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domingo, 5 de dezembro de 2021

Escutar, acompanhar, amar. Um percurso repleto de gratidão.

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 *Artigo d0 Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ


‘Queremos com estas simples reflexões evocar nossa vida espiritual na sua riqueza e complexidade. Trazer de volta sentimentos vividos, memórias fortes de experiências marcantes de encontros e desencontros, saudades e esperanças. Apesar de defendermos que nossa vida espiritual é ‘nossa’, ‘pessoal’, se queremos ser sinceros temos que admitir que não vivemos nossa vida sozinhos. E que o que dá sabor, gosto, prazer à vida é que ela é vivida com muitas outras pessoas! Na nossa tradição cristã desde tempos longínquos encontramos a figura dos mestres das escolas filosóficas gregas, seguidos pelos ‘Padres e Madres do deserto’, pelos ‘staretz’ russos, pelos ‘gurus’ do Oriente, e que hoje conhecemos como acompanhantes ou orientadores espirituais. Eles se tornam companheiros e companheiras imprescindíveis no caminho.

Se quiséssemos escolher três palavras para evocar atitudes fundamentais básicas para nossa vida espiritual, poderíamos tomar estas : Escutar – Acompanhar – Amar. Poderíamos inclusive dizer que a última (ou seria a primeira?) – AMAR – engloba as outras duas? Só ama de verdade quem sabe escutar e está disposto(a) a acompanhar! E não pode acompanhar de verdade quem não escuta o outro autenticamente!

Essas reflexões terão um efeito diferenciado conforme o público que as vai ler. Para aqueles e aquelas que já provaram de uma orientação espiritual, seja como acompanhantes ou acompanhados, terá a marca de uma renovação nesta importante missão. E para quem ainda não teve essa oportunidade, quiçá seja um estímulo para abrir-se à importância que cada uma destas 3 palavras tem na vida de todos nós!

Comecemos pelo ESCUTAR.

Começando pelo ‘escutar’

Creio que se há algo importante a ser levado a cabo por nós, é aprimorar nossa capacidade de escuta. Pode vir em nosso socorro o famoso texto de Rubem Alves intitulado ‘Escutatória1.  Sigamos alguns trechos e os comentemos oportunamente.

‘Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil […]

Vivemos em um mundo onde todo mundo quer falar e não somente. Quer que a ‘sua’ fala prevaleça sobre as demais. Já ‘aprender a escutar’ não parece ter muita atração realmente num planeta onde a grande maioria já se considera ‘preparados e preparadas’ para falar sobre tudo sem precisar ouvir ninguém.

Parafraseio Alberto Caeiro : ‘Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.’ Daí a dificuldade : a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor […]’

Quantas conversações transformam-se em disputas onde só um alcança a vitória! Não aguentamos ouvir o que a outra pessoa diz sem interpor imediatamente nossas ideias!

Estamos muito longe da ‘liberdade interior’ e da ‘humildade de coração’ do discípulo e da discípula que quer realmente aprender do outro um ensinamento para a vida!

É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades.

Primeira : ‘Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado’.

Segunda : ‘Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.’ Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada.

Uma das piores experiências que podemos ter na vida é nos abrirmos a alguém de corpo e alma e notar que a pessoa não está nos escutando em profundidade. As marcas ficarão gravadas para sempre, afetando negativamente futuras tentativas de abertura a um familiar, a um amigo e inclusive a Jesus e a Deus Pai.

‘Quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós – como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a ideia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa – quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto : a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros : a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto…’ (Rubem Alves, O amor que acende a lua, pág. 65.)

Começar a ouvir coisas que não ouvíamos! Eis o desafio e a meta diante de nós na vida espiritual e no trato com as pessoas! 

Ouvir, ouvir-se : as audições que dão sentido à existência

Só tomamos consciência de si através do sentir, experimentamos nossa existência pelas ressonâncias sensoriais e perceptivas que não cessam de nos atravessar.

Sentir é ao mesmo tempo desdobrar-se como sujeito e acolher a profusão do exterior.

Só aquilo que faz sentido, de maneira ínfima ou essencial, penetra o campo da consciência, suscitando assim um instante de atenção2.

O homem abre uma passagem na sonoridade incessante do mundo ao emitir sons ou provocando-os por suas palavras, por seus feitos e gestos. Mesmo fechando os olhos, os sons circunstantes o desguarnecem quando ele pretende se defender deles, e eles superam os obstáculos fazendo-se ouvir, indiferentemente da intenção do indivíduo. Os ouvidos sempre se abrem ao mundo, ‘não respeitando nem porta nem clausura alguma, como de fato acontece com o olho, com a língua e com outras aberturas do corpo. Por isso me esforço para que sempre, todas as noites, continuamente, eu possa ouvir, e através do ouvir, perpetuamente aprender3.

Diante da palavra escutada, penetrado por ela não obstante a sua vontade, o homem está sempre em posição de acolhida ou de recusa. Ele entra ou não em ressonância. O som é mais enigmático que a imagem, já que ele se dá no tempo e no fugaz, aí onde a visão permanece impassível e explorável. Para identificá-lo é necessário permanecer na escuta, e ele não se renova permanentemente, e desaparece no exato instante em que é ouvido4.

A sonoridade do mundo lembra sua contingência, lá onde os outros sentidos são dóceis a novas solicitações : rever uma paisagem de outono ou um pôr de sol sobre a colina, degustar hoje e amanhã o sabor de um prato ou de um vinho, recorrer ao mesmo perfume, acariciar novamente a face da pessoa amada. O som se perde e foge ao nosso controle bem como à vontade sua de ouvi-lo novamente, salvo através do recurso a instrumentos técnicos que o controlam e o difundem à vontade5.

Ser ouvido significa ser compreendido. A audição penetra para além do olhar, ela imprime um relevo aos contornos dos acontecimentos, povoa o mundo com uma soma inesgotável de presenças, habita as existências defraudadas. Ela sinaliza o sussurro das coisas aí onde nada seria decifrável de outro modo. O som, assim como o odor, revela o que está para além das aparências, forçando as coisas a testemunharem suas presenças inacessíveis ao ouvido.

Ao escutar o relato da vida de alguém, na perspectiva de poder participar dessa vida oferecendo o ouvido e o coração, fazemos a experiência de comunhão e solidariedade com o outro. O que terá um impacto ainda maior quando se tratar de ‘dar ouvidos’ aos clamores dos mais frágeis e descartados da nossa sociedade.

Querer ouvir o outro, desejar profundamente ouvir a si mesmo, sempre no intuito de penetrar ainda mais profundamente no sentido que reveste a nossa existência e as dos nossos irmãos e irmãs, faz-nos encarnar a atitude existencial fundamental do próprio Cristo, homem-para-os-demais, Encarnação do Amor inesgotável de Deus por toda a humanidade sofredora.’

Notas :

[1] Fonte: http://rubemalves.locaweb.com.br/hall/wwpct3/newfiles/escutatoria.php. Acesso em 19/11/2021.

[2] Cf. David Le Breton, Antropologia dos Sentidos, Petrópolis: Vozes 2016, 27.

[3] F. Rabelais, «Le tiers livre », Ouvres Completes. Paris: Seuil 1979, 429.

[4] Cf. David Le Breton, Antropologia dos Sentidos, 129-130.

[5] Cf. David Le Breton, Antropologia dos Sentidos, 134.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1553628/2021/12/escutar-acompanhar-amar-um-percurso-repleto-de-gratidao/

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Forçados a fugir

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)   
     

*Artigo de Bernardino Frutuoso,
jornalista

‘O jovem africano, magro e assustado, olha fixamente para o telemóvel. Desce a escada da ponte nos braços de um marinheiro de macacão azul e com uma máscara anticovid. A fotografia circula na Internet, publicada pelas ONG que trabalham há anos para salvar as pessoas que, desesperadas, fogem da África e do Médio Oriente. «Parece a Pietà» comentam nas redes sociais. A Pietà do Mediterrâneo estava a bordo do Talia, um cargueiro libanês que normalmente transporta gado e que em Julho passado recebeu cerca de cinquenta migrantes, resgatados em condições extremas e que tinham sido bloqueados a poucos quilômetros de distância de Malta.

Esta notícia – e ação de profunda humanidade do marinheiro-samaritano – lembra-nos a atualidade, o drama e o desafio da migração. Sabemos que existem múltiplas e complexas razões que levam as pessoas a migrar : conflitos, violência armada, pobreza, desigualdade, falta de emprego e oportunidades, alterações climáticas, insegurança urbana (68% das pessoas que integram as caravanas na América Central em direção aos EUA fogem da pobreza, mas também dos gangues). Dizem os especialistas que a pressão migratória vai continuar a aumentar. De fato, de acordo com os dados da Organização Internacional para as Migrações, entre 2000 e 2019 os migrantes à escala global passaram de 150 milhões para 272 milhões (de 2,8% para 3,4% da população mundial).

Uma vertente da migração, cada vez mais relevante, é o fenômeno do deslocamento interno (segundo os últimos dados publicados pelo Internal Displacement Monitoring Centre, registaram-se em 2019 em todo o mundo 33,4 milhões de novos deslocados internos). É em relação a esse drama do mundo contemporâneo, «muitas vezes invisível, que a crise mundial causada pela pandemia de covid-19 exacerbou», que Francisco reflete na mensagem para o 106.º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, que este ano se celebra no dia 27 deste mês de Setembro.

O ponto de partida do texto do papa é o ícone da fuga da Sagrada Família para o Egito, em que «o menino Jesus experimenta, juntamente com os seus pais, a dramática condição de deslocado e refugiado marcada por medo, incerteza e dificuldades». Na hermenêutica que faz do texto de Mateus, o papa sublinha que em cada um dos deslocados do nosso tempo «está presente Jesus, forçado – como no tempo de Herodes – a fugir para Se salvar. Nos seus rostos, somos chamados a reconhecer o rosto de Cristo faminto, sedento, nu, doente, forasteiro e encarcerado que nos interpela». E podemos interpretar, igualmente, que esse relato bíblico nos lembra que todos somos migrantes e cada um de nós tem nos seus genes uma história de migração, temporalmente mais remota ou mais próxima.

Para 2020, além de relembrar aos cristãos os verbos acolherprotegerpromover integrar, as quatro pedras angulares para uma ação eticamente comprometida que propusera na mensagem de 2018, o Papa Francisco acrescenta seis pares de verbos que traduzem ações concretas, interligadas numa relação de causa-efeito : conhecer para compreender; aproximar-se para servir; escutar para reconciliar-se; partilhar para crescer; co-envolver para promover; colaborar para construir. Verbos que conjugados pró-ativamente na prática quotidiana dos discípulos missionários de Jesus ajudarão a derrubar muros e a alicerçar um futuro mais esperançado, fraterno e justo para todos.’