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sábado, 4 de agosto de 2018

Uma metáfora : dois usos distintos


Assim como o pianista que ao tocar com suas duas mãos não faz com que a mão direita faça algo que não se harmonize com o que a esquerda faz, assim também seria a ação trinitária, de maneira que onde um está em ação os outros dois também estão.
*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante


‘O tema da Trindade, na história do Cristianismo, sempre foi de difícil explicação para com os que não eram cristãos e de difícil assimilação por parte de vários que já o eram. Essa característica, longe de ser determinante, somente sinaliza que essa temática nunca foi uma questão simples e, até hoje, para muitas pessoas até mesmo cristãs, ainda não é de fácil compreensão.

Diversas foram as imagens usadas na tentativa de explicar como se daria a ação trinitára e como que, ao mesmo tempo, esse Deus não deveria ser visto como três deuses, antes, como somente um. As metáforas, tais como as duas mãos do Pai de Irineu, sempre se mostraram como ótimos artifícios para se tentar explicar aquilo que, muitas vezes, as palavras não dão conta. Contudo, uma vez que toda metáfora pode ser usada tanto para o bem quanto para o mal, é interessante sempre se estar atento/a para não cair em erros que poderiam, de alguma forma, comprometer a mensagem cristã.

Um bom exemplo pode ser dado tomando a própria metáfora de Irineu, das duas mãos do Pai. Esta ainda é muito utilizada quando se deseja falar a respeito do diálogo interreligioso pelo viés pneumatológico, considerando que uma mão é a do Filho, enquanto a outra é a do Espírito. Irineu tinha em mente que a Trindade poderia ser representada pelo Pai que tinha duas mãos e agia com ambas na história; em termos modernos, podemos pensar que, tal como um pianista quando toca o piano, a metáfora de Irineu nos remete a essa vontade única de ação que nunca é desvencilhada uma da outra; assim como o pianista que ao tocar com suas duas mãos não faz com que a mão direita faça algo que não se harmonize com o que a esquerda faz, assim também seria a ação trinitária, de maneira que onde um está em ação os outros dois também estão.

No entanto, várias propostas de diálogo interreligioso pelo viés pneumatológico, tomando a metáfora de Irineu, tiveram o intuito de separar a ação do Filho da ação do Espírito, como se esses fossem independentes um do outro em suas ações. De certa forma, sai a ideia do pianista e entra a imagem de uma pessoa que espera um ônibus e enquanto mantém uma mão dentro do bolso, com a outra faz o sinal solicitando a parada do veículo no ponto. Em termos teológicos, seria como se enquanto o Espírito estivesse agindo, o Filho não estaria fazendo nada. Esse uso da metáfora, embora pareça resolver a questão do diálogo interreligioso pelo viés pneumatológico, negocia uma das principais doutrinas da fé cristã que é, justamente, a fé trinitária de que ali onde um age todos os outros também agem.

Somente com esse pequeno exemplo da questão trinitária, é possível levantar três questões fundamentais com as quais o Cristianismo atual, que deve ser aberto ao diálogo, deve lidar de maneira séria : a primeira é com relação a manter-se fiel à sua identidade, sem negociar aquilo que o cerne da sua fé afirma; a segunda é dizer essa mesma fé dentro de um contexto contemporâneo, de maneira que faça sentido a homens e mulheres de nosso tempo; a terceira é realmente fazer um diálogo com as questões da contemporaneidade e das outras religiões, mantendo os dois primeiros pontos.

Transitar nessa interseção, sem dúvida, não é algo fácil, mas é algo para o qual teólogos e teólogas atuais devem estar atentos, caso queiram continuar o fazer teológico de uma maneira realmente cristã, a saber, aberta ao diálogo com o diferente, firme em sua fé e disposto a redizê-la diariamente.’


Fonte :

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Liturgia : a poesia de Deus

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Daniel Reis, 
graduando em Teologia e em Direito (PUC Minas); 
cursa Especialização em Liturgia (Universidade Salesiana de São Paulo)


‘A arte, amplamente considerada, tem o condão de revelar o que a razão não consegue. Há uma frase atribuída a Leonardo da Vinci que ilustra bem esta ideia : ‘A arte diz o indizível, exprime o inexprimível e traduz o intraduzível’. A poesia, compreendida como produção artística ou ato criador de arte - seja pelo poema, pela música ou pela imagem - em sua forma final pode parecer mais real que a realidade que se apresenta aos olhos, pois consegue exprimir e desvelar um significado que, em semiótica, sempre está oculto de alguma forma. Para corroborar esta ideia, vale lembrar a belíssima afirmação poética de Antoine de Saint-Exupéry, em sua célebre obra ‘O Pequeno Príncipe’ : ‘Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos’. Desta forma, um coração poético nos auxilia numa compreensão simbólica da fé. Nos ajuda a percorrer, pelos sinais, os significados que querem se revelar. Nos liberta das visões fundamentalista e literalista, que costumam avidamente ‘saltar aos olhos’. E uma vez livres, podemos perceber a textura e a tonalidade do nosso modo de entender e de nos comunicar com Deus.

A Liturgia, sendo a mais primorosa obra de arte que Deus dedicou à humanidade, não é outra coisa senão uma poesia que declama, de forma ritual e simbólico-sacramental, o amor salvífico do Criador às suas criaturas. Nossa comunicação com Deus se dá, por excelência, pela linguagem litúrgica, cujo conteúdo exprime, invoca e evoca o Mistério que não pode ser contido nas palavras da linguagem humana. Esta linguagem litúrgica traz em si uma forma poética, que é expressiva, rítmica, possui cadência, como no exemplo do hino laudatório do Sanctus, onde a repetição ‘Santo, santo, santo’ faz entender que a realidade do Deus a quem falamos escapa a qualquer descrição verbal adequada, não só pela pobreza da língua hebraica, onde a tripla repetição corresponde, para nós, ao superlativo, mas pela própria pobreza e insuficiência de toda a linguagem humana para falar de Deus e a Deus. Nesta toada, o liturgista Cesare Giraudo, comentando sobre o Sanctus, diz ser ‘a forma suprema com que a criatura, no momento em que toma consciência da sua própria condição, fala a Deus; e não pode falar outra coisa senão declarando-o Santo’, dada a limitação comunicacional humana. Também T.S. Eliot, em sua obra ‘Quatro Martelos’, afirma que ‘nossas palavras forçam, rompem, escorregam, resvalam, correm e transportam a carga do significado em nossa fala das coisas de Deus’.

Como a poesia, a liturgia também está impregnada de metáforas. A palavra ‘metáfora’ vem de um verbo grego que significa ‘transferir para outro lugar’ ou ‘transportar o significado de uma palavra ou imagem de um referente para outro’, de tal forma que, com base em uma semelhança ou aparência percebida, ‘a’ seja visto como ‘b’. É o exemplo deste verso poético de Camões : ‘Amor é fogo que arde sem se ver.’ Esta linguagem metafórica, figurada - que se vale de figuras (imagens) para dizer como as coisas são - é plenamente verdadeira. Assim, como no verso de Camões, podemos dizer autenticamente que, por exemplo, a Palavra de Deus proclamada na Liturgia ‘é fogo que arde’ em nós, como experimentaram os discípulos de Emaús : ‘É por isso que os nossos corações ardiam enquanto Ele nos explicava as Escrituras pelo caminho’ (Lc 24,32). Portanto, também a Liturgia, unida à poesia, nos revela uma coisa por meio de outra, metafórica e poeticamente. O Mistério Pascal de Cristo nos é revelado nos sinais sensíveis componentes de toda e qualquer celebração litúrgica : vemos pão e vinho, mas sabemos que, através da linguagem litúrgico-poética, são-nos comunicados o Corpo e o Sangue do Senhor. No Batismo, salta aos olhos em primeiro plano um banho de água na criança; mas pela fé celebrada naquele gesto litúrgico-poético, sabemos que ela está sendo mergulhada na morte com o Cristo e, ao sair da água, ressuscitando juntamente com Ele (cf. Rm 6,4). Assim, a linguagem poética da liturgia é como um telescópio que nos ajuda a captar uma verdade mais profunda e menos óbvia, escondida : a verdade da graça salvífica! Fernando Pessoa afirma que ‘O fim da arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar, e o fim da arte superior é libertar’. Sendo a Liturgia a mais ‘superior’ de todas artes, pois tem o próprio Deus como artista, ela nos liberta, colocando ao nosso alcance a libertação oferecida por Jesus Cristo. Porém, mesmo não sendo ‘inferior’ ou ‘média’, nos termos de Pessoa, ela também nos ‘agrada’ e nos ‘eleva’ à dignidade de Filhos e Filhas de Deus, por Ele muito amados.

Se a vocação da poesia é revelar o que a razão não consegue, assim será também a vocação da Liturgia, com um certo acréscimo, pois consiste em assimilar e encaminhar as pessoas para a graça divina, tantas vezes imperceptível aos olhos da razão, mas plenamente cognoscível à luz da arte poética que deve estar intimamente ligada à Liturgia, como afirma o Concílio Vaticano II :

Entre as mais nobres atividades do espírito humano estão, de pleno direito, as belas artes, e muito especialmente a arte religiosa e o seu mais alto cimo, que é a arte sacra. Elas tendem, por natureza, a exprimir de algum modo, nas obras saídas das mãos do homem, a infinita beleza de Deus, e estarão mais orientadas para o louvor e glória de Deus se não tiverem outro fim senão o de conduzir piamente e o mais eficazmente possível, através das suas obras, o espírito do homem até Deus’ (Sacrossanctum Concilium, nº 122)

Sintonizamos os nossos ouvidos à voz da poesia para saber o que ela pode nos dizer, inflamando a nossa imaginação muitas vezes insensível, ajudando-nos a ver coisas ainda desconhecidas e nos mostrando de novo os encantos do nosso mundo extenuado, fazendo-nos vivenciar a glória da salvação, bem como a maravilha de nos encorajar para tornar reais as possibilidades de mudança e transformação que este mundo reclama. A poesia é uma forjadora que martela a matéria incandescente do amor em sua forja artística, apara as arestas do significado de ser cristão e remodela as nossas percepções do mundo. Já dizia a poetisa inglesa Elizabeth Jennings : ‘A poesia deve mudar e fazer o mundo parecer novo em cada plano’.  No plano da fé, também a Liturgia deverá fazer o ‘mundo parecer novo’, mais parecido com o Reino de Deus! E a arte poética que ela carrega contribui essencialmente para isso : para um mundo mais belo evangelicamente, onde cada um de nós possa um dia afirmar, a exemplo do Santo Padre Paulino de Nola (séc. IV), que ‘Para mim a única arte é a fé, e Cristo a minha poesia’!’


Fonte :