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terça-feira, 9 de março de 2021

Há lugar para o discurso teológico perante tanto discurso virológico?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo de Miguel Oliveira Panão,

professor


‘Qual o contributo do discurso teológico para a compreensão do momento de pandemia que vivemos? Nem sempre é fácil ler um discurso teológico por conter traços filosóficos. E a beleza da liguagem da filosofia está em alguma da sua complexidade. Talvez por isso, sintamos que o discurso teológico elaborado filosoficamente pretende ajudar-nos a pensar estes difíceis tempos, mas não consegue. E daí a dúvida : haverá lugar para o discurso teológico num mundo profundamente afetado por um evento biológico?

Ao ler o excelente artigo de João Paulo Costa, presbítero da Arquidiocese de Braga, fiquei intrigado com uma passagem que faz do filósofo germano-coreano Byung-Chul Han no seu livro ‘A Sociedade Paliativa’, por espelhar o modo como vi alguns amigos cristãos a enfrentar esta pandemia. Isto é, com um olhar mais reducionista que se recusa a aceitar o fato de não vivermos mais no mundo antes da Covid-19, e de que, talvez, isso não seja mau de todo.

Byung-Chul Han começa por dizer na passagem que me intrigou que «Em face da pandemia, a sociedade da sobrevivência proíbe serviços religiosos mesmo na Páscoa. Os padres também praticam o ‘distanciamento social’ e usam máscaras. Sacrificam totalmente a crença à sobrevivência sanitária. Paradoxalmente, o amor do próximo manifesta-se como distanciamento. O próximo é um portador de vírus potencial. A virologia desautoriza a teologia. Todos estão atentos ao que dizem os virologistas, que alcançam uma supremacia de exegese absoluta. A narrativa da ressurreição cede por completo o passo à ideologia da saúde e da sobrevivência.»

A crença sacrificada, e a desautorização da teologia, causadas por um acontecimento virológico, são uma visão reduzida do interlaçar entre a física e a metafísica que fazem parte do viver humano. Reconhecendo os efeitos que a pandemia teve sobre os ritmos da nossa vida espiritual, poderia, antes, dizer, que a sobrevivência sanitária desafiou a superficialidade da nossa crença, e que a virologia desafia a complexidade frequente do discurso teológico. Não estou tão certo que o discurso dos virologistas seja acolhido por nós como uma verdade absoluta que nos impeça de viver a narrativa da ressurreição. Muito pelo contrário, nunca como antes essa narrativa foi tão importante para aproximar o infinito do finito, o incompreensível do vivível, ajudando a procurar sentido naquilo que parece não ter. A narrativa da ressurreição é uma narrativa de esperança, e não é a esperança uma fonte de vida?

Na verdade, o discurso teológico é semelhante ao discurso científico. Por exemplo, se o leitor começar a ler um artigo sobre os conjuntos de sondas primárias acessíveis para detectar potenciais variantes do coronavírus SARS-CoV-2 ficará tão desinteressado como se lesse um artigo teológico sobre a ontologia cristã da dimensão do humanum perante a visão teodiceica desta pandemia, certo? Porém, os divulgadores de ciência procuram explicar conceitos científicos complexos com metáforas, ou seja, imagens de proximidade à experiência de vida quotidiana que uma pessoa sem formação científica possa entender. Logo, os teólogos e filósofos poderiam/deveriam fazer o mesmo.

Byung-Chul Han diz ainda que «Perante o vírus, a fé degenera e transforma-se numa farsa. Ela é substituída por unidades de cuidados intensivos e por ventiladores. Contam-se os mortos diariamente. A morte domina por completo a vida e esvazia-se em nome da sobrevivência. A histeria da sobrevivência torna a vida radicalmente transitória. Ela é reduzida a um processo biológico, que precisa de ser otimizado. Perde toda a dimensão meta-física […]. A vida é despojada de qualquer narrativa com sentido. Ela deixa de ser narrável e passa a ser mensurável e contável.»

E, por este motivo, proliferam no mundo cristão as ideias de que não há pandemia, de reserva em relação à vacina, e que as máscaras não protegem, logo, por que razão as devemos usar ou prescindir das celebrações? A fé só degenera se estiver assente em solo infértil e equivocado. Não me parece que os cuidados intensivos, e os ventiladores, sejam imagem do domínio da morte, mas, pelo contrário, do domínio da vida por representarem o esforço de salvar as pessoas dos efeitos sérios e graves desta pandemia. A vida é, realmente, transitória, mas não se reduz a essa condição. A vida, em todas as suas fases, está orientada para a ressurreição. E a ligação entre a vida da materialidade e da eternidade faz-se na profundidade.

Medir e contar é, para um cientista, a base para a compreensão dos fenômenos físicos, mas não é o fim último da sua investigação. Por isso, a contagem dos infectados e dos que morrem pode, também, servir de base para a procura de uma vida mais profunda e enraizada num Ideal que não passa : Deus.

A única coisa que gostaria de ver presente num discurso teológico, vai para além da compreensão de Deus, mas, com um tom de divulgação teológica (à semelhança da científica), através de imagens e testemunhos, inspirar a vida quotidiana a fazer de cada momento, um momento de Deus.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://www.combonianos.pt/alem-mar/opiniao/4/479/ha-lugar-para-o-discurso-teologico-perante-tanto-discurso-virologico/

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Arte nos discursos

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)        

 

*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,

Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, MG

Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

 

‘A imagem de um grande parlamento é oportuna para ajudar a entender a sociedade brasileira com suas muitas vozes que se levantam, afinadas e semitonadas, por variadas e até contraditórias razões. Importante lembrar que a palavra ‘parlamentar’ não se refere apenas aos representantes do povo que ocupam instâncias oficiais constituídas. Denota uma atividade que é inerente ao exercício da cidadania, relacionada à liberdade de expressão e ao compromisso com a construção da sociedade democrática. Sem adequados fóruns de parlamentação, instituições não avançam e nem cumprem a sua missão.  Pensar, manifestar e participar, livremente, constituem condições intrínsecas à tarefa de parlamentar com o objetivo de emoldurar novo tecido institucional e social. Há aqui um especial desafio : cuidar do amálgama das diferenças, para que sejam alcançadas respostas novas e urgentes.

Nesse desafio, inserem-se as cristalizações de mentalidades. Muitos se fecham nas próprias perspectivas e agem com intolerância ante o diferente, manifestando inabilidade para lidar com divergências. É inegociável fazer investimentos e envidar esforços para que a arte dos discursos seja promoção de diálogos e entendimentos – e não autoritarismos e imposições interesseiras. Esses autoritarismos e imposições banalizam o incondicional respeito a todos, desconsiderando principalmente os mais pobres e vulneráveis. Está se tornando perigosa e desastrosa a imposição de discursos que manipulam ou cerceiam o fluxo de opiniões. Essas manipulações ainda distorcem dados para esconder a realidade, desvirtuando a indispensável arte dos discursos. Para melhor compreender o que representa um líder autoritário e indiferente ao sofrimento dos pobres, é oportuno recordar o caso de um califa que, acreditando ser dono da verdade, considerou aceitável queimar a biblioteca de Alexandria, no Egito. O acervo fantástico de obras, com muitos discursos lúcidos capazes de garantir entendimentos indispensáveis, foi desprezado e destruído por quem se considerava autossuficiente – detentor da verdade.

Põe-se, portanto, nas esferas de parlamentação da sociedade brasileira o desafio de prestar atenção na arte dos discursos, avaliando a qualidade e os propósitos das muitas palavras. Caso contrário, instalar-se-á, cada vez mais, uma ‘Babel brasileira’. Além de desserviço, muitos discursos estão se tornando um risco terrível para a justiça e para a liberdade. Percebe-se que apenas a multiplicação de vozes não basta. Urgente é arquitetar discursos que alavanquem mudanças importantes, principalmente aquelas que incidem sobre mentalidades.

Filosoficamente, discurso é uma obra com o propósito de gerar nova compreensão sobre a realidade. No horizonte da sociedade brasileira, espera-se a constituição de um discurso que, ao permitir maior lucidez, seja capaz de configurar novo tecido social e de articular novo projeto político para o Estado. Anseia-se que a partir da compreensão gerada por esse novo discurso se consolide uma civilização fundamentada na igualdade e na solidariedade. Ao invés disso, o que se verifica hoje são entendimentos equivocados e desacertos que levam ao agravamento da desigualdade social, a um modelo econômico excludente que fere a dignidade humana e adoece o meio ambiente.

Problemas complexos exigem perspectivas que não podem ser medíocres. Para respostas qualificadas e urgentes, são necessários entendimentos também complexos, construídos em um verdadeiro mutirão. Estão convocados a participar todos os cidadãos, as instituições sérias e credíveis da sociedade brasileira, os segmentos educacionais e culturais, servidores do povo nas instâncias governamentais. Todos, com seriedade e compromisso, participem de modo significativo e transformador para construir entendimentos capazes de fazer surgir novo contexto civilizatório. Prevaleça, em cada lugar, o discurso edificado na tolerância, na sabedoria para administrar as diferenças, sem risco de se apegar a um pensamento uniforme, desagregador ou que impeça avanços. Cada pessoa tenha coragem e abertura para lidar com o confronto de perspectivas. Ao mesmo tempo, seja humilde para escutar. Assim é possível superar preconceitos e exercitar-se, com competência, na arte dos discursos, por um novo tempo na política, na economia e nos diferentes contextos sociais.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/artigo/9065/2020/10/arte-nos-discursos/

 

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Onde está o teu tesouro aí está o teu coração


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Se queremos encontrar onde está nosso coração basta perceber onde ou em que colocamos a maioria das nossas forças e nossa maior porção de tempo.
*Artigo de Fabrício Veliq,
teólogo protestante
  
‘‘Não acumulem para vocês tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e onde os ladrões arrombam e furtam. Mas acumulem para vocês tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não destroem, e onde os ladrões não arrombam nem furtam. Pois onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração. Mateus 6:19-21

Esses versículos, inseridos no chamado Sermão do Monte que segue de Mateus 5 e vai até o capítulo 7 são muito conhecidos. Mesmo sendo comumente ouvidos, na maioria das vezes, são associados somente às questões de cunho espiritual e usados para fazer uma total dicotomia entre coisas do céu e coisas da terra, termos esses entendidos não no sentido bíblico, mas no sentido literal.

A princípio, podemos pensar que Jesus está fazendo uma mera contraposição entre céu e terra e que, assim, devemos pensar somente nas coisas que são do alto e ignorar as coisas que estão na parte de baixo, numa espécie de pensamento de que nada aqui vale a pena e, ainda pior, que tudo que é terreno recebe a reprovação de Deus.

Porém, ao se ter em mente que céu na Bíblia é simplesmente um nome para Deus é possível reler esse versículo como sendo um conselho para que guardemos nossos tesouros em Deus.  Qual seria o motivo para isso? O texto nos mostra dois: porque ali a ferrugem e a traça não o destroem e, o mais importante de todos, porque ali onde está nosso tesouro ali estará o nosso coração, o que, de maneira inversa pode ser dito que, onde está o nosso coração, ali está o nosso tesouro.

Dizer que nosso coração está em algo quer dizer que esse algo é o que define nossas prioridades e nosso comportamento diante das situações do cotidiano. Dessa forma, se queremos encontrar onde está nosso coração basta perceber onde ou em que colocamos a maioria das nossas forças e nossa maior porção de tempo.

A chamada de Jesus, desse modo, nos confronta para uma tomada de decisão que é justamente onde guardaremos nosso tesouro, se nas coisas de Deus, ou se nas coisas terrenas. Se atentarmos ao Evangelho pregado por Jesus é possível identificar quais são as coisas dos céus e quais são as coisas da terra. As coisas dos céus, que é o mesmo que dizer a respeito das coisas de Deus, são aquelas que têm a ver com o se importar com pobres, marginalizados e esquecidos da sociedade, o que o texto de Mateus 25 deixa muito claro quando afirma que fazer algo aos pequeninos é fazer ao próprio Deus. Nesse sentido, empatia e misericórdia é o modo de viver de todo/a aquele/a que decide por guardar seus tesouros nas coisas de Deus.

Por outro lado, com relação às coisas terrenas, é sempre importante lembrar que terra aqui não tem a ver com o planeta, antes com um sistema e uma forma de vida. Ser terreno, nesse sentido, é viver uma vida que é voltada somente para si, movida pelo individualismo e sem se importar com outros. Dessa forma, individualismo e egoísmo são marcas de todos/as que decidem guardar o seu tesouro nas coisas terrenas.

Por sua vez, esse lugar onde nosso tesouro está não fica em secreto de maneira que os outros não têm como saber onde o guardamos. Lao Tsé já dizia que ‘A alma não tem segredos que o comportamento não revele’. Esse ensinamento, então, serve de critério para avaliação de toda coadunação entre discurso e prática. Em outras palavras, muito além do discurso, é o comportamento que nos indica onde está o nosso tesouro e, ao mesmo tempo, torna-o visível para todos/as que os observam e estão atentos ao nosso modo de viver. Nesse sentido, é importante lembrar que o grito de nosso comportamento é sempre maior que a ênfase de nossas palavras e que nosso esforço deve ser sempre de, assim como Jesus, viver uma vida na qual a nossa prática manifeste nosso discurso e nosso discurso seja reflexo de nossa prática.’


Fonte :