Mostrando postagens com marcador santidade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador santidade. Mostrar todas as postagens

sábado, 2 de agosto de 2025

O chamado à santidade da vida

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo do Padre Diego Leli, CMF 


‘Sede santos como o vosso Pai celestial é santo.’ (Mt 5,48)

‘Antes que eu te formasse dentro do seio de tua mãe,
Antes que tu nascesses, te conhecia e te consagrei.
Para ser meu profeta entre as nações eu te escolhi.
Irás onde enviar-te e o que te mando proclamarás!’
(Coral Palestrina) 

‘Antes que o mundo nos chamasse por nomes passageiros, Deus já sussurrava em nosso íntimo um nome eterno : ‘santo’. Antes que nascêssemos, Deus já nos conhecia e nos chamava pelo nome (cf. Jr 1,5). Esse chamado não é privilégio de poucos, mas o fundamento da existência de todos. Não se trata de um ideal inalcançável, reservado aos altares e vitrais das igrejas, mas de uma vocação profundamente humana, enraizada no dom da vida que recebemos e que se desdobra, dia após dia, como resposta amorosa ao Criador.

Ser humanos já é um chamado. Respirar já é uma resposta. Cada batida do coração é um eco silencioso do Pai que nos convida à plenitude : ‘Sede santos, como vosso Pai do Céu é santo’ (Mt 5,48). Essa é a primeira e mais radical vocação que habita cada pessoa, a vocação à santidade, à vida vivida como dom, entrega e missão. A santidade não começa com grandes gestos, mas com pequenos e fiéis ‘sins’ dados no cotidiano : na paciência de um educador, no cuidado de uma mãe, na escuta silenciosa de um consagrado, no olhar compassivo de quem serve.

Agosto é, na tradição da Igreja do Brasil, o mês em que celebramos de maneira especial as vocações : ao ministério ordenado, à vida consagrada, à família, aos leigos e leigas, mas, antes de cada uma dessas formas concretas de seguir Jesus há uma vocação primeira que nos atravessa a todos : a vida como espaço de santificação, o existir como caminho de comunhão com Deus e com os irmãos e irmãs. A vida é dom, é milagre, é missão. É nesse chão da existência que floresce a voz de Deus, convocando-nos a descobrir a melodia única que Ele mesmo compôs em nosso interior.

Descobrir a própria vocação é como escutar, em meio ao ruído do mundo, um canto suave que nos chama pelo nome. É reconhecer que não somos obra inacabada do acaso, mas, sonho amado de Deus. Esse sonho se realiza não quando nos fechamos em expectativas humanas, mas quando nos abrimos à lógica do Evangelho : perder para ganhar, servir para viver o amor e amar até o fim. A vocação, qualquer que seja, nasce da escuta, amadurece no discernimento e frutifica na entrega.

Ser vocacionado é, antes de tudo, deixar-se alcançar. É permitir que Deus entre em nossa história e a transforme em bênção para os outros. A vocação não é um peso, mas uma centelha de sentido; não é um dever imposto, mas uma resposta amorosa que brota da liberdade. Essa liberdade, quando atravessada pelo Espírito, conduz-nos a lugares inimagináveis, ensina-nos a viver com inteireza e a amar com profundidade.

Neste mês vocacional, talvez a melhor pergunta não seja ‘O que devo fazer?’, mas ‘Quem sou eu aos olhos de Deus?’. A resposta a ela nos conduz à fonte da nossa identidade mais profunda. Somos filhos, somos chamados, somos enviados. Nesse caminho de escuta e resposta, Maria nos acompanha como mestra da vocação. Ela, que ouviu o chamado no silêncio de Nazaré e respondeu com um ‘sim’ que mudou a história, continua a nos ensinar que vocação se vive com humildade, coragem e disponibilidade.

Deixemo-nos tocar novamente pelo sussurro do Pai. Talvez Ele não venha em forma de grandes revelações, mas no brilho de um gesto simples, na inquietação do coração, na alegria que ressurge quando servimos. Neste mês de agosto, abramos os ouvidos e os corações. A vocação nos chama. A vida nos espera. A santidade nos abraça. E Maria caminha conosco, como estrela que guia e coração que acolhe.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://revistaavemaria.com.br/o-chamado-a-santidade-da-vida.html

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

A liturgia como lugar onde se pode alcançar a santidade

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Roberta Barbi


‘A liturgia deve ter sempre como objetivo a santificação do povo de Deus, mas para isso é necessário também que exista uma comunidade madura, capaz de realizar ações, que tenha recuperado a dimensão da plena participação na liturgia como um complexo de sinais visíveis e eficazes, e que encarne, portanto, aquela definição da assembleia como a ‘mais alta manifestação da Igreja’. Esse é o cerne do discurso proferido em 15 de novembro, pelo Arcebispo Metropolitano de Catanzaro-Squillace, Dom Claudio Maniago, na conferência sobre a ‘dimensão comunitária da santidade’, na qual contextualizou o tema em uma perspectiva histórica.

Do período patrístico à Idade Média

‘No período patrístico, a liturgia e a assembleia coincidem e é impossível pensar em uma sem a outra’, começou o prelado em seu discurso, especificando que essa visão de estreita união entre os dois elementos sobrevive até o início da Idade Média. Nessa fase, é a ação de Deus que tem a primazia : a comunidade é envolvida pelo toque de Cristo. Na pregação litúrgica, ocorre a formação cristã porque, na fórmula, o Mistério transcendente de Deus deixa claro que ele se torna ‘evidente e presente’ em Cristo, ou seja, na Encarnação. Na celebração, ao recordar o Filho, ‘transparência de sua santidade’, somos assim moldados por Ele. Na Idade Média, as orações eram recitadas em voz alta e, com um solene ‘Amém’ final, a comunidade afirmava que havia feito ‘sua própria oração’, a que acabara de ser pronunciada pelo celebrante. A transição, portanto, para uma oração recitada em um sussurro deve ter sido muito problemática : ‘O vínculo entre o presbítero e o povo foi rompido’, diz Dom Maniago, ‘e houve uma mudança para uma eclesiologia da autoridade em que os verdadeiros celebrantes se tornaram apenas aqueles que detinham alguma capacidade. Isso começou a acontecer a partir do século IX e especialmente a partir do século XII : línguas desconhecidas eram usadas para rezar e a realização do sacrifício era ‘confiada exclusivamente ao presbítero, a assembleia não estava mais envolvida’. Isso também teve consequências para a arquitetura e a distribuição espacial : a partir de agora, os fiéis eram colocados em frente e não mais ao redor do altar.

O valor individual do sacramento para alcançar a salvação

As coisas mudam novamente na era do Concílio de Trento : ‘A distinção entre liturgia e religiosidade-devoção popular é radicalizada’, observa Maniago, os altares dedicados aos santos são desenvolvidos como a vingança do povo ‘contra um rito excessivamente frio e canonizado’; os sacramentos começam a ser usados subjetivamente como ‘um instrumento de salvação para o indivíduo devido a um profundo conhecimento do pecado’. Já no Rituale romanum de 1614, por exemplo, o foco está naquele que administra o sacramento, nas palavras que ele deve pronunciar de forma precisa e distinta, enquanto a comunidade é reduzida ao papel de espectadora. A santidade, em uma época influenciada pela modernidade em que a espiritualidade está em declínio, torna-se sinônimo de perfeição pessoal delegada à interioridade do indivíduo, e a pregação tem o único papel de fornecer exemplos úteis para esse fim. Os santos estão lá em cima, no alto, difíceis de alcançar, se não forem para poucos, enfatiza o Arcebispo de Catanzaro-Squillace.

A reforma do Concílio Vaticano II

Já no título ‘Vocação universal à santidade na Igreja’ do Capítulo V da Lumen Gentium, Constituição do Concílio Vaticano II, fica claro que a perspectiva mudou. O Concílio afirma, de fato, que ‘todos os fiéis de qualquer estado e condição são chamados pelo Senhor’ a uma santidade cuja perfeição ‘é a do Pai celeste’. Da mesma forma, todos os fiéis são chamados à plenitude da vida cristã e, entre os instrumentos úteis para alcançar a santidade, a caridade é sempre colocada em primeiro lugar. ‘Neste quadro teológico, a assembleia assume, portanto, um papel importante na compreensão da dimensão comunitária da obra de santificação que o Senhor continua a realizar em seu povo’, o povo santo de Deus, segundo o prelado. A ênfase, portanto, está na participação, mas de um novo tipo : uma ação litúrgica cujo ponto de apoio continua sendo a Eucaristia, e que determina uma ‘responsabilidade coletiva’.

Todos celebram e apenas um preside, portanto, ‘os rituais e as orações são a linguagem de todo o povo de Deus’ e, em certo sentido, voltamos a uma compreensão e execução da liturgia pela assembleia que é própria da Igreja primitiva, porque a arte de celebrar ‘é uma atitude que todos os batizados são chamados a viver’. Na liturgia, experimenta-se a obra de Deus, há um contato a ser vivenciado com o Senhor que envia o dom da santidade. Celebrar a liturgia com esse espírito coloca a pessoa no centro da Exortação Apostólica Gaudete et exsultate do Papa Francisco, segundo a qual ‘a santidade é um chamado universal e comum, a ser vivido na comunidade do povo de Deus, como uma tendência contínua para acolher e ser transformado pelo amor misericordioso de Cristo’.

Uma teologia da santidade nos dias atuais

Abordando o tema da santidade nos dias de hoje, de um ponto de vista teológico, está a intervenção do Padre Jordi-A. Piqué Collado, decano do Instituto Litúrgico do Pontifício Ateneu Sant'Anselmo, que indica como os modelos de santidade ‘são chamados pela liturgia como uma ponte entre o presente e o eterno’, manifestando na prática a transcendência imanente de Deus. É essencial distinguir, antes de tudo, entre santidade e sacralidade : somente Deus é santo, e sempre está à espreita o risco de confundir essa dimensão com a do sagrado que pertence às pessoas consagradas ou mesmo aos objetos, enquanto ‘somente a presença de Deus comporta a santidade’, caso contrário se cai na idolatria.

As bem-aventuranças do Evangelho e a santidade

A santidade de Deus é manifestada em todo o Novo Testamento por meio da presença santificadora de Cristo : ‘Portanto, os discípulos são chamados a fazer o que Ele fez, como pregar o Evangelho, realizar atos de cura, vocação, salvação e perdão. Os santos são, portanto, aqueles que se comportam como Ele, ou seja, que são chamados a cumprir as bem-aventuranças. De acordo com a interpretação de São Leão Magno, diz o Padre Piqué Collado, os santos são aqueles que serão reconhecidos como ‘agentes de consolação diante dos males do mundo’, mas os modelos de santidade também serão ‘os pobres e humildes’, aqueles que amam e desejam a justiça, porque ‘amar e desejar a justiça não é outra coisa senão amar a Deus’. Até mesmo ‘os pacificadores, os inimigos da guerra’ serão chamados de santos e, portanto, filhos de Deus, e sua santidade será reconhecida por todos. Mas para todos esses santos que habitam entre nós, ‘a meta é o céu’ e a liturgia é constantemente ‘o elo entre a terra e o céu’.

Na teologia litúrgica, finalmente, aparece ‘um conceito muito dinâmico de santidade’, mas um conceito que corresponde somente a Deus : ‘É Ele que revela Sua própria essência por meio da manifestação de Sua santidade particular’ e Jesus Cristo é ‘a manifestação definitiva da santidade de Deus’, Ele mesmo é Deus. Aqueles que podem ser chamados a reproduzir a santidade de Deus - demonstrada plenamente por Jesus - são chamados a cumprir as bem-aventuranças’. ‘Isso’, conclui o Padre Collado, ‘é a norma da santidade de acordo com o Evangelho’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-11/a-liturgia-como-lugar-onde-se-pode-alcancar-a-santidade.html


segunda-feira, 3 de maio de 2021

A santidade do cotidiano

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante


‘Toda pessoa que se dispuser a ler os Evangelhos para conhecer quem foi Jesus de Nazaré encontrará naquelas páginas uma característica presente em todos os autores : Jesus era um homem do povo. Em outras palavras, Jesus se identificava com o povo das ruas por onde caminhava.

Essa marca característica de Jesus, por sua vez, nos diz muito. Se quisermos compreender o seu ministério, sua morte e ressurreição, assim como tudo o que os Evangelhos querem nos dizer a respeito da revelação de Deus, precisamos levar em conta esse dado. Afinal, de acordo com a fé cristã, é a partir de Jesus que Deus deve ser compreendido. 

Longe de ser uma entidade meramente metafísica, o Deus cristão se revela por excelência na pessoa de Jesus, de modo que olhar para Jesus significa olhar para o Pai. Conhecer Jesus é conhecer o Pai e seguir a Jesus é cumprir a vontade do Pai. Que isso só seja possível por causa do Espírito, também os Evangelhos dão testemunho, mostrando que o Deus cristão é trinitário e deve ser compreendido dessa forma.

Voltando, então, para Jesus e seu modo de vida como homem do povo, é também característica sua ação em benefício dos desfavorecidos e pobres da terra. É entre eles que Jesus escolhe andar e esse ponto se mostra de extrema importância. Jesus, como atestam os Evangelhos, era reconhecido como rabi, ou seja, um mestre da Torá, alguém que era profundo conhecedor desses textos e, por isso, era capaz de ensiná-lo.

Os Evangelhos, por sua vez, deixam bem claro que o ensinamento de Jesus a respeito da Torá não se dava somente por meio do discurso, mas por meio dos seus atos em favor dos desfavorecidos da sua época. A partir disso, ele mostrava que o ensinamento (melhor tradução para a palavra Torá, ao invés do que comumente se traduz como Lei) de Deus consistia na misericórdia sobressaindo ao juízo.

Aqui se mostra algo muito interessante. Jesus, como rabi, poderia ter se colocado como alguém superior aos outros, ter escolhido a casta rabínica farisaica que, como atesta Mateus, atavam fardos pesados sobre os ombros das pessoas, mas eles mesmos não estavam dispostos a levantar um dedo para a ajudá-los (Mateus 23,4). Como rabi, poderia também exigir ser saudado nas ruas, receber as honras que alguns recebiam e trazer sobre si uma aura de santidade por ser um dos que cumpriam de maneira legalista os preceitos da Torá.

Contudo, como os Evangelhos são enfáticos em pontuar, no lugar da santidade religiosa, Jesus deu preferência à santidade do cotidiano, aquela que se mostra no chão do mundo, voltada para aqueles e aquelas que necessitam e anseiam por contemplar o rosto de Deus, mas muitas vezes por causa dos legalismos e ‘pré-requisitos’ impostos pelos religiosos se veem muito distantes do rosto amoroso e gracioso do Pai.

Por causa de tais ‘pré-requisitos’ ainda hoje é comum que Deus seja visto como senhor barbudo e sisudo que está no céu anotando pecados e boas ações para no final de tudo fechar a conta de cada um e pagar a recompensa ou pedir a restituição pela vida que se teve na Terra. Em outras palavras, são impedidas de conhecer o Deus que se revela como Pai de Jesus Cristo, amoroso, gracioso, que faz sua chuva vir sobre justos e injustos e que ama incondicionalmente.

Jesus, como homem do povo, mostrou que Deus não está distante e não é inacessível, mostrou que Deus se mostra com um rosto humano, que se manifesta nas relações amorosas de uns para com os outros, porque Ele mesmo é amor (I João 4,8). Com isso em mente, é possível perceber que a santidade desejada por Deus não tem a ver com uma contemplação celeste, cercada de anjos, com tudo branco e limpinho, mas em via totalmente oposta, tem a ver com o chão do mundo, os relacionamentos humanos, o cuidado com a natureza e com a vida comum.

Voltar a Jesus é, pois, optar pela santidade do cotidiano que se manifesta em todo ato amoroso e que visa o bem do próximo e da natureza. Essa santidade, por sua vez, é aquela que cumpre a vontade de Deus e revela que uma santidade baseada em legalismos e regras de ‘pode’ e ‘não pode’ está longe do que é desejado pelo Pai. Diante disso, não é difícil compreender por que foi a classe religiosa que entregou Jesus para ser crucificado.

A vida de Jesus foi e ainda é uma afronta a todo tipo de legalismo. Sem compreender isso, também não se compreende a profundidade de seu ensinamento e de sua vida, conforme narrada pelos Evangelhos.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1512692/2021/04/a-santidade-do-cotidiano/

sábado, 7 de março de 2020

A vida como forma de oração

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Resultado de imagem para catholic in prayer
*Artigo do Padre Rodrigo Ferreira da Costa, SDN,
pároco de Santa Luzia, Teresina, PI


‘Há duas passagens bíblicas acerca da oração que me inquietam. A primeira é da Carta de São Paulo aos Tessalonicenses que diz : Orai sem cessar (1Ts 5,17), a outra é o próprio Jesus ensinando aos seus discípulos a verdadeira forma de rezar que diz : Quando orardes, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai que está em segredo. E teu Pai, que vê o que está em segredo, te retribuirá (Mt 6,6). Será que o cristão de hoje, inserido nesse mundo do barulho, da produção, do trabalho, do on-line etc. é capaz de praticar esse modo de oração? Será que estas exortações se dirigem apenas a alguns privilegiados que têm ‘tempo’ para estarem às sós com o Senhor ou não diz respeito também ao homem e à mulher do campo e da cidade, que levantam cedo para trabalhar, tomam dois, três ônibus superlotados, enfrentam trânsito, e, muitas vezes, só conseguem retornar para seus lares à noite, sendo privados do próprio convívio familiar e comunitário?

Se a nossa reposta for negativa, estaremos excluindo grande parte dos cristãos da experiência de diálogo e comunhão com o seu Senhor, haja vista que a grande maioria do nosso povo, presente em nossas comunidades de fé, vem dessa realidade. Penso que para cumprirmos esta orientação de Jesus acerca da oração, a nossa vida toda deve ser orante, nosso labor, nossas angústias e dores uma oferenda agradável a Deus e todo nosso ser um hino de louvor ao Senhor da vida. Desta forma, estaremos continuamente em comunhão com Deus e, mesmo não estando com o rosário nas mãos ou ajoelhados diante Santíssimo Sacramento, o nosso diálogo com o Amado não será interrompido.

Karl Rahner, o grande teólogo do século 20, dizia que ‘o cristão do futuro ou será um místico, alguém que experimentou Algo, ou não será mais cristão. Isso porque a religiosidade do futuro não mais se baseará numa convicção unânime, natural e pública e num costume religioso, anteriores a uma experiência e decisão pessoal.’ Portanto, o cristão do séc. 21 que quiser ser crente e mensageiro da fé precisa cultivar essa autêntica experiência de Deus, que brota do interior de nossa existência e não apenas momentos religiosos que aliviam a consciência, mas não comprometem a vida. Para muitas pessoas, ‘a vida espiritual confunde-se com alguns momentos religiosos que proporcionam algum alívio, mas não alimentam o encontro com os outros, o compromisso no mundo, a paixão pela evangelização. Assim, é possível notar em muitos agentes evangelizadores - não obstante rezem - uma acentuação do individualismo, uma crise de identidade e um declínio do fervor. São três males que se alimentam entre si’ (papa Francisco, EG, n. 78).

Santo Agostinho ensinando sobre a oração cristã afirma que a oração não é uma forma mágica de atrair Deus a nós, porque ‘Deus é mais interior de nós do que nós mesmos’, a finalidade da oração é abrir-nos a Deus e ao seu projeto de Reino e, na dinâmica da escuta e do diálogo, perceber a sua proximidade junto a nós.  Desta forma, a oração não sai apenas dos lábios, mas do mais profundo do nosso ser, numa misteriosa correspondência entre as profundezas do coração e as alturas do céu. Faz-se necessário aprendermos a rezar com o coração, mais do que com os lábios e a cabeça, a fim de que a nossa vida toda seja um hino de louvor àquele que nos ama com amor eterno e que pede de nós este mesmo amor (cf. Dt 6, 4-6).

A oração cristã parte da experiência do encontro com o Senhor, pois ele prometeu que estaria conosco todos os dias, até o fim dos tempos (cf. Mt 28, 20). Essa presença do Senhor junto aos seus, em todos os tempos e lugares, nos faz acreditar que a vida, com toda a sua beleza e dramas, é o principal ‘altar’, no qual o crente oferece sacrifícios e preces ao seu Senhor, numa atitude de proximidade e comunhão com aquele que se fez próximo de nós, por meio do seu Filho, no Espírito. A oração cristã consiste, portanto, ‘na comunhão continuada com Deus, com quem se está sempre em diálogo, a quem se escuta em cada instante do dia e a quem se procura responder com a mais total transparência e desejo de ser obediente. Existem momentos específicos, ao longo do dia, para se entregar à oração. Entretanto, ao se dizer o amém final, a vida de oração não fica em suspenso até o próximo momento, em que se deixará tudo para ficar a sós com Deus. Antes, ela continua e, em determinadas circunstâncias, no auge da ação, poderá acontecer de forma até mais intensa e comprometedora’ (Jaldemir Vitório).

Orai sem cessar! Estejais sempre em comunhão com o seu Senhor e Amado, na escuta obediente e no diálogo amoroso com aquele que nos fala face a face, ‘como um homem fala com seu amigo’ (Ex 33, 11). Essa tarefa gratificante está ao alcance de todos, ninguém deveria se sentir excluído ou incapaz de realizá-la. Pois ‘para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso. Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra’ (papa Francisco. GE, n. 14).

Descobrir a santidade ‘ao pé da porta’ (GE, n. 07), fazer da vida ‘altar’ de oração e oferenda, encontrar Deus e deixar-se encontrar por ele no cotidiano da vida etc. não significa diminuir a importância dos momentos de oração e celebração comunitários, nem tampouco criar uma espiritualidade individualista, sem carne, sem rosto, sem comunidade. Pelo contrário, olhar a vida como forma de oração é viver uma espiritualidade encarnada na história, uma oração que toca a nossa existência e nos faz sentir animados pela força do Santo Espírito a assumir a nossa cruz de cada dia no seguimento de Jesus Cristo. Noutras palavras, se a vida não for uma verdadeira forma de oração, nossa oração não será viva, nem terá eficácia em nosso testemunho cristão no mundo.’


Fonte :

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Santidade em família : histórias de pais e irmãos santos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Reprodução.  
A família de santos : São Gregório, Santa Macrina, 
Santa Emília, São Pedro e São Basílio Magno.

*Artigo de Elisangela Cavalheiro, 
jornalista

‘No Catecismo da Igreja, nos documentos e na Palavra de Deus, o convite a uma vida de perfeição da caridade e a plenitude da vida cristã é indicado como vocação universal de todos os batizados.

Nesse caminho, não estamos sozinhos. Ao longo da história, muitos foram os homens e mulheres que trilharam o caminho da perfeição, da renúncia e do combate espiritual para viver uma vida em plena comunhão com Deus.

Papa Francisco lembra que os santos são ‘amigos de Deus e nos mostram que buscar uma vida de santidade ‘não decepciona’.

De modo mais simples, Francisco ainda lembra que é na vida cotidiana que somos chamados a viver segundo o Espírito. ‘Ali onde você trabalha você pode se tornar santo’. Mas também na família, onde partilhamos de modo mais íntimo a nossa vida, é que devemos buscar viver a santidade. Não é fácil, mas é possível!

Veja o exemplo dos pais santos, Emília e Basílio, que viveram no século quatro depois de Cristo.

Emília, filha de um mártir, teve nove filhos e destes, quatro se tornaram santos : São Basílio Magno, Santa Macrina, São Gregório de Nissa e São Pedro Sebaste.

A santidade dessa família se apresenta entre os ritos da Igreja do Oriente e do Ocidente.

Dos quatro filhos do casal, destaca-se São Basílio Magno, que é doutor da Igreja.

São Basílio Magno também conviveu com outro santo, São Gregório Nazianzeno. Reúne em sua pessoa um grande homem da Igreja e teólogo, fundador do monacato oriental e perfeito humanista.

Santa Macrina, a jovem. Recebeu esse nome porque o herdou de sua avó. Era a filha mais velha e, junto da mãe, formaram um convento onde viveram uma vida modesta, de oração e ajudando os pobres. Ela teve importante papel da educação dos irmãos, o que é descrito por eles em seus escritos.

São Gregório de Nissa pode ser comparado a Tomás de Aquino por enfrentar os problemas em sintonia com a fé e a razão.

São Pedro de Sebaste era o mais jovem dos irmãos e foi muito instruído pela sua irmã. Morou junto com o irmão Basílio, no mosteiro masculino fundado por sua mãe e ali viveu dividido entre os estudos, na ajuda aos necessitados e na oração.

Além dessa família, a Igreja conta ainda com o exemplo de muitos irmãos santos e casais santos.

Um bom exemplo, e mais recente, é o do casal Luís Martin e Maria Zélia Guérin, pais de Santa Teresinha do Menino Jesus, que viveram o serviço cristão na família, construindo dia após dia um ambiente cheio de fé e amor; e, neste clima, germinaram as vocações de três das filhas, entre elas, Santa Teresinha.

Os santos são nossos amigos e estão à porta, mostrando a beleza e a felicidade de encontrar em Cristo nossa missão, que nos faz viver em plenitude e nos humaniza por inteiro.


Fonte :

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Por que o medo da santidade?


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Resultado de imagem para holiness
*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante


Esse tipo de visão, por sua vez, é sempre fomentada pelos diversos filmes e séries que são produzidas, principalmente, a respeito da vida de Jesus, em que o colocam como um super homem, que não sente dor, nunca ia ao banheiro, nunca ficava bravo com as situações, estava sempre sorrindo e parecia que caminhava sobre nuvens para não tocar as ruas de Jerusalém contaminadas com o pecado.

Com isso, pensa-se um Jesus totalmente diferente do ser humano e a santidade como algo que não é tangível no dia a dia. Ligar santidade com reclusão ou abstinência é tão comum que, na maioria das vezes, quando se pede para imaginar um santo ou uma santa, não se pensa em alguém do cotidiano, mas, sim, em alguma espécie de asceta vivendo nas montanhas e contemplando as coisas espirituais.

No entanto, é preciso entender que a santidade está totalmente ligada ao conceito de encarnação, de maneira que compreender este é imprescindível para se compreender aquela, o que implica estar atento ao fato de que por meio da encarnação o santo entra no profano, santificando o que antes era chamado assim. Dessa forma, a encarnação vem nos mostrar que a santidade é algo que deve ser feita e vivida no cotidiano de cada um, uma vez que não há mais separação entre um Deus que vive no céu e os seres humanos que estão aqui embaixo aguardando para serem ouvidos. A encarnação mostra que Deus se faz presente conosco, na vida hodierna e, assim, demanda daqueles e daquelas que dizem ser seus seguidores, que vivam uma vida como a que Jesus viveu.

Ver Jesus como homem que se abriu inteiramente ao próximo e como alguém que se abriu inteiramente a Deus é imprescindível para compreender que a santidade vivida por ele é também possível de ser vivida por nós. Tirar a humanidade de Jesus, colocando sobre ele um plus que o permitia viver em santidade é, automaticamente, negar a própria encarnação como evento em que Deus assume inteiramente a humanidade.

Ser santo, que quer dizer ser separado, não é algo intangível ou somente para algumas pessoas. Retirar dessa palavra a aura de intangibilidade que foi colocada sobre ela é necessário caso se queira que as pessoas que se dizem seguidoras de Jesus possam realmente compreender que ser santo é se abrir para o que tem fome, sede, ou qualquer tipo de necessidade humana, revelando a ela o amor de Deus pelo qual fomos alcançados e que se reflete numa ação efetiva para com os que sofrem.

Abrir-se inteiramente para o próximo é um reflexo direto de que essa pessoa também se abriu inteiramente a Deus, não podendo o segundo ser verdadeiro se o primeiro for mentira, como bem disse João em uma de suas cartas : ‘Se alguém afirmar : ‘Eu amo a Deus’, mas odiar seu irmão é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê.’ (1 Jo 4:20).

Desmistificar a ideia de santidade é algo urgente em nossos dias, principalmente em ambientes em que se crescem os discursos fundamentalistas que ligam santidade a cumprimento de ordens. Assim, podemos dizer que amar continua sendo a maior prova de santidade para o mundo e somente por meio do amor é possível que o mundo reconheça que somos discípulos de Jesus Cristo (cf. Jo 13,35).’


Fonte :

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

'O chamado universal dos cristãos à santidade' - Segunda pregação do Advento de 2015

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Pe. Raniero Cantalamessa, OFM,
pregador oficial da Casa Pontifícia (Vaticano)

‘Há poucos dias comemoramos o quinquagésimo aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II e entramos no ano jubilar da misericórdia, pelo qual, Santo Padre, somos-lhe muito gratos. Devemos dizer que não é nem um pouco arbitrária a ligação existente entre o tema da misericórdia e o concílio vaticano II. No discurso de abertura, no dia 11 de outubro de 1962, São João XXIII indicou na misericórdia a novidade e o estilo do concílio :

Sempre, escrevia, a Igreja se opôs aos erros; muitas vezes, também, condenou-os com a máxima severidade. Agora, porém, a Esposa de Cristo prefere usar o remédio da misericórdia, mais do que o da severidade[1]

Em certo sentido, à distância de meio século, o ano da misericórdia celebra a fidelidade da Igreja àquela sua promessa. Às vezes, surge a pergunta de se insistir muito na misericórdia não é correr o risco de se esquecer o outro atributo de Deus que é a justiça. Mas, a justiça de Deus, não só não contradiz a sua misericórdia, mas consiste justamente nessa! Deus se faz justiça, fazendo misericórdia. Deus é amor; por isso faz justiça a si mesmo – ou seja, se demonstra verdadeiramente por aquilo que é – quando faz misericórdia. Bem antes de Lutero Santo Agostinho tinha escrito : ‘A justiça de Deus’ é aquela, pela qual, por sua graça, Deus nos torna justos, exatamente como ‘a salvação do Senhor’ (salus Domini) (Sl 3, 9) é aquela, pela qual, Deus nos salva [2]’.

Isso não esgota todos os sentidos da expressão ‘justiça de Deus’, mas é certamente o significado principal dela. Um dia existirá, também, uma justiça de Deus retributiva, que dará a cada um de acordo com os próprios méritos (cf Rom 2, 5-10); mas, não é dessa que o Apóstolo fala quando diz : ‘Agora se manifestou a justiça de Deus’ (Rom 3, 21). Aquela é um evento futuro, esta um evento presente. Em outro lugar o próprio apóstolo explica assim : ‘Quando se manifestou a bondade de Deus e o seu amor pelos homens, ele nos salvou, não em virtude de obras de justiça realizadas, mas pela sua misericórdia’ (Tt 3, 4-5).


1. ‘Sejam santos porque eu, vosso Deus, sou santo’

O tema desta meditação é o capítulo V da Lumen gentium, intitulado ‘A vocação universal à santidade na Igreja’. Nas histórias do Concílio este capítulo só é lembrado por uma questão, digamos, de redação. Os vários Padres conciliares, membros de ordens religiosas, pediram com insistência que fosse dedicado um tratado a parte sobre a presença dos religiosos na Igreja, como tinha sido feito para os leigos. Foi assim que aquilo que tinha sido lembrado até então como um capítulo unicamente relacionado à santidade de todos os membros da Igreja, foi dividido em dois capítulos, dos quais o segundo (VI da LG), dedicado especificamente aos religiosos [3].

O chamado à santidade foi formulado desde o início com estas palavras :

Por isso, todos na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo : «esta é a vontade de Deus, a vossa santificação»’ (1 Tess. 4,3; cfr. Ef. 1,4)  .

Este chamado à santidade é o ponto mais necessário e urgente do concílio. Sem isso, todos os outros requisitos são impossíveis ou inúteis. De fato, normalmente, isso é deixado de lado porque só Deus e a consciência que a exigem e pedem, e não as pressões ou interesses de grupos humanos particulares da Igreja. Às vezes, parece que em certos ambientes e em certas famílias religiosas, depois do concílio, focaram mais no compromisso de ‘fazer os santos’ do que no de ‘fazer-se santos’, ou seja, mais esforço para levar aos altares os próprios fundadores ou correligionários do que em imitar os exemplos e as virtudes.

A primeira coisa que deve ser feita, quando se fala de santidade, é libertar esta palavra da submissão e do medo que dá, por causa de certas deturpações que fizeram dela. A santidade pode acarretar fenômenos e provas extraordinárias, mas não se identifica com essas coisas. Se todos são chamados à santidade, é porque, devidamente compreendida, ela está ao alcance de todos, faz parte da normalidade da vida cristã. Os santos são como as flores : não existem só aqueles que são colocados no altar. Quantos deles desabrocham e morrem escondidos, depois de terem lançado silenciosamente seu perfume no ambiente! Quantas dessas flores escondidas floresceram e florescem continuamente na Igreja

A motivação de fundo da santidade é clara desde o início e é que Deus é santo : ‘Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo’ (Lv 19, 2). A santidade é a síntese, na Bíblia, de todos os atributos de Deus. Isaías chama Deus de ‘o Santo de Israel’, aquele que Israel conheceu como o Santo. ‘Santo, santo, santo’, Qadosh, qadosh, qadosh, é o grito que acompanha a manifestação de Deus no momento do seu chamado (Is 6, 3). Maria reflete fielmente essa ideia de Deus dos profetas e dos Salmos, quando exclama no Magnificat: ‘Santo é o seu nome’.

Quanto ao conteúdo da ideia de santidade, o termo bíblico qadosh sugere a ideia de separação, de diversidade. Deus é santo porque é o totalmente outro com relação a tudo o que o homem pode pensar, dizer ou fazer. É absoluto, no sentido etimológico de ab-solutus, solto de tudo e à parte. É o transcendente, no sentido de que está por acima de todas as nossas categorias. Tudo isso no sentido moral, antes mesmo que metafísico; diz respeito ao atuar de Deus e não só ao seu ser. Na Escritura define-se como ‘santos’ principalmente os juízos de Deus, as suas obras e os seus caminhos [5].

Contudo, santo não é um conceito principalmente negativo, que indica separação, ausência de mal e de mistura em Deus; é um conceito sumamente positivo. Indica uma ‘pura plenitude’. Em nós, a ‘plenitude’ nunca se mistura totalmente com a ‘pureza’. Sempre conquistamos a nossa pureza, purificando-nos e tirando o mal das nossas ações (Is 1, 16). Em Deus não; pureza e plenitude coexistem e constituem juntas a suma simplicidade de Deus. A Bíblia expressa perfeitamente esta ideia de santidade quando fala que a Deus ‘nada pode ser acrescentado e nada tirado’ (Sir 42, 21). Em quanto suma pureza, nada lhe deve ser tirado; em quanto suma plenitude, nada lhe pode ser acrescentado.

Quando se procura entender como o homem entra na esfera da santidade de Deus e o que significa ser santo, logo prevalece, no Antigo Testamento, a ideia ritualística. Os trâmites da santidade de Deus são objetos, lugares, ritos, prescrições. Seções inteiras do Êxodo e do Levítico se intitulam ‘códigos de santidade’ ou ‘lei de santidade’. A santidade está contida em um código de leis. É tal esta santidade que é profanada se alguém se aproxima do altar com uma deformidade física ou depois de ter tocado num animal imundo : ‘santificai-vos e sede santos ..., não se contaminem com qualquer um destes animais’ (Lv 11, 44; 21, 23).

É possível ler diferentes vozes nos profetas e nos salmos. À pergunta; ‘Quem subirá o monte do Senhor, quem entrará em sua santa habitação?’, ou : ‘Quem dentre nós pode habitar com um fogo abrasador?’, responde-se com indicações requintadamente morais : ‘Quem tem mãos puras e inocente coração’, e ‘quem caminha na justiça e fala com lealdade’ (cf. Sl 24, 3; Is 33, 14 s.). São vozes sublimes que, porém, permanecem isoladas. Ainda no tempo de Jesus, nos fariseus e em Qumram prevalece a ideia de que a santidade e a justiça consistem na pureza ritual e na observância de certos preceitos, especialmente o do Sábado, embora se, na teoria, ninguém esquece que o primeiro e maior mandamento é o do amor a Deus e ao próximo.


2. A novidade de Cristo

Passando agora para o Novo Testamento, vemos que a definição de ‘nação santa’ estende-se bem cedo aos cristãos. Para Paulo, os batizados são ‘santos por vocação’, ou ‘chamados a ser santos[6]. Ele designa habitualmente os batizados com o termo ‘os santos’. Os fieis são ‘escolhidos para ser santos e imaculados diante dele no amor’ (Ef 1, 4). Mas sob a aparente identidade de terminologia vemos mudanças profundas. Santidade não é mais um fato ritual ou legal, mas moral, até mesmo ontológico. Não reside nas mãos, mas no coração; não se decide fora, mas dentro do homem e resume-se na caridade. ‘Não é o que entra pela boca que contamina o homem; o que sai da boca, isso contamina o homem’ (Mt 15, 11).

Os mediadores da santidade de Deus não são mais lugares (o templo de Jerusalém ou o monte Carizim), ritos, objetos e leis, mas é uma pessoa, Jesus Cristo. Ser santo não consiste tanto em um estar separado disto ou daquilo, mas em um estar unido a Jesus Cristo. Em Jesus Cristo está a própria santidade de Deus que nos alcança pessoalmente, não em uma luz distante dele. ‘Tu és o Santo de Deus!’ : duas vezes ressoa esta exclamação dirigida a Jesus nos Evangelhos (Jo 6, 69; Lc 4, 34). O livro do Apocalipse chama Cristo simplesmente ‘O Santo’ (Ap 3,7) e a liturgia ecoa exclamando no Glória ‘Tu solus Sanctus’, Só Tu és o Santo.

Há duas maneiras de entrar em contato com a santidade de Cristo e esta é comunicada a nós : por apropriação e por imitação. Dessas, a mais importante é a primeira que se realiza na fé e por meio dos sacramentos. A santidade é, antes de mais nada, graça e é obra de toda a Trindade. Porque, de acordo com o Apóstolo, nós pertencemos a Cristo mais do que a nós mesmos (cf. 1 Cor 6, 19-20), segue-se que, inversamente, a santidade de Cristo nos pertence mais do que a nossa própria santidade. ‘O que é de Cristo - escreve o teólogo bizantino Nicolau Cabasilas - é mais nosso do que aquilo que é nosso[7]. Essa é a ideia genial, ou ato corajoso, que temos que realizar na vida espiritual. A sua descoberta não se faz, geralmente, no começo, mas no final do próprio itinerário espiritual; não no noviciado, mas mais tarde, quando já se experimentou todas as outras estradas e vemos que não levam muito longe.

Paulo nos ensina como fazer este ‘ato corajoso’, quando declara solenemente não querer ser encontrado com a sua própria justiça, ou santidade, resultante do cumprimento da lei, mas apenas com aquela que deriva da fé em Cristo (cf. Fl 3, 5-10). Cristo, diz, se tornou para nós ‘justiça, santificação e redenção’ (1 Cor 1,30). ‘Para nós’ : portanto, podemos exigir a sua santidade como nossa em todos os efeitos. Um ato corajoso é também o que faz São Bernardo, quando grita: ‘eu, quando me falta, o aproprio (literalmente, o usurpo) do lado de Cristo’ [8]. ‘Usurpar’ a santidade de Cristo, ‘arrebatar o reino dos céus’! Isso é ato corajoso que deve ser repetido muitas vezes na vida, especialmente, no momento da comunhão eucarística.

Dizer que nós participamos da santidade de Cristo, é como dizer que participamos do Espírito Santo que vem dele. Ser ou viver ‘em Cristo Jesus’ equivale, para São Paulo, ser ou viver ‘no Espírito Santo’. ‘A partir disso - por sua vez, escreve São João – se reconhece que nós permanecemos nele e ele em nós : ele nos fez o dom do seu Espírito’ (1 Jo 4, 13). Cristo permanece em nós e nós permanecemos em Cristo, graças ao Espírito Santo.

É o Espírito Santo, portanto, que nos santifica. Não o Espírito Santo no geral, mas o Espírito Santo que foi em Jesus de Nazaré, que santificou a sua humanidade, que se recolheu nele como em um vaso de alabastro e que, da sua cruz e em Pentecostes, ele derramou sobre a Igreja. Por isso, a santidade que está em nós não é uma segunda e diferente santidade, mas é a mesma santidade de Cristo. Nós somos verdadeiramente ‘santificados em Cristo Jesus’ (l Cor 1,2). Como no batismo, o corpo do homem está imerso e lavado na água, assim a sua alma é, por assim dizer, batizada na santidade de Cristo: ‘Fostes lavados, fostes santificados, fostes justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus’, diz o Apóstolo referindo-se ao batismo (1 Cor 6,11).

Ao lado deste meio fundamental da fé e dos sacramentos, deve estar também a imitação, as obras, o esforço pessoal. Não como meio independente e diferente, mas como o único meio adequado de manifestar a fé, traduzindo-a em ato. A oposição fé – obras é um falso problema que se manteve por causa da controvérsia histórica. As boas obras, sem a fé, não são obras ‘boas’ e a fé sem as obras boas não é verdadeira fé. Basta que por ‘obras boas’ não se entendam principalmente (como infelizmente era no tempo de Lutero) indulgências, peregrinações e práticas piedosas, mas a observância dos mandamentos, especialmente o do amor fraterno. Jesus disse que no juízo final alguns serão excluídos do Reino por não terem vestido o nu e alimentado o faminto. Não há salvação, portanto, pelas obras boas, mas não há salvação sem as obras boas. Podemos resumir assim a doutrina do concílio de Trento.

Acontece igual à vida física. A criança não pode fazer absolutamente nada para ser concebida no seio da mãe; precisa do amor dos pais (pelos menos foi assim até hoje!). Uma vez que nasceu, deve fazer trabalhar os seus pulmões para respirar, sugar o leite; em suma, deve trabalhar, senão a vida que recebeu morre. A frase de São Tiago : ‘A fé, sem as obras é morta’ (Tg 3, 26) deve ser entendida neste sentido, isto é, no presente : a fé sem as obras morre.

No Novo Testamento, dois verbos são usados para referir-se à santidade, um no indicativo e um no imperativo : ‘Sois Santos’, ‘Sede santos’. Os cristãos são santificados e santificantes [9]. Quando Paulo escreve : ‘Esta é a vontade de Deus, a vossa santificação’, é claro que se refere justamente a esta santidade que é fruto de compromisso pessoal. Acrescenta, de fato, como para explicar em que consiste a santificação da qual está falando : ‘Que vos abstenhais da imodéstia, que cada um saiba manter o próprio corpo com santidade e respeito’ (cf. 1 Ts 4: 3-9).

O nosso texto da Lumen Gentium enfatiza claramente estes dois aspectos, um objetivo e outro subjetivo, da santidade, baseados respectivamente na fé e nas obras. Diz :

Os seguidores de Cristo, chamados por Deus e justificados em Jesus Cristo, não segundo as suas obras, mas segundo o desenho e a graça Dele, no batismo da fé foram feitos realmente filhos de Deus e coparticipantes da natureza divina, e, por isso, realmente santos. Esses devem, portanto, com a ajuda de Deus, manter e aperfeiçoar, vivendo-a, a santidade que receberam[10].

Porque, de acordo com Lutero, a Idade Média tinha se desviado sempre mais para acentuar o lado de Cristo como modelo, e ele acentuou o outro, afirmando que ele é dom e que este dom corresponde à fé aceitar [11]. Hoje estamos todos de acordo que não se deve contrapor as duas coisas, mas mantê-las unidas. Cristo é, antes de mais nada, dom a ser recebido por meio da fé, mas é também modelo a ser imitado na vida. Ele próprio fala isso no Evangelho : ‘Eu vos dei o exemplo, para que façais como eu vos fiz (Jo 13, 15); Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração’ (Mt 11, 29).


3. Santos ou fracassados

Este é o ideal novo de santidade do Novo Testamento. Um ponto permanece inalterado, e é possível aprofundá-lo na passagem do Antigo ao Novo Testamento e é a motivação de fundo do chamado à santidade, o ‘porquê’ é necessário ser santos : porque Deus é santo. ‘À imagem do santo que vos chamou, sede também vós santos’. Os discípulos de Cristo devem amar os inimigos, ‘para ser filhos do Pai celeste que faz chover sobre justos e sobre injustos’ (Mt 5, 45). A santidade não é, portanto, uma imposição, um fardo que nos é colocado sobre os ombros, mas um privilégio, um dom, uma honra suprema. Uma obrigação, sim, mas que deriva da nossa dignidade de filhos de Deus. Aplica-se à ela, no sentido pleno, o ditado francês ‘noblesse oblige’.

A santidade é exigida pelo próprio ser da criatura humana; não diz respeito aos acidentes, mas à sua própria essência. Ele deve ser santo para realizar a sua identidade profunda que é de ser ‘a imagem e semelhança de Deus’. Para a Escritura, o homem não é principalmente, como para a filosofia grega, o que é determinado a ser pelo seu nascimento (physis), ou seja, um ‘animal racional’, mas o que é chamado a se tornar, com o exercício da sua liberdade, na obediência a Deus. Não é tanto natureza, mas vocação.

Se, portanto, somos ‘chamados a ser santos’, se somos ‘santos por vocação’, então fica claro que seremos pessoas verdadeiras, realizadas, na medida em que formos pessoas santas. Caso contrário, seremos pessoas fracassadas. O contrário de santo não é pecador, mas fracassado! Pode-se fracassar na vida de muitas formas, mas são fracassos relativos que não comprometem o essencial; aqui se fracassa radicalmente naquilo que se é, não só naquilo que se faz. Tinha razão Madre Teresa quando perguntada à queima roupa por uma jornalista o que ela sentia quando era aclamada santa por todo o mundo, respondeu : ‘A santidade não é um luxo, é uma necessidade’.

O filósofo Pascal formulou o princípio das três ordens ou níveis de grandeza : a ordem dos corpos ou da matéria, a ordem da inteligência e a ordem da santidade. Uma distância quase infinita separa a ordem da inteligência da dos corpos, mas uma distância ‘infinitamente mais infinita’ separa a ordem da santidade da ordem da inteligência. Os genes não precisam das grandezas materiais; não podem tirar ou acrescentar nada a eles. Da mesma forma, os santos não precisam das grandezas intelectuais; a sua grandeza é de outra ordem. ‘Eles são vistos por Deus e pelos anjos, não pelos corpos e pelas mentes curiosas; basta-lhes Deus’.

Este princípio permite avaliar da forma certa as coisas e as pessoas que nos rodeiam. A maioria das pessoas permanecem paradas no primeiro nível e nem sequer suspeitam da existência de um plano superior. São aqueles que passam a vida preocupados só em acumular riquezas, cultivar a beleza física, ou aumentar o próprio poder. Outros acreditam que o valor supremo e o vértice da grandeza seja o da inteligência. Procuram se tornar célebres no campo das letras, da arte, do pensamento. Só poucos sabem que existe um terceiro nível de grandeza, a santidade.

Esta grandeza é superior porque eterna, porque é tal aos olhos de Deus que é a verdadeira medida da grandeza e também porque realiza o que há de mais nobre no ser humano, ou seja, a sua liberdade. Não depende de nós nascermos fortes ou fracos, bonitos ou menos bonitos, ricos ou pobres, inteligentes ou pouco inteligentes; depende de nós, sim, sermos honestos ou desonestos, bons ou maus, santos ou pecadores. Tinha razão o musico Gounod, ele próprio um gênio, quando dizia que ‘um gota de santidade vale mais do que oceano de gênio [12]’.

A boa notícia, sobre a santidade, é que não se é obrigado a escolher um destes três tipos de grandeza. Pode-se ser santos em cada um deles. Houve, e há santos entre os ricos e entre os pobres, entre os fortes e entre os fracos, entre os gênios e as pessoas sem cultura. Ninguém está excluído desta magnitude do terceiro nível.


4. Voltar ao caminho da santidade

O nosso tender à santidade é semelhante ao caminho do povo eleito no deserto. Esse também é um caminho feito de contínuas paradas e partidas. De tanto em tanto o povo parava e acampava; ou porque estava cansado, ou porque tinha encontrado água e comida, ou simplesmente porque cansa caminhar sempre. Mas eis que chega de improviso a ordem do Senhor a Moisés de levantar as tendas e recomeçar a caminhada : ‘Levante, saia daqui, tu e o teu povo, rumo à terra que prometi’ (Ex 15, 22; 17, 1).

Na vida da Igreja, essas chamadas para voltar à caminhar são ouvidas, especialmente, no início dos tempos fortes do ano litúrgico ou por ocasiões particulares como é o jubileu da misericórdia divina aberto recentemente pelo Papa. Para cada um de nós, tomados individualmente, o tempo de levantar as tendas e recomeçarmos a caminhada rumo a santidade é quando nos damos conta, no íntimo, da misteriosa chamada que vem da graça. No começo, há como que um momento de parada. A pessoa para no turbilhão de suas ocupações, toma, como se costuma dizer, as distâncias de tudo para olhar a sua vida quase que de fora ou do alto, sub specie aeternitatis. Surgem, então, as grandes perguntas : ‘Quem sou? O que quero? O que estou fazendo da minha vida?

Embora fosse um monge, São Bernardo teve uma vida muito movimentada : concílios que presidiu, bispos e abades que reconciliou, cruzadas que pregou. De vez em quando, diz o seu biógrafo, ele parava e, quase entrando em diálogo consigo mesmo, se perguntava : ‘Bernardo, a que viestes?’ (Bernarde, ad quid venisti?) [13]. Por que deixastes o mundo e entrastes no mosteiro? Nós podemos imitá-lo; pronunciar o nosso nome (também isso serve) e perguntar-nos : Por que es cristão? Por que es sacerdote ou religioso? Estás realizando aquilo pelo qual estás no mundo?

No Novo Testamento se descreve um tipo de conversão que poderíamos definir como a conversão-despertar, ou a conversão da mediocridade. No Apocalipse se leem sete cartas escritas aos anjos (segundo alguns exegetas aos bispos) de várias outras Igrejas da Ásia Menor. Na carta ao anjo de Éfeso, ele começa reconhecendo o que o destinatário fez de bom : ‘Conheço as tuas obras, o teu cansaço e a tua constância... És constante e tens sofrido muito pelo meu nome, sem cansar-te’. Depois passa a listar o que, pelo contrário, não lhe agrada: ‘Abandonastes o teu primeiro amor!’. E eis que, neste ponto, ressoa, como uma trombeta entre adormecidos, o grito do Ressuscitado : Metanòeson, ou seja, converte-te! Levanta-te! Sacode-te! (Ap 2, 1 ss.).

Essa é a primeira das sete cartas. Muito mais severa é a última dessas, aquela dirigida ao anjo da Igreja de Laodiceia : ‘Conheço as tuas obras : tu não eres nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente!’. Converte-te e volte a ser zeloso e fervoroso : Zeleue oun kai metanòeson! (Ap 3,15 ss). Também esta, como todas as outras, termina com aquele misterioso aviso : ‘Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas’ (Ap 3, 22).

Santo Agostinho nos dá uma dica : começar a despertar em nós o desejo de santidade : ‘Toda a vida do bom cristão – escreve – consiste em um santo desejo [ou seja, em um desejo de santidade] : Tota vita christiani boni, sanctum desiderium est’ [14]. Jesus disse : ‘Bem aventurados aqueles que tem fome e sede de justiça, porque serão saciados’ (Mt 5, 6). A justiça bíblica, se sabe, é a santidade. Nos deixamos, por isso, com uma pergunta para meditar : ‘Eu tenho fome e sede de santidade, ou estou me contentando com a mediocridade?’’

Fonte :
*Artigo na íntegra
------------------------
[1] Concilio Vaticano II.  Documenti, Edizioni Dehoniane, Bologna 1967, p.47.
[2] S. Agostino, Lo Spirito e la lettera, 32,56 (PL 44, 237).
[3] Cf. Storia del concilio Vaticano II, organizado por G. Alberigo, vol. IV, Bologna 1999, pp. 68 ss.
[4] Lumen gentium, 39.
[5] Cf. Dt 32,4; Dn 3, 27; Ap 16, 7.
[6] Cf. Rom 1, 7 e 1 Cor 1, 2.
[7] N. Cabasilas, Vita in Cristo IV, 6 (PG 150, 613).
[8] S. Bernardo, Omelie sul Cantico, 61, 4-5 (PL 183, 1072).
[9] Cf. 1 Cor 1, 2; 1 Pt 1,2; 2, 15.
[10] Lumen gentium, 40
[11] Cf. Søeren Kierkegaard, Diario X 1,A 154 (ed. Organizada por C. Fabro, Brescia 1962, vol. I, p. 821).
[12] B. Pascal, Pensieri 593.
[13] Guglielmo di St. Thierry, Vita prima, I, 4 (PL 185, 238).
[14] S. Agostinho, In Epist. Joh. 4, 6  (PL 35, 2008).