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terça-feira, 19 de outubro de 2021

Religiosidade, fanatismo e humanização

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de César Thiago do Carmo Alves, 

teólogo

‘‘A Palavra se fez carne e habitou entre nós’ (Jo 1,14). Esse versículo do prólogo do evangelho de João expressa que Deus assume nossa humanidade para poder salvá-la. Nesse sentido, Tertuliano, escritor eclesiástico de Cartago morto em 260, cunhou a frase ‘Caro cardo salutis’ (A carne é o eixo da salvação). Assim, somente fazendo uma profunda experiência da humanidade é que se pode contemplar a divindade de Deus e ao mesmo tempo perceber o dom salvífico. Aqui, se impõe uma pergunta no atual cenário tendo presente a dimensão da religiosidade : E quando a religiosidade impede a humanidade da pessoa?

Uma das respostas que pode se ter para essa pergunta é o fanatismo religioso como causa.

O fanatismo religioso tem se tornado cada vez mais explícito no cenário contemporâneo. Nota-se um apelo excessivo a Deus por meio da religião. Na verdade, o que se cultua não é Deus mesmo, mas sim a religião. Desse modo, pode-se perceber a força e influência que ela exerce sobre a vida das pessoas. Muitas são capazes de se desfazerem de bens necessários para sobrevivência simplesmente pelo fato de que o líder religioso aponta isso como o caminho para a prosperidade. Além da ideia da prosperidade, existiria algo que vincula a pessoa fiel de forma fanática à religião que está para além da prosperidade? Essa é a pergunta fundamental que se impõe para se entender o fanatismo que se descortina cada vez mais forte em nosso meio eclesial. Em busca da resposta para a pergunta que se impõe, faz-se necessário considerar dois aspectos. São eles : 1) psicológico; 2) sociológico.

No aspecto psicológico, o fanático religioso tende a fazer da religião um fetiche. Atribui-se a elementos da religião forças mágicas. No âmbito católico isso é perceptível. Ultimamente, no Brasil, tem se voltado com muita força entre pessoas jovens, que não viveram o pré-Vaticano II, a ideia da missa em latim como a única e verdadeira forma de celebrar. A língua latina e o rito da celebração são envoltos numa aura que descredencia a beleza da reforma litúrgica postulada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). Nega-se até mesmo a obra graciosa do Espírito Santo no Vaticano II. Os jovens ministros ordenados que estão nessa linha, fazem dos paramentos seu fetiche. Busca-se nos armários das sacristias, paramentos utilizados anteriormente à reforma da liturgia. Isso sem contar o uso da batina. O que está em jogo aqui não são as roupas em si ou determinada forma de celebração. O que se questiona é o que está por trás de tudo isso. Numa rápida conversa com alguém que se insere nesse contexto religioso pode-se perceber que se fala muito de Igreja e sua estrutura, pouco de Deus e quase nada de comunidade e comprometimento com os mais pobres. Desse modo, a religião está acima do próprio Evangelho. Além disso, não se admite questionamentos. Afinal, o errado é sempre quem vai contra esses princípios. Ir contra eles é ser apóstata, herege! A dimensão da humanização simplesmente fica de escanteio.

Esse exemplo católico, que é possível ser constatado tanto em alguma parte do clero como do laicato, indica que o fanático religioso não está preocupado com Deus mesmo e as causas que o Evangelho propõe. O que está no imaginário são as fantasias. Essas fantasias do sagrado, por vezes, estão vinculadas à ideia de poder e de uma pseudo-segurança institucional. Assim, cria-se um deus segundo à nossa imagem e semelhança para satisfazer o prazer do fetiche. Uma religiosidade, literalmente, idolátrica. A fantasia religiosa levada ao extremo causa doença psíquica. Ou, ainda, a fantasia religiosa pode ser apenas a ponta do iceberg de algo mais sério, psicologicamente falando, que a pessoa trás consigo e que precisa ser trabalhada e que no caso do clero ou foi negligenciada durante o processo formativo ou o candidato à época conseguiu camuflar muito bem. Nesse sentido, é urgente a procura de um psicólogo para ser ajudada. O problema é que a pessoa fanática nunca admite essa doença. É como alguém viciado em alguma droga que afirma não estar no vício.

Do ponto de vista sociológico, o coletivo tende a influenciar no particular. As mídias católicas têm colaborado muito nesse campo. Ao exibirem programações com líderes religiosos profundamente fundamentalistas, as pessoas, consumidoras daqueles programas, vão sendo moldadas naquela perspectiva. Eles são tidos como gurus. São inquestionáveis. Suas palavras são palavras de salvação. Tudo o que vem desses líderes deve ser aplicado. Curiosamente, como no caso psicológico, uma vez que ambos os aspectos estão correlacionados, essas lideranças falam muito de instituição, pouco de Deus e quase nunca de comprometimento com os pobres e com a comunidade. O problema é que vão se formando legiões de seguidores que desejam impor determinadas visões que estão no lado contrário à proposta de Jesus. Assim, tem-se uma religiosidade de autorreferencialidade.

Não se pode deixar de considerar que esse fanatismo tem repercussões na vida pública. Em nome de um deus, de uma igreja e de uma fé busca-se impor aquilo que se acredita para toda a sociedade. Desse modo, o que vai contrário ao que se professa como fé, não pode ser aceito pelo Estado. Assim, o fanatismo religioso tende a minar o Estado laico. Usa-se o bordão : ‘o Estado é laico, mas o povo não’. Por um lado, essa frase tem sua razão. O povo brasileiro em sua maioria é religioso. No entanto, nem todos acreditam da mesma forma. Esse bordão tem servido para promover a discriminação e o ódio e frear acesso a direitos para as minorias sociais. Enfim, uma religiosidade que desumaniza e que não consegue se fazer próximo de quem sofre.

Uma palavra de esperança. Mesmo em meio ao fanatismo e desumanização religiosos, existem pessoas sérias nas igrejas, comprometidas com o reinado de Deus proposto por Jesus. Não estão pautadas no fetiche que as prendem cegamente à religião e numa religiosidade que enclausura. Muito pelo contrário. São pessoas críticas a ela quando esta não está em consonância com o Evangelho. O Papa Francisco tem demonstrado o que significa ler o mundo através das lentes da Palavra de Deus e não por meio de fundamentalismos ou verdades que se tornaram caducas pelo fato de serem relativas. Desse modo, ele revela que a única verdade absoluta é Deus revelado por Jesus Cristo e as outras todas são passíveis de serem questionadas. Sinal de saúde religiosa e, por isso, de uma vivência humanizadora da religião.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1544621/2021/10/religiosidade-fanatismo-e-humanizacao/

terça-feira, 18 de junho de 2019

A Teologia mata?


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Sim, matam-se pessoas devido a disputas religiosas e teológicas, tal como se matam pessoas em disputas desportivas, políticas, familiares ou sociais.
*Artigo de José Brissos-Lino


‘Ainda há poucos dias uma discussão entre dois pastores em Timbaúba (Pernambuco, Brasil), sobre questões teológicas e interpretações bíblicas terminou com a morte de um deles. O indivíduo que assassinou o colega à facada foi preso em flagrante e levado para a delegacia local. A discussão teria acontecido nos fundos da igreja onde ambos serviam. O homicida ainda tentou se esconder numa residência mas foi capturado e confessou o crime. A vítima depois de ser esfaqueada tentou fugir mas o agressor o atingiu com uma pedra.

Também em setembro de 2016, um debate teológico informal entre dois pastores americanos terminou com o homicídio de um deles, depois de a discussão descambar para a intolerância e a violência. Discutiam no pátio de um lar de idosos nos subúrbios de Chicago, Illinois (EUA), a respeito de questões ligadas à Bíblia e à espiritualidade, como era hábito, quando um deles puxou a arma e deu dois tiros na cabeça do outro, que teve morte imediata, ato que foi registado por uma câmara de vigilância. O assassino prestava assistência espiritual naquele centro de solidariedade. 

Sim, matam-se pessoas devido a disputas religiosas e teológicas, tal como se matam pessoas em disputas desportivas, políticas, familiares ou sociais. E ninguém em seu perfeito juízo propõe acabar com as famílias, a vida pública, a cidadania ou o esporte por causa disso. A questão não está nas diferenças político-partidárias, clubísticas, familiares ou religiosas, que sempre existiram, existirão e é saudável que existam, mas sim na atitude de respeito pelo outro e aceitação da diferença de opiniões e sensibilidade de cada um.

É claro que há contextos nos quais se torna mais chocante tal manifestação de intolerância e violência, como a religião ou a família. É suposto que o âmbito familiar constitua um espaço de paz e proteção mútua, mas é onde surgem frequentemente índices de violência relevantes – a chamada violência doméstica – e a maior taxa de abuso sexual infantil, como os estudos sobre pedofilia demonstram.

Assim como é suposto que o território relacional de uma mesma comunidade religiosa, enquanto família espiritual, se revista de segurança, crescimento pessoal, paz e edificação mútua. Mas também é aí que pode surgir o abuso religioso de carácter espiritual, psicológico e por vezes até físico. Os cínicos dirão que a religião faz mal às pessoas. Mas dirão o mesmo da família? Ou da vida associativa? Ou da participação política? A solução será acabar com tudo quanto sejam comunidades religiosas, famílias, clubes, associações, coletividades e partidos políticos? E resta o quê?

É importante salientar que existem e existirão sempre problemas onde coexistirem pessoas. São as pessoas que criam os problemas e não as organizações. Estas podem, no limite, não os prevenir ou até potenciar, mas não os criam. Um pedófilo não o é por causa da sua família, mas apesar dela. Um corrupto não o é por causa da instituição onde trabalha, mas apesar dela. Os criminosos são sempre as pessoas e não as organizações. Culpar as organizações é uma forma de diluir e mascarar as responsabilidades individuais.

Fala-se muito de violência inter-religiosa (entre diferentes expressões religiosas) mas pouco de violência intrarreligiosa (dentro da mesma religião), que não é menos evidente e preocupante. Sim, a Teologia pode matar, como qualquer outra coisa. Basta lembrarmo-nos dos horrores perpetrados pelos talibãs (estudantes de teologia islâmica) do Afeganistão. Como sempre, é a pulsão do poder que está por detrás da violência em qualquer destes âmbitos sociais, nem que seja o poder de ter razão.

Os casos acima citados revelam pelo menos duas coisas : fanatismo religioso, com a correspondente incapacidade de tentar escutar, compreender e respeitar o ponto de vista alheio; falta de preparação pastoral ou deslealdade para com a vocação de ministro do Evangelho; e sobretudo a pulsão de Caim que o levou a assassinar o irmão : ‘E disse Deus : Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra’ (Gênesis 4:10).

Ludwig Feuerbach dizia que ‘Quando a moral se baseia na teologia, quando o direito depende da autoridade divina, as coisas mais imorais e injustas podem ser justificadas e impostas’. Os triunfalismos religiosos, tal como os modelos absolutistas de governo, devem ser arrumados na prateleira da História. A Modernidade veio trazer capacitação aos indivíduos, libertando-os de soberanias abusivas ou ilegítimas. Mas agora os indivíduos não podem, por sua vez, comportar-se socialmente como se fossem soberanos dos outros, que são mais fracos ou que pensam e sentem diferente, pois sempre que assim fizerem revelam-se indignos da sua própria liberdade.’


Fonte :