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domingo, 15 de setembro de 2024

Uma reflexão sobre os caminhos tortuosos da migração

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Migrantes em trânsito na região de Colchane, no Chile (Foto: OIM Chile)

*Artigo do Padre Alfredo J. Gonçalves, CS


‘Migrar é um direito, direto de ir e vir? Teoricamente, sim, na verdade não! Pelo contrário, para milhões e milhões de pessoas, migrar é uma obrigação. Migração forçada, compulsória. Sair não por decisão própria, mas por uma série de circunstâncias adversas. Alguns autores falam de fatores de expulsão. Fatores que pressionam as pessoas a deixarem sua terra natal, às vezes a família, amigos e parentes. A terra natal tem subjetivamente um caráter sagrado : nela estão sepultados os restos mortais dos antepassados. Os principais ‘fatores de expulsão’ estão ligados, em primeiro lugar, às condições socioeconômicas em que vive a população de origem. Faltam oportunidades reais de sobrevivência, o que leva a buscá-las em outra parte. Evidente que os países de origem coincidem com o subdesenvolvimento, a pobreza, a miséria e a fome.

Em segundo lugar, as tensões, conflitos e guerras formam um segundo bloco de expulsão. Diferenças e turbulências de ordem étnica, religiosa, política ou ideológica tendem a produzir refugiados em série. O refugiado é aquele que não pode voltar atrás, sob pena de perseguição, encarceramento ou morte. Daí a fuga em massa dos países conflagrados, com a intenção de encontrar um lugar de refúgio. Segundo o ACNUR, o número de refugiados e deslocados internos forçados em todo planeta já ultrapassa a casa dos 120 milhões de indivíduos.

Muitos migrantes estão sendo expulsos, em terceiro lugar, devido aos efeitos nocivos, e cada vez mais extremos, das mudanças climáticas. Estiagens, inundações, tornados, furacões, etc. afetam em geral os setores mais vulneráveis da população. Na verdade, não poucos destes migrantes já viviam em situação precária no país de origem, forçadas a ocupar os lugares mais perigosos e sujeitos a tragédias. Poder-se-ia dizer que essas catástrofes climáticas apenas marcam a hora da partida. Alguns falam de ‘refugiados climáticos’, expressão que o ACNUR ainda não reconhece. Claro, outras motivações levam as pessoas a migrar. Saúde, educação, moradia, turismo são algumas delas. Também vivem em constante migração aqueles que trabalham com os meios de transporte, tais como motoristas, marítimos, aeroviários… Sem ignorar, ainda, os missionários, peregrinos, soldados, técnicos de empresas transnacionais, entre outros.

Por outro lado, no processo de migração, os autores falam também em fatores de atração. Um dos mais batidos são as luzes, atrativos e oportunidades proporcionadas de modo particular pelo universo urbano. O termo ‘luzes’, neste caso, poderia servir de metáfora para os direitos humanos mais elementares : acesso mais fácil ao trabalho, à moradia, à escola, aos serviços de saúde, transportes, e assim por diante. Em outras palavras, os ‘fatores de atração’ pressupõem, em geral, os ‘fatores de expulsão’. A carência extrema alimenta o sonho de vida melhor, impondo a necessidade de migrar. O que significa que ‘fatores de expulsão’ e ‘fatores de atração’ comportam duas faces da mesma moeda.

O fenômeno migratório, cada vez mais intenso, diversificado e complexo inclui, via de regra, três aspectos : polo de origem, polo de destino e lugares de passagem. Alguns países são predominantemente pontos de saída, outros de chegada e outros ainda de trânsito. Mas não é incomum que algumas nações reúnam, ao mesmo tempo, duas ou três dessas circunstâncias, tais como Turquia e Grécia, México e Portugal, Espanha e Líbia, para citar casos específicos. O certo é que origem, destino e trânsito, apesar de existirem enquanto predominância, se cruzam e se misturam, se interpelam e se entrelaçam. O que levanta a dificuldade de trabalhar com o esquema estreito de ‘fatores de expulsão’ e ‘fatores de atração’.

Se é certo que os migrantes contemporâneos sabem evidentemente de onde partiram, poucos sabem onde replantar as próprias raízes. Tal como nas migrações históricas da Europa para as Américas, os migrantes de hoje nunca esquecem a terra onde nasceram e criaram raízes. Diferentemente daqueles, porém, grande parte dos atuais desconhece o lugar de chegada. Batem de fronteira em fronteira, até encontrarem acolhida. Em outros tempos, o lugar de origem e o lugar de destino estavam mais ou menos determinados. Não é o que ocorre atualmente. Aos milhares e milhões, os migrantes passam a errar de um lugar a outro, como aves de arribação, sem um galho onde repousar. Tudo na ‘aventura’ da migração se tornou mais incerto, mais inseguro e mais inquietante. Em conclusão, não custa lembrar que o direito de migrar (ir-e-vir) corresponde ao direito de permanecer em sua pátria. Tudo depende de oferecer a cada cidadão oportunidades iguais de desenvolvimento. Aqui, se fazem necessárias políticas públicas estruturais, no sentido de evitar a todo custo a migração forçada. Então, sim, migrar ou ficar será um direito de todos’.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://migramundo.com/uma-reflexao-sobre-os-caminhos-tortuosos-da-migracao/

domingo, 21 de julho de 2024

O preço da exclusão

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Emiliano Magistri


No mundo 250 milhões de meninas e meninos são excluídos da escola. Este é um dos dados contidos em The price of inaction: The global private, fiscal and social costs of children and youth not learning, o relatório da Unesco que faz um resumo da situação geral, até hoje, em termos de evasão escolar e falta de instrução.

Trata-se de um fenômeno  extremamente preocupante que tem também um impacto social considerável do ponto de vista económico, uma vez que o custo estimado é de 10.000 bilhões de dólares por ano até 2030 : para entender melhor as dimensões do que poderíamos definir como um verdadeiro flagelo, basta pensar que o valor é maior do que o Pib anual da França e do Japão juntos. Portanto, é um apelo à responsabilidade geral.

Direito humano universal. Assim foi declarada a educação em 1948, um título reafirmado em 2015 pelas Nações Unidas, que incluiu o acesso à educação de qualidade para todos entre os Objetivos de desenvolvimento sustentável. No entanto, apesar das boas intenções, os eventos atuais dizem que ainda há um longo e sinuoso caminho a percorrer. Com efeito, aos números mencionados acima, que já são impiedosos por si só, devemos acrescentar que 70% das crianças de 10 anos de idade que vivem em países de baixa e média renda são hoje incapazes de entender qualquer simples texto escrito.

Fazer com que as pessoas entendam que a educação é um investimento estratégico, não apenas para os indivíduos, mas inclusive para todos os países, é o objetivo deste relatório com o qual a Unesco procura falar uma linguagem clara, mas eficaz : reduzir em apenas 10 pontos a percentagem de evasão escolar ou de pessoas que não adquiriram habilidades básicas permitiria que o Pib anual crescesse de 1 a 2 pontos percentuais.

Deixando de lado as questões financeiras, o que deve enfocado é o enorme dano social que estas carências formativas geram. Procurar preencher estas enormes lacunas na aprendizagem implica um maior foco mundial no desenvolvimento integral das meninas, ajudando a reduzir as possibilidades de casamento precoce (ou até forçado) e gestações prematuras. Portanto, agir nesta direção torna-se uma prioridade.

Significativo neste sentido foi o que ocorreu durante uma reunião de ministros da educação realizada recentemente na sede da Unesco em Paris : Audrey Azoulay, diretora-geral, convidou os 194 Estados-membros da organização a cumprir o seu compromisso de «transformar a educação de um privilégio numa prerrogativa para cada ser humano no mundo», enfatizando como a própria educação representa um recurso fundamental para enfrentar os desafios atuais, desde a redução da pobreza até ao combate contra as mudanças climáticas.

Para garantir que a educação de qualidade para todos seja transformada de Objetivo de desenvolvimento sustentável num resultado concreto, o relatório da Unesco sugere dez recomendações para os governos de todo o mundo : garantir percursos educacionais gratuitos e com financiamento público por um período mínimo de 12 anos para todas as meninas e meninos, destinando pelo menos 4-6% do Pib para a educação; criar ambientes de aprendizagem inclusivos que desafiem as desigualdades, os preconceitos e os estereótipos de género; investir na educação infantil para abordar as desigualdades de género e as normas prejudiciais de género desde a mais tenra idade; oferecer apoio académico e opções de segunda oportunidade para meninas e meninos que não tiveram acesso à educação ou que a interromperam; melhorar a infraestrutura escolar, com estruturas hídricas e de saneamento e garantir distâncias mais curtas para as alcançar; assumir professores qualificados e motivados e apoiar o seu desenvolvimento profissional; conscientizar as comunidades locais e as famílias sobre a importância de que meninas e meninos concluam um ciclo completo de educação básica; abordar a saúde mental e o bem-estar mental de meninas e meninos, a educação sexual abrangente e o desenvolvimento de habilidades socioemocionais; ligar os alunos ao mundo do emprego, incluindo educação e treinamento vocacional que atenda às necessidades do mercado de trabalho; realizar pesquisas sobre o que funciona para reter ou trazer meninas e meninos de volta à escola, especialmente aqueles com alto risco de pobreza de aprendizagem e evasão escolar.

Foi em 2014 que, durante uma reunião com o mundo escolar, o Papa Francisco disse : «Ir à escola significa abrir a mente e o coração para a realidade, na riqueza dos seus aspetos, das suas dimensões. E não temos o direito de recear a realidade». É hora de o demonstrar.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.osservatoreromano.va/pt/news/2024-07/por-029/o-preco-da-exclusao.html

sábado, 19 de dezembro de 2020

Vacina: os pobres serão excluídos

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 

*Artigo de Paolo M. Alfieri

Tradução : Moisés Sbardelotto


‘Enquanto os países ricos estão em contagem regressiva para o início das campanhas de imunização contra o coronavírus (depois do Reino Unido, os EUA também estão prontos para começar), bilhões de pessoas no Sul do mundo correm o risco de não conseguir se vacinar sequer em 2021. É uma constatação amarga divulgada nessa terça-feira pelas organizações da People’s Vaccine Alliance, da qual fazem parte, entre outros, a Anistia Internacional, a Global Justice Now e a Oxfam.

Os países ricos já garantiram doses iguais a três vezes as da sua população para as vacinações do ano que vem, durante o qual, por outro lado, em 67 países pobres, apenas uma em cada 10 pessoas poderá se vacinar contra o coronavírus. Uma desigualdade que infelizmente reflete dinâmicas relacionadas também a outros setores, mas que é ainda mais humilhante considerando-se que estamos falando da saúde de bilhões de pessoas.

Ainda no dia 19 de setembro passado, o Papa Francisco havia enfatizado : ‘Seria triste se, no fornecimento da vacina, se desse prioridade aos mais ricos, ou se essa vacina se tornasse propriedade desta ou daquela nação’. E, invocando uma globalização do cuidado, havia concluído que a vacina ‘deverá ser universal, para todos’.

De acordo com a tendência atual, estamos diante de uma enorme desigualdade no acesso à vacina, que é o principal instrumento para erradicar a pandemia’, destacou a Oxfam, observando que um país como o Canadá garantiu doses suficientes para vacinar a sua população quase cinco vezes, e a União Europeia, 2,3 vezes.

Daí o apelo da Oxfam, junto com as organizações da People’s Vaccine Alliance, a todas as empresas farmacêuticas que trabalham com as vacinas anti-Covid-19 para compartilharem a sua tecnologia e os direitos de propriedade intelectual, aderindo a uma iniciativa promovida pela OMS.

Só assim poderão ser produzidos bilhões de doses de vacinas seguras e eficazes, disponibilizadas a todos aqueles que delas necessitam’, afirma uma nota. A People’s Vaccine Alliance também pediu aos governos que façam tudo o que estiver ao seu alcance para garantir que as vacinas anti-Covid-19 se tornem um bem público global, distribuído igualmente.

Um primeiro passo seria apoiar a proposta apresentada nesta semana pela África do Sul e pela Índia à Organização Mundial do Comércio de suspender os direitos de propriedade intelectual para as vacinas, os testes e as terapias anti-Covid-19 até que todos estejam protegidos’, afirma o apelo.

A acumulação das vacinas por parte de poucos países corre o risco de anular os esforços globais para garantir que todos, onde quer que seja, possam estar protegidos do vírus’, denunciou a Anistia Internacional.

Até hoje, todas as doses da Moderna e 96% das produzidas pela Pfizer-BioNTech foram adquiridos por países ricos’, continua a Oxfam, acrescentando que o consórcio Oxford-AstraZeneca, por sua vez, se comprometeu a fornecer 64% das doses aos países em desenvolvimento (a preço de custo), ‘mas, para o próximo ano, poderá abastecer no máximo 18% da população mundial’.

Cerca de 96% das doses da Pfizer-BioNTech, em vez disso, irão para os países ricos. Mesmo para as poucas doses restantes, levanta-se a questão da temperatura de armazenamento necessária para a distribuição, embora, de acordo com os produtores, a segunda geração da vacina, que poderia chegar em seis meses, poderá ser transportada em temperatura ambiente.

O mais importante projeto internacional para distribuir a vacina é a Covax Alliance, criado pela Gavi Alliance e que inclui dezenas de países, da Itália à China. O objetivo é garantir uma distribuição justa de dois bilhões de doses da vacina, 450 milhões das quais para 92 países pobres e em desenvolvimento, a um custo máximo de três dólares cada. Mas a população total desses 92 países é de 3,9 bilhões de pessoas.

Além disso, os acordos unilaterais dos países ricos com as empresas farmacêuticas reduzem as quantidades disponíveis no mercado. Ao contrário, os países pobres dependerão exclusivamente dos programas de distribuição internacional. É necessário um empurrão moral para que as suas esperanças não sejam frustradas.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/periscopio/2285/2020/12/vacina-os-pobres-serao-excluidos/

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Como a Igreja Católica pode ajudar as mães solteiras


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

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*Artigo de Kaya Oakes,
escritora



A relação entre mães solteiras e a Igreja Católica nem sempre é fácil. Como a igreja há muito tempo define o casamento como central para a identidade católica leiga, as mães solteiras católicas às vezes permanecem escondidas nas sombras.

A história das casas de mães e bebês da Irlanda, onde as chamadas ‘mulheres caídas’ e seus filhos foram submetidas a um tratamento horrível nas mãos de ordens religiosas católicas, tornou-se amplamente conhecida graças a uma série de investigações jornalísticas e governamentais. Casas semelhantes existiam nos Estados Unidos. O abuso físico e mental, a doença descomedida e a morte prematura eram comuns em lares administrados por católicos para mães solteiras. Uma investigação do Projeto Marshall sobre lares de mães e bebês nos Estados Unidos revelou que esses lares eram ‘pelo menos tão numerosos’ até meados do século 20, quanto na Irlanda - e ‘ainda tão igualmente brutais’. As ‘mulheres caídas’ que povoavam essas casas, segundo a historiadora Estelle Freedman, experimentaram um estigma maior do que os criminosos do sexo masculino do século XIX.

Embora o tratamento da igreja para mães solteiras tenha melhorado muito, alguns desses estigmas permanecem. Em uma pesquisa com mulheres católicas encomendada à America e conduzida pelo Centro de Pesquisa Aplicada no Apostolado da Universidade de Georgetown, mães católicas solteiras relataram experiências variadas de vida paroquial. A pesquisa revelou que ‘as mulheres católicas têm maior probabilidade de concordar 'muito' que os católicos divorciados e recasados (25%) e católicos não heterossexuais (25%) são mais bem-vindos em sua paróquia do que os católicos não casados (16%)’. A maioria dos homens viúvos, com filhos e divorciados que responderam disseram que suas paróquias eram apenas ‘um pouco’ ou ‘dificilmente’ acolhedoras, e quase 18% disseram que suas paróquias não eram nada boas. Mais da metade das mulheres disseram que sua paróquia oferece pouco ou nenhum apoio a novas mães (52%) ou a creches (55%).

Não é novidade para os católicos que a mudança na igreja é lenta, particularmente quando se trata do status das mulheres. No caso de crianças fora do casamento, as mulheres têm, por muito tempo, o peso da responsabilidade por quaisquer pecados que possam ter levado a tornarem-se mães solteiras. Em sua exortação apostólica sobre a família, ‘Amoris Laetitia’, o Papa Francisco escreveu : ‘Um pastor não pode sentir que basta aplicar leis morais aos que vivem em situações 'irregulares', como se fossem pedras para atirar nas vidas das pessoas’.

Mas as atitudes em relação às mães solteiras variam muito de paróquia a paróquia. O papa falou contra os padres que se recusam a batizar os filhos de mães solteiras em 2016, dizendo que a negação é uma forma de ‘crueldade pastoral’. Quando se trata do batismo dos filhos de mães solteiras, diz o Catecismo da Igreja Católica, que pelo menos um dos pais deve prometer fazer o melhor para educar o filho como católico. No entanto, mesmo em Berkeley, na Califórnia, a famosa cidade liberal onde eu leciono, o padre da minha antiga paróquia me disse que recebeu uma ligação de uma mulher que chorava e que o sacerdote de outra igreja local lhe disse que seu filho não seria batizado lá a menos que fosse casada.

De acordo com o último censo dos EUA, quase um quarto das crianças nos Estados Unidos está sendo criado em lares monoparentais, e a maioria deles são famílias monoparentais. Isso significa que há mais de 10 milhões de mães solteiras, cerca de metade das quais são divorciadas, um terço das quais nunca foram casadas e um número menor são viúvas.

Tem havido várias histórias nos últimos anos de funcionários solteiros de igrejas católicas, escolas e faculdades sendo demitidas por engravidar fora do casamento. Cláusulas morais, que exigem que os professores das escolas católicas concordem em não ter um filho fora do casamento, participem de um casamento de pessoas do mesmo sexo ou usem o controle de natalidade, receberam atenção crescente em algumas dioceses. Em 2014, Shaela Evanson, de Helena, no estado de Minnesota, engravidou e foi demitida por violar a cláusula de moralidade do contrato na escola católica onde lecionava. A mãe solteira Christa Dias foi demitida pela Arquidiocese de Cincinnati em 2010, quando engravidou por fertilização in vitro, e em um tópico do Reddit de 2016, uma professora devota de uma escola católica preocupou acelerar seu casamento depois de engravidar para não perder o emprego.

Católicos de segunda classe

As dificuldades que as mães solteiras enfrentam na igreja não são novas. Embora a mãe de minha amiga participasse de uma igreja católica até sua morte, como mulher divorciada na década de 1960, às vezes enfrentava o julgamento de colegas católicos, com o estresse adicional de criar dois filhos sozinha como mulher trabalhadora. As férias eram uma raridade, as crianças muitas vezes usavam roupas de segunda mão e o dinheiro era tão pouco que alugavam quartos para pagar as contas.

Ashley Doherty, que tem cerca de 60 anos e era viúva aos 30 anos, diz que, quando se falava na paróquia sobre mães solteiras, ‘eu me sentia do lado de fora olhando para o horizonte, tentando não dar atenção, ainda que ninguém era deliberadamente rude’. Cresceu em Mississippi durante o tempo da segregação e diz que a igreja de sua infância tratava uma família monoparental ou qualquer família sem um grande número de crianças como problemática. Para esse tipo de famílias, ‘quase se torna uma exigência mandatória que você reconheça seu status de segunda classe antes de poder entrar pela porta’, apontou esta mãe.

Doherty diz que o preconceito em relação às mães solteiras na igreja pode ser parte de uma reação maior contra outros tipos de relacionamentos - casais do mesmo sexo, casais não casados vivendo juntos e assim por diante - que se afastam do ideal de uma família ‘tradicional’. Como a ascensão do feminismo na segunda metade do século 20 começou a mudar a visão da sociedade sobre os papéis disponíveis para as mulheres dentro das famílias, a igreja lutou para entender como lidar com a presença de mães solteiras que podem ter permanecido escondidas nas congregações. Nas décadas de 1970 e 80, essas mulheres estavam descobrindo uma espécie de autogerenciamento, ao verem mulheres solteiras e com poderes mais amplamente representados na cultura popular.

Não se tratava de ter atos de reivindicação de mães solteiras’, diz Doherty. Mas a presença delas tornou-se mais popular, e ficaram menos envergonhadas de seu status. Antes do feminismo, como aponta Doherty, as mães solteiras ‘estavam quase contentes em estar na parte de trás, no fundo da igreja’. Mas mesmo depois da revolução feminista, ‘a restrição de tempo e a incapacidade de participar’ que Doherty encontrou como mãe solteira significava que era difícil se sentir realmente engajada na vida paroquial, mesmo que escolhesse permanecer católica.

Essa experiência levou-a a questionar se educaria sua filha na igreja e, finalmente, decidiu que seria a decisão da própria filha. Quando sua filha estava no colégio, Doherty percebeu que as aulas de catequese de sua filha eram escassas em teologia, e disse à filha que dependia dela se continuaria com essas aulas. No momento em que sua filha tinha 13 anos e chegou a hora da crisma, Doherty lembra que falou para a filha : ‘Você pode sair a qualquer momento. Isso não é obrigatório’. Mas sua filha escolheu ser crismada, permaneceu na igreja e agora cria seus próprios filhos como católicos.

Procura-se ajuda

Donna, uma mãe solteira na faixa dos 30 anos, que pediu que seu sobrenome não fosse divulgado, diz que suas experiências na Igreja Católica também foram misturadas. Donna era divorciada no momento de sua vida quando foi expulsa da igreja, e seu filho daquele casamento acabado não foi batizado. Quando retornou à igreja um ano atrás, foi-lhe dito pelo pastor de sua igreja local que para que seu filho fosse batizado, ela precisaria obter uma anulação. Donna contatou sua arquidiocese local, mas eles nunca retornaram suas ligações.

Em seus anos como mãe solteira, essa foi parcialmente a atitude da igreja - exemplificada por essa ligação não retornada - que fez com que Donna se distanciasse da igreja novamente. A maternidade como solteira, ela diz, significa que ‘você nunca faz uma pausa, você nunca descansa ou é capaz de dar um passo para trás’, o que para ela significava que as questões espirituais tinham que ficar em segundo plano em favor da sobrevivência. A assistência logística e financeira que recebeu não veio da igreja, mas de sua comunidade artística. Às vezes, Donna fala, se sentiu ‘marcada com uma letra escarlate’ na igreja e acrescenta que nunca ‘encontrou uma comunidade católica que me ajudasse pessoalmente’.

Donna está agora noiva e grávida novamente. Embora ela tenha deixado a igreja antes porque se sentiu ‘tratada como a soma dos meus erros na vida’, apontou para seus esforços atuais para anular o primeiro casamento, casar-se na igreja e ter seu filho que nascerá em breve. A segunda criança batizada é o resultado de ‘muito crescimento’ e um esforço para superar experiências ‘desagradáveis’ com a equipe da igreja e ‘manter meus olhos em Cristo’.

Donna diz que qualquer tipo de apoio da igreja para mães solteiras teria sido muito útil no passado, mas que alguns membros do clero parecem ter medo de oferecer ‘por causa de um medo deslocado de glorificar o divórcio ou glorificar o sexo antes do casamento’. Um grupo de pais solteiros, um grupo de estudos bíblicos ou simplesmente fornecer um lugar onde mães solteiras católicas pudessem se reunir e compartilhar suas experiências, ela diz, era praticamente impossível de encontrar.

Reconhecer, aceitar, apoiar

É revelador que enquanto estava pesquisando este ensaio, minhas buscas revelaram apenas um grupo de pais solteiros católicos que foi relativamente fácil de encontrar na internet. Esse grupo se reúne na igreja St. Thomas More, em Austin, no estado de Texas. Fundada em 2003 por duas famílias monoparentais da congregação, o grupo recebeu aprovação do pároco e da diocese. Os participantes espelham a demografia mais ampla dos pais solteiros nos Estados Unidos : Enquanto os pais solteiros frequentam o grupo, cerca de três quartos dos participantes são mães solteiras, e a maioria delas é divorciada. Em sua primeira reunião, 25 pais solteiros compareceram, e estabeleceram como objetivo identificar os problemas enfrentados pelos pais solteiros católicos e atender às necessidades deles na congregação.

A principal questão identificada, de acordo com a atual diretora do programa, Jaquelyn Mika, era que os pais solteiros não sabiam onde se encaixavam na Igreja Católica e não se sentiam bem-vindos. Eles também aprenderam que o que os pais solteiros da congregação precisavam era principalmente ‘apoio emocional, prático e espiritual’.

Mika, mãe solteira de filhos adultos, diz que, em termos de apoio prático, o cuidado da criança é a prioridade número um para as mães solteiras que frequentam o grupo, de modo que a paróquia oferece serviços gratuitos de babá durante as reuniões. O formato é simples. O grupo se reúne mensalmente e é facilitado por um moderador. O moderador oferece uma oportunidade para os pais solteiros discutirem suas vidas naquilo que Mika chama de um ambiente ‘seguro e confidencial’, com oportunidades para falar, mas sem muita pressão para fazê-lo. A paróquia também oferece reuniões mensais suplementares para pais solteiros com oradores convidados oferecendo palestras sobre temas de especial interesse para os pais, incluindo os problemas psicológicos comuns nas famílias monoparentais, os problemas legais enfrentados pelas famílias monoparentais, bem como a saúde e o orçamento. No lado espiritual, o grupo já recebeu palestrantes sobre o processo de anulação e sobre a catequese de crianças. Eles também oferecem eventos sociais que os pais podem participar com ou sem filhos.

O grupo também deu apoio a grupos de pais solteiros em outras igrejas e identificou três áreas onde os pais solteiros sentem que suas necessidades pastorais não estão sendo atendidas. Essas necessidades incluem o reconhecimento, a aceitação e o apoio. O reconhecimento, diz Mika, pode significar qualquer coisa, desde reconhecimento ocasional em orações na missa até a sensibilidade dos pastores e funcionários da igreja. As necessidades dos pais solteiros são diferentes; e tempo, dinheiro e cuidados infantis são prioridades altas. A aceitação inclui a garantia de que eles têm um lugar na igreja e não estão sendo feitos para se sentirem como ‘cidadãos de segunda classe’. E o apoio pode variar de prestação de cuidados infantis até uma igreja formando seu próprio grupo de pais separados.

Mika diz que a participação pode flutuar de reunião para reunião por causa dos desafios logísticos que os pais solteiros enfrentam, mas que os números não são a prioridade. Formar comunidade é, embora seu grupo tenha sido entusiasticamente apoiado pela diocese local, muito difícil. Conseguir formar um grupo de pais solteiros nem sempre foi algo bem-sucedido em outras igrejas que buscaram ajuda para iniciar um ministério similar. E ocasionalmente, as pessoas simplesmente param de participar. Mas um e-mail enviado pela Mika, escrito pelo ex-diretor do ministério, diz que não aparecer pode realmente ser um sinal de sucesso : as pessoas chegam pela primeira vez sentindo-se espiritualmente quebradas, e depois de seis meses a um ano frequentando o grupo, às vezes sentem que é muito melhor seguir em frente, após terem aproveitado os encontros. Basta ter um lugar para se sentir reconhecido, aceito e apoiado. É o suficiente para criar mudanças.

Grupos como o da paróquia de St. Thomas More podem ajudar a superar o estigma em torno de mães solteiras na igreja, mas como as mães solteiras católicas com quem falei testemunham, é também uma questão de reconhecimento e aceitação por parte de congregações e pastores. O papa Francisco chamou uma mãe solteira que escreveu para ele em 2013 e se ofereceu para batizar seu filho se não encontrasse um padre que o fizesse. Mas o fato de que a mulher esperasse e fosse recusada pelos padres, em primeiro lugar, reflete o mesmo status de segunda classe que muitas mães solteiras experimentam.

Em suas experiências à margem da igreja, essas mulheres abnegadas que se apegam à igreja, mesmo quando empurram elas para fora, podem na verdade ser testemunhas proféticas do poder da fé. Vale a pena lembrar que a primeira pessoa a espalhar a notícia de Jesus não foi o apóstolo Paulo, mas a mulher samaritana muitas vezes casada que Jesus conheceu no poço. ‘Muitos dos samaritanos daquela cidade acreditaram nele por causa do testemunho da mulher’, diz-nos o Evangelho de João. Talvez seja hora de a igreja começar a ouvir essas mulheres também.’


Fonte :  

domingo, 6 de agosto de 2017

Discípulos para acolher ou para excluir?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Imagem relacionada
*Artigo do Padre Olmes Milani,
Missionário Scalabriniano


‘Um idoso e calmo missionário viajava de trem até o local onde participaria de uma reunião de pastoral de sua Diocese no Japão. Estava ele num dos assentos reservados para pessoas idosas, deficientes ou gestantes, quando, numa estação, embarcou um jovem que se dirigiu, autoritariamente, ao missionário dizendo-lhe : ‘Você é estrangeiro! Levante-se porque eu sou japonês e tenho direito a este lugar’. ‘Sim, você deve estar mal. Sente-se. Eu viajo de pé,’ disse humildemente o missionário.

Situações como essas chocam, especialmente os imigrantes, dando a ideia de que são excluídos dos direitos de que os cidadãos locais gozam. Pode-se imaginar a dor impressa no semblante do missionário diante da exclusão provocada pelo jovem autoritário e arrogante.

Os conflitos entre quem era de seu grupo e quem era de fora provocaram intervenções firmes de Cristo, em diversas ocasiões. Curiosamente, as tentativas de exclusão partiram de pessoas do grupo de apóstolos e discípulos. Não se sabe se por zelo de ter a Cristo como Mestre ou por esperar uma oportunidade, quando Ele estivesse no seu Reino. Com certeza esta última falava muito forte no grupo dos doze.

É significativo o fato narrado pelo Evangelista Lucas (Lc 18,15-17). Algumas pessoas levavam suas crianças a Cristo para que Ele as tocasse. Diante disso, eis que os discípulos, por iniciativa própria, começaram a repreender aquele grupo de pais, na tentativa de afastá-los. Cristo não só concedeu espaço físico às criancinhas, abraçando-as, carinhosamente, mas elevou-as até o mais alto grau, talvez o pretendido pelos dois irmãos que queriam estar um à sua direita e outro à esquerda : ‘Deixem as crianças virem a mim. Não lhes proíbam, porque o reino dos Céus pertence a elas’. Embora, frágeis, Ele as valorizou a ponto que os adultos devem ser como elas. ‘Eu garanto a vocês que quem não receber como criança o Reino de Deus, nunca entrará nele’.

 Dramática também é a cena da mulher Cananéia, a estrangeira, narrada por Mateus 15:21-28, suplicando-lhe ajuda, angustiadamente, por causa da doença da filha. Cristo assumiu a atitude do diálogo e de dar tempo ao tempo, como fez com a mulher samaritana e na conversa com Nicodemos, como meios de amadurecimento na fé. Os membros do grupo fechado dos discípulos entraram em ação, autoritariamente, para solucionar o ‘problema’. ‘Manda-a embora, pois vem gritando atrás de nós’. Ignorando a voz deles, Jesus continuou o diálogo sério e respeitoso com a mulher que revelou sua grande fé, que lhe permitiu voltar para a casa e encontrar sua filha curada. Assim ela encontrou a porta aberta para participar da mesa junto com os filhos de Israel.

Não nos cabe o direito de julgar os discípulos pelas suas palavras e gestos, no sentido de impedir que Jesus fosse perturbado pelas brincadeiras das crianças ou pelos autores do pedido para afastar uma mulher em desespero diante da grave situação de sua filha. Contudo, eles nos dão uma excelente oportunidade para questionar nossa atitude com os recém-chegados em nossas comunidades. Quase todas elas têm seus coordenadores. Em algumas são eleitos, em outras são nomeados; não faltam os autopromovidos. É muito comum perceber que se perpetuam no cargo e dão à comunidade um rumo pessoal, longe do modelo de Cristo. Por isso, ao inteirar-se de alguma iniciativa de alguém que não de seu clube, assumem o direito de transmitir ordens como se fossem emanadas do padre da paróquia. Ouve-se amiúde, ‘Não podemos fazer assim esta atividade porque o padre não quer’. Na verdade, está comunicando que elas não querem, usando o nome do padre. Assim, as oportunidades de envolvimento são para as pessoas de sua simpatia ou religiosidade, excluindo os diferentes ou aqueles que podem ameaçar sua posição. Já houve casos em que a celebração dominical foi atrasada porque alguém, do grupo fechado da pessoa coordenadora, não chegava para fazer uma das leituras, enquanto na igreja havia diversas que, pela primeira vez, poderiam ser convidadas para exercer esse ministério com eficiência.

Um dos perigos das comunidades é o fechamento do pequeno grupo de amigos que as insensibiliza diante das angústias das pessoas de fora ou que se aproximam pela primeira vez, ou não são cristãos da mesma linha religiosa. Com atitudes ou mesmo com palavras podem estar atualizando a expressão : ‘Manda-a embora, pois vem gritando atrás de nós’.

Este tipo de grupo tende a fechar-se sobre si ao mesmo tempo em que se fecha às orientações pastorais das dioceses. Seus mentores citam seguidamente o Papa em suas conversas, não para seguir suas orientações, mas justificar sua religiosidade.

Não raramente, manipulam a Bíblia e os ensinamentos da Igreja, geralmente, extraindo algumas frases isoladas como muleta para seu grupo, mas evitam ter uma visão abrangente da doutrina. Na prática, tal atitude filtra as pessoas, permitindo a aproximação de quem comunga com suas visões parciais em contraposição ao ‘Deixem vir a mim as crianças...’ de Cristo. São como o pedágio seletor. Fácil é entender que Cristo ama muito mais os que são impedidos de chegar a Ele.

Quando as pessoas se transformam em donas exclusivas da verdade, dogmáticas, radicais e moralistas, o prejuízo para a construção de comunidades dinâmicas é enorme, especialmente para a pequena Igreja no Japão, por exemplo, que necessita abrir-se e acolher. Pretendem empobrecer o Espírito Santo, limitando-O ao ‘dom de falar em línguas’ e mais algum. Daí a grande resistência de ler e meditar a 1ª. Cor 14,1-35, sobre as línguas e 1 Cor 12 sobre os muitos dons presentes no Povo de Deus. Herodes ficou preocupado ao saber que havia nascido um Rei em seu território. O medo era ser destronado. Será que os muitos ‘discípulos’ não estariam impedindo que os recém-chegados assumam algum ministério, nas comunidades, por medo de perder seus lugares?

Hoje é notória a existência de uma oferta exuberante de religião e de movimentos religiosos de todo tipo e gosto, tanto sob o guarda-chuva da Igreja Católica como de outras denominações cristãs. Cada dia surgem grupos novos, ‘comunidades’ e movimentos autoproclamando-se como os melhores e os mais ortodoxos. Com frequência esses grupos de ‘discípulos’ se atribuem erroneamente o título de ‘missionários’ e porta-vozes da Igreja. Considerando o mandato de Cristo, o missionário é seu enviado para anunciar a Boa Nova a toda criatura, sendo instrumento de Deus na construção do Reino. Na verdade, o que se vê é uma preocupação ardorosa de propagar e atrair pessoas, cada um para seu próprio grupo, linha religiosa ou movimento, desconsiderando o anúncio a toda criatura tão desejado por Cristo com a finalidade de construir o Reino de Deus.

Nem tudo é tenebroso quando falamos de discípulos. São milhares aqueles e aquelas que se engajam com denodo ao anúncio da Boa Nova, acolhendo a todas as pessoas de forma livre e desinteressada, traduzindo o amor em obras com a visão voltada para a construção do Reino. Um exemplo maravilhoso é um velhinho e simpático sacerdote japonês que, nas dependências de sua igreja acolhe alcóolatras, dependentes químicos e excluídos de qualquer nacionalidade. Certamente as palavras de Cristo : ‘Venham vocês, que são abençoados de meu Pai. Recebam em herança o Reino que meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo’ (Mt25, 34) serão dirigidas para esses discípulos verdadeiros.’


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sexta-feira, 23 de setembro de 2016

O drama dos refugiados, uma questão humanitária

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Milhares saem de seus países por uma questão de sobrevivência.
*Artigo de Felipe Magalhães Francisco,
Mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.


‘Uma das experiências mais traumáticas para o povo de Israel foi o exílio da Babilônia, em 587 antes da era cristã. De tão traumática, a experiência resultou numa ressignificação da fé. A fé do povo de Israel nasce com a libertação da escravidão no Egito e se firma com a Aliança entre Deus e o povo, tal como nos narra Ex 19. A posse da terra, como cumprimento da promessa feita por Deus, significa o fortalecimento da identidade do povo da Aliança. O não direito à terra, nesse sentido, significou forte ruptura com essa identidade, colocando a fé do povo em crise e diante da urgência de ressignificação.

O Salmo 137 (136) aborda a questão, manifestando os impactos existenciais na vida do povo : ‘Na beira dos rios de Babilônia, nós nos sentamos a chorar, com saudades de Sião. Nos salgueiros ali perto penduramos nossas cítaras [...]’ (vv. 1-2). A dor da partida reafirma a memória e mexe profundamente com o povo, fazendo-o desejar a vingança : ‘Filha de Babilônia, devastadora, feliz quem te devolver o mal que nos fizeste! Feliz quem agarrar e esmagar teus recém-nascidos contra a rocha!’ (vv. 8-9). A dureza da fala, vinda da mais legítima revolta, choca-nos, mas nos ajuda a perceber a dor da perda da própria terra, chão da própria identidade.

Todos os anos, milhares e milhares de pessoas saem de sua terra, em busca de melhores condições de vida. Entre esses milhares e milhares saem de seus países por uma questão de sobrevivência. A situação dos refugiados é verdadeiro drama humano, que precisa ser pensado e situado na dinâmica da busca pela realização da humanidade. No mundo todo, a questão das pessoas que deixam sua própria terra é exigente e reclama muita atenção. Mesmo sendo uma questão de sempre, apenas há pouco tempo o mundo volta seu olhar para a situação. Das periferias existenciais, os refugiados se encontram na periferia das periferias.

Nos campos de concentração, padecem a não hospitalidade : saídos de sua terra, em busca de possibilidades de vida, sobrevivem, quando não sucumbem antes da chegada. No lugar de portas abertas, encontram muros e cercas, são condenados à ‘prisão da exclusão’ : presos do lado de fora. No mundo globalizado não há lugar para pessoas, como cidadãs do mundo, apenas para riquezas de uns poucos, de mercadorias e de apropriação dos bens naturais dos países não desenvolvidos e da força do trabalho de seus habitantes.

Junto ao drama dos refugiados, vítimas de guerras que não lhes dizem respeito, cresce o discurso de ódio, não hospitaleiro, xenófobo e extremamente preconceituoso quanto à religião dos refugiados. Nos discursos nacionalistas, o fechamento ao outro, mas a permanente abertura às riquezas apropriadas dos países desse outro. Na linguagem popular : um constante ‘venha a nós o vosso Reino’ e nada de ‘seja feita a vossa vontade’. Os refugiados não existem : são anulados, desumanizados. A situação exige responsabilidade por parte dos líderes mundiais. E isso significa transformar as realidades que causam a fuga das pessoas de seus próprios países, tal como as guerras movidas por interesses econômicos e de dominação. A fala de Jesus seja insistente entre nós : ‘Entre vós não deve ser assim’ (Mc 10,43).’


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sexta-feira, 16 de setembro de 2016

O Brasil das exclusões

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Pessoas com deficiências são subjugadas socialmente.
*Artigo de Tânia da Silva Mayer
Mestra e Bacharela em Teologia

‘‘Por que bonita, se coxa?’ É assim que Brás Cubas, personagem de Memórias Póstumas, de Machado de Assis, define a personagem de Eugênia, filha de dona Eusébia, uma moça de família pela qual havia se encantado. A voz do povo compreendeu que a arte imita a vida, e não somente Brás Cubas incomodou-se com a deficiência motora que a Eugênia tinha. A sociedade, na qual Brás se situa, era, certamente, o fundamento e o berço da exclusão social das pessoas com deficiências. Mas isso não é uma particularidade na literatura e nem das épocas passadas, a nossa sociedade é, ainda hoje, segregadora e preconceituosa com aqueles e aquelas que fogem aos seus padrões e ideais de perfeição.

Não é preciso ter um olho muito clínico para perceber como as pessoas com deficiências são subjugadas socialmente, como pessoas inferiores com relação às outras, entendidas como ‘perfeitas’. E isso se dá de diversas maneiras, desde o olhar piedoso que esconde a ideia de que pessoas com deficiência são menos capazes, até a ausência de políticas sociais específicas que atendam as demandas desses grupos. Aliado a isso está o desrespeito e o menosprezo sofrido por essas pessoas, por causa das deficiências que portam. Vale ressaltar que as deficiências podem variar e assumir diferentes aspectos, de modo que algumas são as pessoas com deficiências físicas, com deficiências motoras, com deficiências mentais e psicológicas, entre outras. De um modo geral, o preconceito e a indiferença ocorrem a todos, aos homens e às mulheres.

Como era de se esperar, há pouquíssimo conhecimento e reconhecimento das potencialidades que as pessoas com deficiências possuem. Essas potencialidades podem ser percebidas no contato diário com elas, seja em casa, nos locais de trabalho ou em outro ambiente em que se devote tempo para o encontro do outro. Quem convive com pessoas que portam deficiências, sabe o quanto elas estão preparadas e dispostas para encarar a vida sempre por vir. Tão competentes e tão melhores profissionais as pessoas com deficiências o serão, basta que lhes sejam garantidos os direitos e as oportunidades. E não é óbvio, na sociedade em que vivemos, que essas pessoas alcançarão seus direitos e espaços para crescerem e se desenvolverem profissionalmente, por exemplo.

Em matéria de atletismo, as e os atletas paraolímpicos são nossos heróis, não somente porque estão aptos para praticarem esportes e competirem em modalidades extremamente difíceis para o corpo, mas, sobretudo, porque nos ensinam a constância e perseverança dos que buscam vencer. As e os atletas olímpicos também ensinam isso, mas eles não gozam da falta de reconhecimento por parte dos cidadãos e da mídia, que trata com diferença absurda dois eventos esportivos que poderiam despertar os desejos de superação e ir além, próprios de quem tem metas e objetivos a alcançar. A mídia brasileira é, salvas exceções, preconceituosa, mas não só. Ela é, também, machista, homofóbica, misógina, racista, eugenista e fascista, promovendo verdadeiros cultos a estereótipos padrões estabelecidos por grupos de poder.

Qualquer pessoa com o mínimo de leitura crítica saberá dizer, em maior ou menor grau, como a mídia age para incutir nas mentes os seus padrões de estética, veiculados pela imagem de corpos construídos ideologicamente sobre pilares de perfeição. A mídia, sobretudo no que se refere à cobertura dos jogos paraolímpicos, tem demonstrado seu descaso com delegações e atletas com deficiências, coisa que se verifica na cobertura fajuta e inexpressiva que tem feito dos atletas e dos jogos, bem como a canalhice de esconder a cerimônia de abertura do evento, não dando o lugar e o destaque devidos na programação aberta a esse importante momento para os países e para os seus atletas. Qualquer matemática é capaz de considerar que a cobertura dos jogos paraolímpicos não corresponde a 1% daquela que teve a Olimpíada. E por que dois pesos e duas medidas? Porque os ideais eugenistas de perfeição e limpeza não conseguem tolerar o fato de que pessoas com deficiências fazem coisas impensáveis e irrealizáveis para a maioria da população sem deficiências. Porque os grupos de poder não toleram a ideia de que grupos minoritários sejam ovacionados por suas grandiosas conquistas. Porque não é interesse que mais pessoas se sintam inspiradas e motivadas a ir além na tentativa obstinada de superar desafios e alcançar objetivos.

Nesse cenário de exclusão e preconceito, as cristãs e os cristãos são confrontados a agirem pautados na dinâmica evangélica de empenhar forças para promover a dignidade dos que a têm usurpada pelos poderosos, que controlam mentes e sociedades, infundindo seus padrões segregadores. Por isso, é urgente voltar às fontes do evangelho para ouvir e ver de Jesus sua práxis libertadora de restauração da dignidade das pessoas, que foi furtada pelas injustiças dos homens. Até que o Reino se plenifique, cabe a denúncia dos sistemas e dos esquemas que impedem as pessoas de serem aquilo que elas são : pessoas plenas.’


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domingo, 12 de junho de 2016

Apátridas : Em busca de uma nacionalidade

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Carlos Reis,
Jornalista


Cerca de 10 milhões de pessoas são apátridas em duas dezenas de países. A cada 10 minutos nasce, em algum lugar do mundo, um bebê apátrida. Políticas discriminatórias estão na raiz de muitas situações de pessoas sem nacionalidade. Com isso, muitas vezes não têm acesso a direitos básicos.


‘Nacionalidade é o elo legal entre um Estado e um indivíduo. A apatridia refere-se à condição de um indivíduo que não é considerado como um nacional por nenhum Estado.

A ausência de uma pátria é uma condição degradante e enfraquecedora que influencia quase todos os aspectos da vida de uma pessoa. Aqueles que não são reconhecidos como cidadãos de um país não podem, com frequência, matricular-se na escola, trabalhar legalmente, possuir imóveis, casar-se ou viajar. Podem ter dificuldade em ser hospitalizados e não conseguir abrir uma conta bancária ou receber uma pensão. Se são vítimas de roubo ou de violação, podem ver-se impossibilitados de apresentar queixa, porque, aos olhos da lei, não existem. Muitas vezes, não têm sequer um nome reconhecido oficialmente. A exclusão produz sequelas psicológicas, já que os jovens apátridas descrevem-se a si mesmos como ‘invisíveis’, ‘estrangeiros’ e ‘sem valor’. Outros têm a sensação paradoxal de ter sentido de pertença e ao mesmo tempo serem excluídos.

«Há muitas maneiras de uma pessoa se tornar apátrida. Todos os dias, apátridas nascem. Outros tornaram-se apátridas devido a acontecimentos do passado. Milhões devem a sua condição à criação, conquista, divisão, descolonização ou libertação do país de onde eles próprios ou os seus antepassados são oriundos», observa a agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Quando a soberania de um Estado é afetada, põe-se imediatamente a questão de quem é e quem não é cidadão. Com frequência, os que não entram nas categorias definidas não têm para onde ir. Outros nunca tiveram nacionalidade ou perderam-na devido a leis mal concebidas, sistemas administrativos ineficazes ou incompatibilidades entre sistemas jurídicos de diferentes países. Uma minoria importante de apátridas é vítima da forma mais perniciosa de privação de nacionalidade, a exclusão de grupos inteiros de pessoas ligada à discriminação política, religiosa ou étnica.


Aqui estou, aqui pertenço

A Declaração Universal dos Direitos Humanos estipula que todos os indivíduos têm direito a uma nacionalidade. O vínculo é adquirido com base no nascimento registado no território de um país, no laço de parentesco com outro cidadão ou na naturalização após casamento com um cidadão de um país. A naturalização pode também ser concedida em caso de residência num país.

«Políticas discriminatórias estão na raiz de muitas situações de apatridia, pelo que apatridia não é uma fatalidade», aponta a ACNUR. Na Ásia, grandes grupos de apátridas beneficiaram de avanços políticos e legislativos no Sri Lanka, Bangladesh e, sobretudo, no Nepal, onde 2,6 milhões de pessoas obtiveram certificados de nacionalidade em 2007.

Na América Central, uma decisão do Tribunal Constitucional da República Dominicana, em 2013, fez com que dezenas de milhares de dominicanos de ascendência haitiana fossem privados da sua nacionalidade. No Oriente Médio, legislações que discriminam com base no gênero criam riscos de apatridia. Nos países do Golfo, populações ficaram à margem dos processos de independência e, no Iraque, muitos curdos feili foram privados das suas nacionalidades até 2006 [existem três famílias de curdos : kermanji, zaza, surani e feili. Os curdos feili habitam nos Estados de Kermanshah e Lursitan, no Irã e nos Estados que confinam com estes no Iraque. A população total no Irã estima-se em dois milhões e meio e no Iraque em 600 mil, ndr]. Em África, parte dos núbios no Quênia não usufruem de direitos de cidadania e, na Costa do Marfim, a falta de clareza do estatuto nacional afeta um grande número de pessoas.

A ACNUR apela aos governos dos países para que tomem medidas para pôr fim ao problema da apatridia em até dez anos, nomeadamente o registo de todos os nascimentos, direito à nacionalidade de crianças filhas de pais apátridas e direito de as mulheres transmitirem a nacionalidade aos filhos. A agência calcula que mais de um terço dos apátridas do mundo são crianças. Se tiverem os seus próprios filhos, essa geração também será apátrida e a crise perpetuar-se-á.

Mais de 97 % dos apátridas concentram-se em 20 países. Só no Myanmar, Costa do Marfim, República Dominicana, Estônia e Tailândia nascem anualmente 70 mil crianças sem nacionalidade reconhecida. Ainda assim, entre 2003 e 2013, «graças a ações de governos de diferentes países, mais de quatro milhões de pessoas apátridas adquiriram ou tiveram reconhecida a nacionalidade», reconhece a ACNUR.’


Fonte :
* Artigo na íntegra