martírio, porque está impaciente por ‘unir-se a Jesus Cristo’. E explica : ‘É bom para mim morrer indo para (eis) Jesus Cristo, em vez de reinar até aos confins da terra. Procuro a Ele, que morreu por mim, quero a Ele, que ressuscitou por nós... Deixai que eu seja imitador da Paixão do meu Deus! (Aos Romanos 5-6). Pode-se captar nestas expressões fervorosas de amor o elevado ‘realismo’cristológico típico da Igreja de Antioquia, como nunca atento à encarnação do Filho de Deus e à sua humanidade verdadeira e concreta : Jesus Cristo, escreve Inácio aos Esmirnenses, ‘pertence realmente à estirpe de David’, realmente nasceu de uma virgem’, ‘realmente foi crucificado por nós (1, 1).

A propensão irresistível de Inácio para a união com Cristo funda uma verdadeira ‘mística da unidade’. Ele próprio define-se ‘um homem ao qual foi confiada a tarefa da unidade (Aos Filadelfenses 8, 1). Para Inácio a unidade é antes de tudo uma prerrogativa de Deus, que existindo em três Pessoas é Uno em absoluta unidade. Ele repete muitas vezes que Deus é unidade, e que só em Deus ela se encontra no estado puro e originário. A unidade a ser realizada nesta terra pelos cristãos é unicamente uma imitação, o mais possível conforme com o arquétipo divino. Desta forma Inácio chega a elaborar uma visão da Igreja, que recorda de perto algumas expressões da Carta aos Coríntios de Clemente Romano. ‘É bom para vós’, escreve por exemplo aos cristãos de Éfeso, ‘proceder juntos de acordo com o pensamento do bispo, o que já fazeis. De facto, o vosso colégio dos presbíteros, justamente famoso, digno de Deus, está assim harmoniosamente unido ao bispo como as cordas à cítara. Por isso, na vossa concórdia, e no vosso amor sinfónico Jesus Cristo é cantado. E assim vós, um por um, tornais-vos coro, para que na sinfonia da concórdia, depois de ter tomado o trono de Deus na unidade, canteis a uma só voz (4, 1-2). E depois de ter recomendado aos Esmirnenses que ‘nada empreendessem do que diz respeito à Igreja sem o bispo (8, 1), diz a Policarpo : ‘Eu ofereço a minha vida por aqueles que são submetidos ao bispo, aos presbíteros e aos diáconos. Que eu possa com eles ter parte em Deus. Trabalhai juntos uns para os outros, lutai juntos, correi juntos, sofrei juntos, dormi e vigiai juntos como administradores de Deus, seus assessores e servos. Procurai agradar Àquele pelo qual militais e do qual recebeis os favores. Que nenhum de vós seja desertor. O vosso baptismo permaneça como um escudo, a fé como um elmo, a caridade como uma lança, a paciência como uma armadura (6, 1-2).

Complexamente podemos ver nas Cartas de Inácio uma espécie de dialéctica constante e fecunda entre dois aspectos característicos da vida cristã : por um lado a estrutura hierárquica da comunidade eclesial, e por outro a unidade fundamental que liga entre si todos os fiéis em Cristo. Portanto, os papeis não se podem contrapor. Ao contrário, a insistência sobre a comunhão dos crentes entre si e com os próprios pastores é continuamente reformulada através de eloquentes imagens e analogias : a cítara, as cordas, a afinação, o concerto, a sinfonia. É evidente a responsabilidade peculiar dos bispos, dos presbíteros e dos diáconos na edificação da comunidade. Para eles é válido antes de tudo o convite ao amor e à unidade. ‘Sede um só’, escreve Inácio aos Magnésios, retomando a oração de Jesus na Última Ceia : ‘Uma só súplica, uma única mente, uma só esperança no amor... Acorrei todos a Jesus Cristo como ao único templo de Deus, como ao único altar : ele é um, e procedendo do único Pai, permaneceu unido a Ele, e a Ele voltou na unidade (7, 1-2). Inácio, o primeiro na literatura cristã, atribui à Igreja o adjectivo ‘católica’, isto é ‘universal : ‘Onde estiver Jesus Cristo’, afirma ele, ‘ali está a Igreja (Aos Esmirnenses 8, 2). E precisamente no serviço de unidade à Igreja católica, a comunidade cristã de Roma exerce uma espécie de primado no amor : ‘Em Roma ela preside digna de Deus, venerável, digna de ser chamada beata... Preside à caridade, que tem a lei de Cristo e o nome de Pai (Aos Romanos, Prólogo).

Como se vê, Inácio é verdadeiramente o ‘doutor da unidade : unidade de Deus e unidade de Cristo (não obstante as várias heresias que começavam a circular e dividiam o homem e Deus em Cristo), unidade da Igreja, unidade dos fiéis ‘na fé e na caridade, das quais nada há de mais excelente (Aos Esmirnenses 6, 1). Para concluir, o ‘realismo de Inácio convida os fiéis de ontem e de hoje, convida todos nós a uma síntese progressiva entre configuração com Cristo (união com Ele, vida n'Ele) e dedicação à sua Igreja (unidade com o Bispo, serviço generoso à comunidade e ao mundo). Em resumo, é necessário alcançar uma síntese entre comunhão da Igreja no seu interior e missão proclamação do Evangelho para os outros, até quando, através de uma dimensão se manifeste a outra, e os crentes ‘possuam’cada vez mais ‘aquele espírito indiviso, que é o próprio Jesus Cristo (Aos Magnésios 15). Implorando do Senhor esta ‘graça de unidade’, e na convicção de presidir à caridade de toda a Igreja (cf. Aos Romanos, Prólogo), dirijo a vós os mesmos votos que concluem a carta de Inácio aos cristãos de Trali : ‘Amai-vos uns aos outros com um coração indiviso. O meu espírito oferece-se em sacrifício por vós, não só agora, mas também quando tiver alcançado Deus... Que possais ser encontrados em Cristo sem mancha (13). E rezemos para que o Senhor nos ajude a alcançar esta unidade e a sermos encontrados finalmente sem mancha, porque é o amor que purifica as almas.’

 (14 de março de 2007)

Fonte  :
Bento XVISantos e Doutores da Igreja (catequeses condensadas), Lisboa, Paulus Editora, 2012.