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terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Um olhar sobre o naufrágio, do mundo antigo às migrações contemporâneas

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre Alfredo J. Gonçalves, CS,

vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM)


‘A noção de naufrágio remete ao Mundo Antigo e à Idade Média, com suas embarcações frágeis e vulneráveis pelos mares bravios. Lembra de forma toda particular os séculos XV e XVI, época dos grandes descobrimentos e longas navegações, onde eram frequentes os ataques dos piratas. Mas remete também à famigerada noite entre 15 e 16 de abril de 1912, ano em que o imbatível Titanic, gigantesco titã dos mares, chocou-se com um iceberg, causando a morte de quase 1500 pessoas.

E remete, ainda, às últimas décadas do século XX e primeiras do século XXI, quando inúmeros imigrantes perderam a vida, tanto na arriscada travessia das águas do Mediterrâneo, quanto em outras travessias igualmente temerárias.

O naufrágio de imigrantes, entretanto, de um ponto de vista figurado, traz à tona as tormentas de um modo de produção que, em lugar da primazia sobre o trabalho e a pessoa humana, privilegia a privatização dos lucros e a acumulação do capital. Trabalhadores e trabalhadoras, num vaivém sucessivo e em sua grande maioria forçado, são vistos como meras ‘peças de reposição’ de uma engrenagem complexa, impiedosa e cada vez mais globalizada. Peças que tendem a ser, a um só tempo, desejadas e rechaçadas.

Peças de reposição

O fato de que expressivos deslocamentos humanos se põem em movimento pela face da terra, costuma revelar turbulências ocultas. Representam, a bem dizer, agitação superficial e visível de correntes subterrâneas invisíveis. Os terremotos ou maremotos provocados pelas decisões políticas e econômicas, com seus efeitos em cascata, soem produzir tsunamis populacionais que marcham em todas as direções.

Os imigrantes, considerados como peças de reposição, são desejados onde e quando escasseiam os braços para os serviços que, se de um lado requerem grande dispêndio de força e energia, de outro dispensam especial qualificação técnica, sendo em geral precariamente remunerados. Mas são igualmente rechaçados onde e quando a crise e o desemprego rondam as portas. Tornam-se, então, estranhos e intrusos que, nos lugares em que desembarcam, disputam as oportunidades e as migalhas do trabalho com a população local.

Com frequência, de resto, a acolhida e o rechaço ocorrem no mesmo espaço e de forma simultânea, de acordo com a oscilação cíclica, turbulenta e contraditórias da produção capitalista.

‘Mão invisível’ e ‘dupla ausência’

Nestes casos, não é difícil constatar como a ‘mão invisível’ da obra de Adam Smith, Teoria dos Sentimentos Morais (1759) não dispensa o punho de ferro das forças da ordem. Numa palavra, quando o liberalismo (ou neoliberalismo) obtém ganhas vultosos e mão-de-obra abundante, vale o credo da mão invisível. Entretanto, quando o ciclo da crise vem acompanhado de rajadas de ventos furiosos e contrários, seus representantes não hesitam em apelar para o punho de ferro da polícia e do exército, no sentido de conter possíveis desordens sociais e políticas.

Os senhores que, em tempos de lucros fáceis e fartos, pregam a liberdade total do mercado, rejeitando toda e qualquer intervenção do poder público, são os mesmos que, no momento da crise e de menores taxas de rentabilidade, gritam pelo socorro do Estado autoritário.

Pressionado de um lado e de outro, entre a terra natal definitivamente deixada para trás e um destino incerto, os migrantes acabam se configurando como mais atual ‘bode expiatório’, às vezes tanto na origem como no destino. Tendo abandonado a própria pátria por não encontrar nela condições dignas de vida, não raro os migrantes e refugiados são tidos como desordeiros no lugar onde tentam se fixar e reconstruir o destino interrompido. Os que falham nesse propósito e procuram retornar ao solo de onde partiram, também ali muitas vezes serão classificados como estrangeiros e indesejáveis. Discriminados lá e cá, num polo e no outro. Com o pé em cada lado, não se encontram em pátria alguma. ‘Dupla ausência’, de que nos fala Abdelmalek Sayad.

Somando os danos ao meio ambiente, causados pelo uso incorreto e indiscriminado dos recursos naturais, por uma parte, e a superexploração da força humana, por outra, cabe-nos perguntar até quando a Terra prosseguirá sua navegação sem risco de um colossal naufrágio planetário?!’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://migramundo.com/um-olhar-sobre-o-naufragio-do-mundo-antigo-as-migracoes-contemporaneas/

sexta-feira, 17 de julho de 2020

O naufrágio da humanidade

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 'As pessoas esperam dias e dias em barcos, e morrem no mar'

 'As pessoas esperam dias e dias em barcos, e morrem no mar'

*Artigo de Salvatore Cernuzio,

publicada por Vatican Insider

Tradução : Luisa Rabolini


‘‘Penso na Líbia, nos campos de detenção, nos abusos e violência de que os migrantes são vítimas. O que chega até nós é uma versão destilada’. Palavras ditas na semana passada na missa pelos sete anos de sua visita a Lampedusa, a ilha ao sul da Itália procurada por refugiados vindos da Argélia, Tunísia, Líbia, Bangladesh.

A versão completa da realidade dramática de milhares de refugiados, feridos no corpo e na alma durante as viagens da esperança, Padre Carmelo La Magra, pároco de San Gelando em Lampedusa, a vê todos os dias diante de seus olhos. ‘Não são apenas os relatos que ouvimos na ilha. Certas histórias são contadas não por palavras, mas pelos sinais que trazem os corpos dos migrantes : queimaduras, feridas, facadas’. Leia a entrevista do padre Carmelo à revista Vatican Insider.

Padre Carmelo, o Papa está certo quando fala de versões ‘destiladas’?

É claro que ele está certo. O que chega é uma versão aceitável, do nosso ponto de vista, sobre o sofrimento que os migrantes vivenciam. Histórias edulcoradas que não nos incomodam. Isso é feito para não perturbar os corações ou para que sejam aceitas determinadas escolhas políticas. Aqui, ouvimos testemunhos diretos, vemos vídeos de pessoas penduradas de cabeça para baixo ou tratamos queimaduras nos ombros dos meninos, facadas nas solas dos pés. Essa é realidade : histórias escritas na carne das pessoas, não teorias.

Alguma coisa mudou desde a visita do papa, com seu apelo para não desviar o olhar diante dessa emergência?

Perguntamo-nos isso todos os anos e a resposta é sempre a mesma. Nada mudou, certamente nada mudou para melhor. O grito do Santo Padre foi ouvido por pessoas de boa vontade, por muitos crentes, mas parece ter caído no vazio entre aqueles que têm poder ou os papéis de responsabilidade. Posso dizer que a situação piorou? Eu não sei, eu só sei que ainda estão sendo feitos acordos com aquela Líbia de que o Papa Francisco estava falando hoje, ainda estão em vigor decretos de segurança, o período de ‘portos fechados’ já passou, mas aqueles que fazem resgate no mar ainda são culpabilizados e se tende a dificultar quem tenta expressar um acolhimento. As pessoas morrem no mar, as pessoas ficam esperando dias e dias nos navios sem motivo. Basta pensar no que aconteceu até ontem em Malta, com 52 seres humanos em um navio que não tinha permissão para atracar. Por que fazer as pessoas sofrerem? Para quem está naquelas condições, um dia a mais faz a diferença.

Qual é a situação em Lampedusa neste momento?

Vários migrantes ainda estão presentes nos hotspots. Os desembarques continuaram nos últimos dias, após um intervalo devido ao vento que impedia as partidas. De fato, porém, nesses meses nunca foram interrompidos. Embora alguém tenha dito que a presença de ONGs era o chamariz, na verdade, nos últimos meses sem ONGs, o número de chegadas aumentou. Graças a Deus, algumas voltaram ao mar para prestar socorro. Além disso, as transferências também se tornaram mais rápidas e regulares.

 ‘Esta é realidade dos migrantes: histórias escritas a golpes na carne’

‘Esta é realidade dos migrantes : histórias escritas a golpes na carne’. 

Que tipo de trabalho o senhor realiza em Lampedusa? Imagino que a atividade pastoral comum como pároco em um contexto tão difícil não seja suficiente.

Como padre e pároco, meu compromisso, em primeiro lugar, é proclamar o Evangelho aos lampedusanos e a todos os que passam por aqui. Fiquei impressionado com as palavras do papa nesta manhã sobre reconhecer o rosto de Cristo nos irmãos em dificuldade. Esse é um desafio para a nossa comunidade paroquial; existem muitos fatores que dificultam a compreensão dessa verdade do evangelho. A tarefa do pároco é mediar, ressaltar que as necessidades não têm nacionalidade, que qualquer um que tiver necessidade precisa ser ajudado.

Como isso é concretamente aplicado?

Dando voz aos migrantes para garantir seus direitos ou oferecer apoio material, às vezes alimentos, roupas ou outros auxílios durante o tempo em que estiverem aqui. Ou, ainda, ajudando os doentes visto que um dos maiores problemas de Lampedusa é a precariedade da assistência sanitária. Estamos falando de uma pequena ilha e, como tal, deve ser posta em condições de acolher bem, de ter as estruturas estáveis. Por exemplo, em maio, descobrimos que não havia lugares suficientes para acomodar pessoas que passavam o dia ao sol e as noites ao frio no píer. Então, oferecemos ao prefeito a disponibilidade de recebê-las nas salas da paróquia.

O senhor recebe críticas pelo que faz?

Sim, aconteceu e acontece. Alguns insultos, às vezes até ameaças, especialmente através das mídias sociais. Mas, tudo bem, não é nada relevante, coisa do dia-a-dia ... As ofensas continuam lá nos fóruns do Facebook.

Nestes quatro anos como pároco de Lampedusa, o senhor viu centenas de histórias de vida passarem diante de seus olhos. Qual foi a mais marcante para o senhor?

São muitas e todas tão intensas que me parece errado escolher algumas. É claro que permanece viva a memória de uma história tão tenra quanto dramática : no dia 7 de outubro de 2019, houve um grande naufrágio perto de Lampedusa e os resgatados foram trazidos ao píer. Todos tentaram rastrear seus entes queridos. A certa altura, vi um pai chegando, era jovem, com um bebê nos braços. Ele estava procurando por sua esposa, e gritava no meio da multidão. Tentei ajudá-lo, mas em algum momento percebi que não trariam mais nenhum sobrevivente para o píer. Foi uma grande dor dizer a esse jovem que não havia sinal de sua esposa. O que mais me impressionou é que, naquele momento, sequer lhe foi permitido chorar. Ele pegou o menino e o abraçou, dizendo algo sobre a mãe que não estava lá. Embora destruído pela dor, ele quis colocá-la de lado para garantir uma chegada serena ao seu filho já assustado. Dificilmente creio que esquecerei essa cena.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/periscopio/2242/2020/07/o-naufragio-da-humanidade/