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sexta-feira, 29 de setembro de 2023

A Idade Média foi “noite escura”?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Veritatis Splendor


‘A Idade Média é por vezes considerada qual «noite de mil anos» que se abateu sobre a civilização, constituindo, pela barbárie e ignorância de seus homens, verdadeira mancha no decorrer da História.

É o que, conforme alguns autores, a própria designação «Idade Média» deveria incutir. Esta foi forjada pelos humanistas do séc. XVI, que com tal denominação queriam caracterizar o período da língua latina, que vai da idade clássica antiga ao Renascimento da mesma, no séc. XVI. Entre duas épocas áureas estaria [então] uma fase intermediária ou «média», fase apagada ou decadente na História do idioma latino.

Em 1688, o historiador alemão Cristóvão Keller (Cellarius) na sua «Historia Medii Aevi» (=‘História da Idade Média’) adotou pela primeira vez o nome no setor da História da Civilização, o que dava a entender que o período decorrente entre a Idade Antiga e a Renascença foi igualmente uma época apagada e decadente.

Nem todos os autores, porém, concordaram com tal modo de ver…

O historicismo do século passado tinha a Idade Média na conta de período cheio de realizações construtivas.

Vejamos o que há de objetivo nestas diversas apreciações.

1) O período Antigo ou Greco-Romano da civilização termina com a ruína do Império Romano, o qual cedeu aos golpes das invasões bárbaras (Roma caiu em 476). A Europa e a África Setentrional foram ocupadas pelos germanos invasores que, após haver derrubado as instituições antigas, eram incapazes de construir a vida social, pois careciam de valores culturais correspondentes. Ora, tendo desaparecido a figura do Imperador no Ocidente, a única autoridade capaz de tomar as rédeas da situação europeia dos séculos V/VII era a autoridade eclesiástica : o Papa, então, os bispos e os monges se puseram a preservar da perda total os valores da civilização greco-romana, utilizando-os na confecção de nova síntese cultural.

Não há dúvida de que a Religião Católica foi altamente benemérita neste trabalho de reconstrução; criaram-se valores e instituições de vulto no início e no decurso da Idade Média. Detendo-nos apenas na história da educação e da cultura, devemos mencionar que foram os clérigos e monges que asseguraram o ensino primário nas escolas catedrais, monacais e palatinas (isto é, erguidas respectivamente junto a uma igreja catedral, a um mosteiro, a um palácio de rei).

Eis alguns documentos a propósito :

Teodulfo, bispo de Orléans no séc. VIII, promulgou a seguinte lei :

– ‘Os sacerdotes mantenham escolas nas aldeias, nos campos. Se qualquer dos fiéis lhes quiser confiar os seus filhos para aprender as letras, não os deixem de receber e instruir, mas ensinem-lhes com perfeita caridade. Nem por isto exijam salário ou recebam recompensa alguma, a não ser por exceção, quando os pais voluntariamente a quiserem oferecer por afeto ou reconhecimento’ (Sirmond, Concilia Galliae 2,215).

Este decreto passou verbalmente para as legislações eclesiásticas da Inglaterra. Frequentemente os Concílios regionais dos séc. VIII/IX repetiram semelhantes normas. O III concilio ecumênico do Latrão em 1179, por sua vez, lavrou o seguinte cânon :

– ‘A Igreja de Deus, qual mãe piedosa, tem o dever de velar pelos pobres aos quais, pela indigência dos pais, faltam os meios suficientes para poderem facilmente estudar e progredir nas letras e nas ciências. Ordenamos, portanto, que em todas as igrejas catedrais se proveja um benefício (rendimento) conveniente a um mestre, encarregado de ensinar gratuitamente aos clérigos dessa igreja e a todos os alunos pobres’ (cân. 18, Mansi 22,227-228).

Também o ensino superior na Idade Média se ministrava por iniciativa, ou ao menos sob a tutela, de bispos e príncipes cristãos. As primeiras Universidades foram fundadas por volta de 1100. Constituem uma das criações mais originais e valiosas da Idade Média : no período greco-romano cada filósofo e cada mestre de ciências tinham sua escola — o que implicava justamente no contrário de uma Universidade. Esta, na Idade Média, reunia mestres e discípulos de várias nações, os quais constituíam poderosos focos de erudição.

Até 1440, foram erigidas na Europa 55 Universidades e 12 Institutos de Ensino Superior, onde se ministravam cursos de Direito, Medicina, Línguas, Artes, Ciências, Filosofia e Teologia. Em 1200, Bolonha contava dez mil estudantes (italianos, lombardos, francos, normandos, provençais, espanhóis, catalães, ingleses, germanos etc.). O Papa Clemente V, no Concílio de Viena, em 1311, mandou que se instaurassem nas escolas superiores cursos de línguas orientais (hebreu, caldeu, árabe, armênio etc.), o que em breve foi executado em Paris, Bolonha, Oxford, Salamanca e Roma.

Poder-se-iam multiplicar dados deste gênero. Estes, porém, já dão a ver que a Idade Média não foi alheia à cultura, justamente em virtude da influência da Igreja que nela se exerceu.

2. É preciso, porém, reconhecer uma particularidade da ciência medieval : os homens da época careciam do aparato técnico necessário a experiências e investigações precisas; o seu horizonte geográfico e astronômico também era bastante restrito. Sendo assim, a ciência medieval era levada não raro a julgar os fenômenos segundo a sua aparência e pouco habilitada a exercer o senso crítico.

Outra consequência da penúria de meios de observação é que os cientistas medievais procediam por dedução mais do que por indução; não podendo formular as leis da natureza na base de experiências exatas físico-químicas, os medievais as formulavam recorrendo a princípios especulativos, abstratos, dos quais julgavam poder deduzir a explicação dos fenômenos da natureza. Este trabalho, porém, era em alta escala sujeito a erro : os medievais não raro julgavam (e nisto se enganavam) que a Bíblia Sagrada podia ser utilizada para elucidar não somente questões teológicas, mas também temas de ciências profanas, de sorte que, na falta de outros critérios, apelavam para a Escritura a fim de resolver problemas de ordem biológica, astronômica etc. (haja vista o que ainda no séc. XVII se deu no caso «Galileu», do qual trata o artigo O caso de Galileu).

Deve-se sublinhar que tal atitude se devia em grande parte à falta de instrumentos precisos para a investigação da natureza (falta bem compreensível na Idade Média, já que o homem só aos poucos progride na conquista do mundo que o cerca). Não seria justo dizer que os cristãos medievais tinham medo da ciência empírica e que as autoridades eclesiásticas travavam os estudos a fim de evitar conflitos de Ciência e Fé; entre os pioneiros dos avanços científicos medievais contam-se eclesiásticos, monges e cristãos de valor, como Santo Alberto Magno (op), Rogério Bacon (ofm), João Peckam (ofm; arcebispo de Cantuária), Dietrich de Freiberg (op), Jordão Nemorário, Guilherme de Moerbeke (op)…

Muito significativo é um dos últimos depoimentos sobre o assunto, proferido em 1957 por um grupo de estudiosos que, sem intenção confessional alguma, escreveram a História da Ciência Antiga e Medieval :

– ‘Parece-nos impossível aceitar a dupla acusação de estagnação e esterilidade levantada contra a Idade Média latina. Por certo, a herança (cultural) antiga não foi totalmente conhecida nem sempre judiciosamente explorada; (…) mas não é menos verdade que de um século para outro — mesmo de uma geração a outra dentro do mesmo grupo — há evolução e geralmente progresso. A Igreja (…) na Idade Média salvou e estimulou muito mais do que freou ou desviou. Por isso, embora só queira apelar para a Antiguidade, a Renascença é realmente a filha ingrata da Idade Média’ (‘La Science Antique et Médiévale’, sob a direção de René Taton, Presses Universitaires de France, Paris, 1957, pp.581-582).

Em particular, com referência ao fato de que só a partir de fins do séc. XIII se começaram a fazer dissecações e observações em cadáveres humanos, dizem os mencionados estudiosos :

– ‘Como quer que seja, não se poderia aceitar a opinião um tanto simplista segundo a qual a Igreja teria sido ‘a grande responsável da estagnação dos estudos de anatomia’’ (ibidem, p.580).

Estes testemunhos tão insuspeitos levam a concluir que as crenças cristãs dos homens medievais não prejudicaram a cultura humana; antes, a favoreceram – apesar das consequências errôneas que em matéria de ciências os medievais julgavam por vezes dever deduzir da sua fé.

Dê o observador muito maior atenção a outra faceta da cultura medieval : a capacidade humana de especulação filosófica parece ter atingido então o auge de sua clareza e agudez, criando as famosas Sumas de Lógica, Ontologia e Metafísica da Idade Média. Estas obras, continuando as dos grandes pensadores gregos (principalmente de Aristóteles), até hoje são monumentos perenes, não ultrapassados, da cultura humana.

É, sem duvida, este aspecto positivo que merece preponderância numa apreciação objetiva da Idade Média.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2017/03/14/a-idade-media-foi-noite-escura/

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A noite escura da alma no mundo atual

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
 *Artigo de Talita Rodrigues


‘Ouvi a seguinte frase de um paciente : ‘Parece-me injusto que quem me feriu profundamente seja feliz antes que eu’. O fato é que, quando somos feridos profundamente, sentimos um vazio enorme no peito. Sentimos uma pequena mostra da solidão. E arrisco dizer aqui que até experienciamos por algum motivo, um pedacinho da noite escura da alma.

Parece que, independentemente do que estejamos sentindo, não vai passar. Vemos alguém que nos fez tanto mal e que deixou o nosso coração quebrado sendo feliz antes de nós. E quando nos deparamos com isso, temos a tendência de começar a questionar Deus.

Questionamos a Deus o porquê da demora do nosso milagre, e ainda temos a ousadia de questioná-lo sobre o porquê o outro alcançou a felicidade que tanto queríamos antes de nós.

Santa Faustina e a noite escura da alma 

Oramos, suplicamos a Deus pelo nosso pequeno ou grande milagre, e nada. Nada acontece. Deus permanece em silêncio e faz com que provemos a noite escura de alma, assim como Santa Faustina relatou em seu Diário :

‘Era estranho como a minha mente estava assim obscurecida; nenhuma verdade me parecia clara : quando me falavam de Deus, o meu coração era como pedra. Não conseguia extrair de mim um só sentimento que fosse, de amor para com Ele. Sempre que procurava, por um ato de vontade, permanecer em Deus, experimentava tormentos enormes e parecia-me que, deste modo, aí estava a Sua maior ira. Não era capaz de meditar, como antigamente. sentia um grande vazio na minha alma e nada havia que o pudesse preencher. Comecei a sofrer uma grande fome e ânsia de Deus; mas reconhecia a minha total incapacidade’ (D.77)

E quantas vezes, o nosso coração está como uma pedra e você não consegue sentir um sentimento de amor com Ele em noites escuras? Quantas vezes você O buscou com toda a força que restava em seu coração e experimentou noites de tormentos incessantes?

Quantas vezes você tentou orar e sentiu que sua oração não chegou até o coração de Jesus Cristo? Se pensarmos bem, Jesus guiou a Irmã Faustina pela escuridão da fé, revelando-se desde o principio da sua vida religiosa. Chamava-a à vida mística, e ela, sendo uma Irmã simples, não sabia bem como tornar-se Esposa de Cristo.

Na escuridão da fé a Apóstola da Misericórdia descobria a grandeza de Deus e, ao mesmo tempo, a sua tendência para pecar. E isso é importante lembrar, porque nós somos pecadores.

Oração 

Para a Irmã Faustina, já não bastava uma oração simples. Quando, numa das visões, Jesus lhe disse que, sendo Sua esposa, ia partilhar com Ele o seu destino (cf. D 268), começou a pensar como ela poderia participar na vida do Amado – e então, o sol começou a brilhar novamente.

Para concluir, podemos refletir sobre o mistério da oração feita por Cristo no Horto das Oliveiras, onde Santa Faustina compreendeu que, sofrendo, tinha a oportunidade de se aproximar de Deus, Nosso Salvador. Vendo o Seu suor de sangue, descobriu que, através do seu próprio sofrimento – primeiro a doença, depois passando pelo sofrimento espiritual da noite escura de alma que a destruía interiormente – poderia sim, estar e se sentir perto de Jesus. Afinal, Jesus Cristo era seu único refúgio.

Noites escuras da alma no mundo atual 

Noites escuras da alma no mundo atual estão muito presentes em casos de depressão, ansiedade e outros transtornos psicológicos. E é por isso que sempre salientarei aqui a importância de acreditar em Deus. De acreditar que mesmo quando passamos por noites escuras, Ele sempre estará ao nosso lado – mesmo permitindo a noite escura de alma.

Se você se sente assim, busque ajuda. Busque a Deus acima de todas as coisas. E se isso não for suficiente, busque ajuda com um bom profissional cristão, que te aproxime de Deus e que te ajude a enxergar luz na sua alma.

Quando a noite escura passar, e a luz aparecer novamente, você estará curado(a).

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2021/08/09/a-noite-escura-da-alma-no-mundo-atual/

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

O caminho do amor é o da noite escura

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

João da Cruz pintado por Francisco de Zurbarán

*Artigo de Augusto O.


‘Diz-se dos santos como figuras exemplares no seguimento de Cristo. Embora a santidade seja atributo divino, Deus, conforme texto do Levítico (20,7), chama o ser humano a ser santo como ele o é. Portanto, é um projeto humanamente possível, ao qual diversas escolas espirituais vão se propor a delinear o caminho.

Nesse sentido, é emblemática a mística, isto é, ‘caminho de união espiritual’ proposta por João da Cruz.  Esse frei espanhol que viveu no século 16 a trata desde a perspectiva do enamoramento e do que chama ‘matrimônio espiritual’. De fato, só compreendemos o significado amplo da sexualidade séculos depois, a partir de Freud, mas esse santo já compreendia, desde a (i)lógica da espiritualidade, que a união com Deus se dá desde essa potência humana. A santidade, figurada pelas núpcias, consiste numa interpenetração divino-humana.

Aqui se fala de lógica e ilógica porque a espiritualidade tem e traz sentido, mas este não é acessível por uma razão instrumental, como o quiseram operar diversos intelectuais. Deus é melhor compreendido pelos místicos e pelos poetas. João da Cruz foi os dois. Assim, não se compreende seus escritos se não pela experiência da oração, porque se trata mais de um saborear do que de uma compreensão intelectual que não implica a vida e os afetos.

Em um de seus escritos, Ditos de luz e amor, João é categórico em algo que pode expressar bem o ponto de partida de toda sua espiritualidade. Ele diz : ‘O que Deus pretende é fazer-nos deuses por participação, sendo-o Ele por natureza, como o fogo que tudo converte em fogo’. O santo entende que o chamado divino é o da participação humana na natureza divina, um processo de deificação, embora este, como criatura, jamais será como aquele. Deus é. O humano é em Deus. Por hora, enquanto não se dá a união total e definitiva, cada um vai sendo, está em devir, como se diz filosoficamente.

O desafio desse caminho é deixar-se inflamar por Deus, consumir-se nas divinas chamas do seu amor. Aliás, Jesus nos evangelhos relê o Levítico ao dizer ‘sede perfeitos como o Pai do céu é perfeito’ (Mateus 5,48) e ‘sede misericordiosos como o Pai do céu é misericordioso’ (Lucas 6,36). Perfeito vem de perfacere, já feito, pronto, concluído. O humano, imagem e semelhança de Deus, ainda está em processo. Vivemos ainda no sexto dia da criação, Deus ainda não descansou. Só no sétimo alcançaremos o ser (em Deus).

Entretanto, a perfeição não consiste num cumprimento de regras, ela se realiza no amor, que é a natureza divina. A vivência da misericórdia, do amor, consiste na perfeição evangélica, onde quem se deixa consumir por Deus também inflama o mundo. Desse modo, a mística de João da Cruz será exigente, não porque proponha a vivência das virtudes teologais depois de uma renúncia ao mal, como possa parecer a quem o lê, mas porque ela entende que o amor de Deus deve ser o absoluto da pessoa.

Compreendendo a limitação do criado, a espiritualidade do santo carmelitano coloca em Deus a iniciativa de unir-se ao humano, que o atrai. Ele purificará o amor da pessoa através de um caminho, simbolizado na subida de um monte, como no livro Subida ao monte Carmelo. Contudo, esse trajeto é paradoxal. Para subir, é preciso descer ao próprio íntimo; para encontrar a luz, há de se passar pela escuridão. A noite escura de João da Cruz é a pedagogia de Deus que purifica os sentidos humanos para um amor gratuito, onde a pessoa vai o encontrando sem sentir, transcendendo até mesmo o saber. Como escreve o santo, ‘Entrei-me a onde não soube e quedei-me não sabendo, toda ciência transcendendo’.

A pessoa em noite escura, cuja descrição parece com a de uma depressão ou angústia profunda, não sente gosto por nada, nem pelas coisas de Deus. Isso porque elas são meios, e Deus mesmo é o fim; um fim que está no começo e no meio. Ou seja, na escuridão, quem o busca só sente sua ausência, apesar de estar permeado por ele.

Essa busca só termina quando o divino não é buscado, quando cessa toda atividade e a pessoa se deixa encontrar por ele. A mística de João da Cruz é o caminho de entrega, de deixar as próprias resistências e abandonar-se no amor. Por isso o santo usa as imagens da amada (alma) e do amado (Deus), porque a figura do masculino belicista dos ideais de cavalaria do seu tempo não lhe servem.

As imagens do feminino com sua paradoxal fragilidade e fortaleza são a melhor descrição duma espiritualidade que não parte de um ascetismo voluntário ou do zelo religioso que persegue hereges. Antes, consiste na implicação de contrários de quem perdido se encontra; na fraqueza, fortalece-se.  ‘Esquecida, quedei-me, o rosto reclinado sobre o Amado; tudo cessou. Deixei-me, largando meu cuidado, por entre as açucenas olvidado’, termina a noite escura.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1474245/2020/10/o-caminho-do-amor-e-o-da-noite-escura/