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terça-feira, 5 de maio de 2020

A missionariedade vocacional


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 Pag56A
*Artigo de Susana Vilas Boas, LMC


Certo dia, enquanto passeava pela cidade, vi numa parede pintada a seguinte frase : «As árvores não comem os próprios frutos, os rios não bebem as próprias águas. A riqueza dos dons é sempre para benefício dos outros Desconheço o autor do grafite e o autor da frase. Contudo, esta tem sido usada variadíssimas vezes pelo Papa Francisco. Coincidência ou não, esta frase – seja ela originariamente pensada num sentido cristão ou não – remete-me para uma reflexão mais profunda sobre a vocação : desde o início do discernimento vocacional até à sua vivência quotidiana.

Muitas vezes, somos tentados a olhar para a nossa vida, presente e futura, apenas numa perspectiva pessoal, quase independente do mundo à nossa volta, num maranhado de frases/perguntas onde o ‘eu’ se encontra sempre no centro : «O que eu quero fazer com a minha vida?»; «Que futuro é que eu quero para mim?»; «Eu quero ser feliz!»; «Eu quero realizar-me». Nada há de errado no desejo pessoal de felicidade e auto-realização, o problema surge quando, pouco a pouco, à força de repetirmos estas frases e de as pensarmos/sentirmos tão centradas no ‘eu’, começamos a pensar a vocação e a vida de um ponto de vista egoísta, como se fosse possível viver plenamente sem que isso constitua, por um lado, um esforço pessoal e, por outro lado, um dom para os outros. Ao querermos ser os primeiros beneficiários dos dons da nossa vocação, partimos, mesmo sem nos darmos conta, para o discernimento vocacional já tendo em vista vocações que nos possam ‘satisfazer’, numa perspectiva autocentrada que nos faz olhar a vocação como ‘uma loteria’ que vamos ganhar, e não como um dom que recebido nos coloca ao serviço em favor da humanidade que nos rodeia.

A missionariedade como distintivo cristão

O Papa Francisco alerta para esta problemática, não deixando, porém, de advertir que a vivência vocacional também não pode ser entendida como um estandarte que elevamos para que todos vejam e usufruam. Ela – enquanto vivência do Evangelho – é como uma brisa suave que, de um modo discreto, acaricia, refresca, acalma, à sua passagem. A sua ação não é nem exibida nem autocentrada, é discreta, mas atuante. Por isso mesmo, o papa recorda as palavras de Santo Alberto Hurtado, que afirmava que «ser apóstolo não significa usar um distintivo na lapela do casaco; não significa falar da verdade, mas vivê-la, encarnar-se nela. [...] O Evangelho [...], mais do que uma lição, é um exemplo. A mensagem transformada em vida vivida» (Cristo Vive, n.º 175).

Como no grafite que encontrei, em que os dons implicam esforço, generosidade e renúncia (a árvore tem de ser fecunda, tem de dar fruto e tem de renunciar a eles para que outros deles beneficiem, se fortaleçam e, por sua vez, também frutifiquem para outros), na vocação a dimensão missionária está sempre presente. Aliás, se pensarmos bem, como seria uma vida plena se fôssemos completamente isolados do mundo que nos rodeia? Que felicidade, se só vivêssemos para nós mesmos? Todos temos experiências de boas notícias – um bom resultado num exame, a entrada para a faculdade, uma oferta ou uma boa apreciação de alguém que não contávamos, etc. – e, o que desejamos fazer – o que fazemos, de fato – quando isto acontece? Ficamos a deliciar-nos sozinhos com o momento? Não! Telefonamos logo a alguém a contar o sucedido. Muitas vezes, nem aguentamos conter a alegria até chegar presencialmente junto dos nossos amigos ou familiares para partilhar a alegria que estamos a sentir. Quão triste seria não ter ninguém com quem o fazer! Quão redutor da nossa felicidade seria constatar a nossa solidão nestes momentos! Com a vocação acontece o mesmo. Ela é algo maior do que nós e, à medida que vamos vivendo a sua realização (desde o próprio discernimento), ela vai crescendo e ‘saindo-nos do peito’, numa alegria e num desafio maior do que nós mesmos, tornando-se aí, necessariamente, missionária e dom para os outros. Ela deixa de ser prêmio, para converter-se em alegre serviço – dom verdadeiro – para todos os que amamos, para os que nos rodeiam e até para aqueles que nem conhecemos pessoalmente.

A vocação para lá do próprio umbigo

O ideal de uma felicidade fácil que, muitas vezes, a sociedade, os meios de comunicação social e mesmo o nosso círculo de amigos, parecem querer ‘vender’, está longe de ser possível. A virtualização da felicidade leva-nos a um afunilamento e redução drástica da existência e do próprio sentido da vida. Se pensarmos bem, por exemplo, nos grandes nomes da História, naqueles que são para nós exemplos de vida, verificamos que estas são pessoas que abdicaram de muito, renunciaram a muito e só na medida em que viveram em coerência com a sua vocação e na dádiva dos dons que foram frutificando nas suas vidas, é que marcaram a diferença, é que se realizaram e, consequentemente, é que transformaram o mundo de maneira que, até hoje, o mundo não deixa de recordar os seus nomes. Claro que não temos de ‘ficar todos para a História’, mas podemos negar-nos a fazer parte dela?

Certamente que pessoas como Daniel Comboni, ou o próprio Jesus Cristo, continuam a marcar-nos, mas terão sido as suas vidas fáceis ou vividas de um modo autocentrado? Sabemos bem que não! Quanta renúncia e a quantos sacrifícios foram sujeitos. Todavia, se pensamos em vidas vividas em plenitude, estes são nomes que nos vêm logo à mente. Quando pensamos em vidas coerentes e realizadas, é neles que também pensamos. Consequentemente, e apesar das tantas provações, dificuldades e obstáculos que tiveram de travar, estas foram vidas felizes. Não porque foram vividas no meio de gargalhadas e de muita riqueza financeira, mas porque cada lágrima, cada dor, cada momento de sofrimento foi vivido por um bem maior (não para si mesmo, mas em favor de outros) e, no fim de tudo (porque Deus nunca abandona aqueles que O amam), todos estes momentos dolorosos converteram-se em triunfo, em alegria e em vida verdadeira. Não seria isso que todos desejamos? Não será, precisamente, uma vida que, apesar das dificuldades, seja fecunda, sinal de esperança e geradora de uma alegria maior, aquela que todos ansiamos?

O desafio da vocação, enquanto impulso missionário

A vida não se compraz com facilitismos nem com o adiamento da existência. Ela acontece a cada momento e não podemos fechar os olhos, não podemos enterrar a cabeça na areia como a avestruz, temos de ousar vivê-la apesar dos nossos medos e anseios mais egoístas. Há quem fale do ‘amanhã dos jovens de hoje’. Quando se trata de encarar a vida e a vocação de um ponto de vista cristão, esta frase não faz sentido. O hoje é o tempo de Deus, o tempo em que Ele age e nos acompanha no nosso agir. Por isso mesmo, o Papa Francisco não se cansa de nos alertar e exortar a uma ação no aqui e agora da nossa vida : «Não se pode esperar que a missão seja fácil e cômoda. [...] Amigos, não espereis pelo dia de amanhã para colaborar na transformação do mundo com a vossa energia, audácia e criatividade. A vossa vida não é ‘entretanto’; vós sois o agora de Deus, que vos quer fecundos» (Cristo Vive, n.º 178).


Fonte :
* Artigo na íntegra

sábado, 22 de junho de 2019

'Pesos mortos' que travam o seguimento


Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Se queremos fazer caminho com Jesus temos de acolher suas condições e entendê-las como Ele as entende. 
Se queremos fazer caminho com Jesus temos de acolher
suas condições e entendê-las como Ele as entende.

*Artigo d0 Padre Adroaldo Palaoro, SJ



‘Depois do longo e intenso percurso pascal, retomamos o tempo litúrgico conhecimento como ‘Tempo Comum’, seguindo o evangelista Lucas (Ano C).

A cena do evangelho deste domingo é muito conhecida, pois ela é relatada nos três evangelhos sinóticos, embora com grandes diferenças. Os discípulos já levam um bom tempo acompanhando Jesus. Por que o seguem? Jesus quer saber qual é a motivação presente no interior de cada um deles. Por isso, dirige uma pergunta ao grupo : ‘E vós, quem dizeis que eu sou?’

Esta é a pergunta que também deve ter ressonância em nosso interior; afinal, dizemos ser seguidores(as) de Jesus. Seguimos, de fato, uma pessoa ou seguimos uma doutrina, uma religião, uma moral...? Não é suficiente repetir fórmulas aprendidas na catequese. Aqui trata-se de expressar uma identificação profunda com a vida e com o modo de ser do Profeta da Galiléia. Por que o seguimos? Não basta afirmar que Ele é o ‘Messias de Deus’; é preciso dar passos no caminho aberto por Ele, acender também hoje o fogo que Ele quis espalhar no mundo. Como podemos falar tanto dele sem sentir sua sede de justiça, seu desejo de solidariedade, sua vontade de paz?

Na experiência humana ressoa, desde sempre, a marca ou o chamado a transcender-se, a ir além de si mesmo. O seguimento de Jesus pressupõe a pessoa capaz de sair de si mesma, de descentrar-se. Deixar ressoar a voz do chamado no próprio interior implica um investimento de toda a pessoa. O ouvido se abre, o olhar se aclara, a mente se expande, o coração compreende, o corpo se ergue e a vida se reinicia.

Vida aberta e sempre em movimento, pronta para acolher e viver as surpresas.

Estamos inseridos numa cultura onde as entregas são vividas pela metade, as opções são de fôlego curto e os projetos não tem consistência.

Vivemos a chamada ‘cultura líquida’ onde tudo parece que nos escapa das mãos. Não há solidez nas decisões pois elas são apressadas e superficiais, porque o horizonte está obscuro.

Jesus não impõe nenhuma condição, não quer gente que busque carreiras ilustres, riquezas, prestígio.... Quer pessoas que sejam capazes de descentrar-se, de renunciar ao próprio ego, de desapegar-se daquilo que as atrofia e as limita, para investir numa proposta de vida que dê direção e sentido à própria existência. Este é o lema de Jesus : ‘renunciar a si mesmo, tomar a cruz cada dia e segui-Lo’

O que significa ‘renunciar a si mesmo’. Significa sair da visão egocentrada, nascida da crença errônea de que somos o ego. Talvez pudesse ser expresso desta forma : ‘Deixa de crer que és o eu separado e descobrirás a riqueza de tua verdadeira identidade; nem sequer vê a tua vida a partir do ego, porque sofrerás e farás sofrer; contempla-a a partir de tua verdadeira identidade, onde há uma unidade profunda, mas sem apego nem comparações’.

Não é a renúncia o que nos salva, mas o desenvolvimento e a expansão da vida em direção à plenitude.

A renúncia é sempre lícita e aconselhável quando fazemos por algo melhor. O apego a nós mesmo, às coisas ou às pessoas, impede-nos de mover com facilidade. Perdemos o fluxo da vida e o impulso do movimento, a suavidade do ‘deslizar pela existência’.

Na vida cristã, o seguimento é questão de sedução, de paixão, de atração, de coração...; isso significa que Jesus Cristo é de fato o ‘amor primeiro’, aquele que antecede a qualquer outro, de maneira especial o amor a si mesmo. Daí nasce a harmonia interior. Quando o seguimento torna-se o eixo central, todos os elementos da vida, todas as afeições, todas as potencialidades do espírito, encontram-se em ‘seus lugares’, estabelecendo uma deliciosa experiência de paz. Os afetos ‘orientados’ e ‘ordenados’ à pessoa de Jesus, cria um novo referencial, um novo centro afetivo.

Se queremos fazer caminho com Jesus temos de acolher suas condições e entendê-las como Ele as entende. ‘Renunciar a si mesmo’ é descentrar-se, não ser já o centro de seu próprio projeto. É pôr a vida inteira a serviço do outro, neste caso o projeto de Jesus. A isto Jesus chama ‘perder a vida por sua casa’. E quem assim fizer, ‘ganhará’, salvará sua vida. A condição que Jesus propõe para segui-lo não pretende negar nossa autonomia, mas orientar nossas energias e valores para a construção do Reino que Ele iniciou, renunciando, também Ele, a si mesmo, para cumprir em tudo a vontade do Pai.

Na medida em que nos desprendemos de todo apego, incluído o apego à vida, a favor dos outros, estaremos amando de verdade e, portanto, crescendo como ser humano. Nossa Vida com maiúscula se potenciará, e a vida com minúscula, adquirirá, então, todo seu sentido.

A resposta à pergunta de Jesus (‘e vós, quem dizeis que eu sou?’) implica adesão à pessoa d’Ele e ao seu projeto, o Reino; significa fazer o caminho com Ele, colocar-se onde sempre se colocou, na margem, na periferia... Isso acarreta oposição, perseguição, cruz.

Em quê consiste ‘carregar a Cruz?’ É acaso suportar tudo sem reclamar como se toda contrariedade nos é mandada pelo Deus mesmo? É submeter-se à dor pela dor, como se a dor fosse um valor em si mesmo?

Algo ou muito disto temos entendido assim e não tem nada a ver com a condição que Jesus propõe para que sigamos seus passos. Ele quer dizer que todos devem estar dispostos a viver da mesma maneira que Ele viveu, embora sabendo que este estilo de vida pode acarretar a perseguição e talvez a morte. Tomar a Cruz significa prontidão, estar preparado, mobilizado...

Essa é a cruz de Jesus e também deve ser a nossa. Não inventemos cruzes sob medida, não coloquemos cruzes sobre nós ou sobre os outros. Sigamos os passos de Jesus, assumindo seu estilo de vida!

Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um ‘peso morto’; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.

‘Jesus morreu de vida’ : de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora.
Aquele que acompanha Jesus vai também tomando consciência que a opção pela vida pode conduzi-lo à Cruz.

Mas não basta carregar a Cruz; a novidade cristã é carregá-la como Jesus. Essa é a nova maneira de carregar a Cruz que Jesus nos ensina : transformá-la em sinal e fonte de amor e de entrega.

A palavra ‘cruz’ – em grego ‘staurós’ – vem do verbo ‘ficar em pé’. ‘Tomar sua Cruz’ não é, portanto, suportar passivamente sua vida, tornar-se escravo de um destino tirânico; significa prontidão, estado de vigilância... para passar de uma vida suportada para uma vida escolhida. 

Texto bíblico :  Lc 9,18-24

Na oração : ‘Quem é Jesus para mim?’ Pergunta instigante que nos ajuda a captar a originalidade de Sua vida, a escutar a novidade de Seu chamado, a deixar-nos atrair pelo Seu projeto, contagiar-nos por Sua liberdade, empenharmos por viver seu caminho.

- Cada um de nós deve se colocar diante de Jesus, deixar-se olhar diretamente por Ele e escutar, a partir do mais profundo de si mesmo, Sua pergunta : ‘Quem sou Eu realmente para você?’

- A esta pergunta responde-se mais com a vida que com palavras sublimes.’


Fonte :

terça-feira, 2 de abril de 2019

Irmã morte

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Imagem relacionada
*Artigo de Evaldo D´Assumpção,
médico e escritor



Quando em 1978 tive meu primeiro contato com a Tanatologia, ciência que estuda os comportamentos diante da morte, com aplicação prática no cuidado dos enfermos em fase terminal de sua doença e na assistência aos enlutados, fiquei fascinado com esse trabalho, especialmente na importância que tinha para a melhora significativa da relação médico-paciente, e nos cuidados dos médicos para consigo mesmos. Aprofundei-me no seu estudo e tornei-me um dos pioneiros nesse campo, em nosso país. Nos Estados Unidos e na Europa, ele já era feito e crescia geometricamente, desde o final dos anos 60.

Comecei a divulgá-lo através de artigos publicados em revistas leigas e médicas, em palestras e cursos, e em diversos livros, como o ‘Sobre o viver e o morrer’ e ‘O Luto’ (Ed. Vozes). Pouco tempo depois, alguns colegas passaram a comentar jocosamente essa minha dedicação à Tanatologia (tanatos = morte, logia = estudo), apelidando-me de ‘Doutor Morte’ ou então de ‘O médico amigo da morte’. Uma evidente ironia para disfarçar seus próprios medos. Descobri então que médicos e sacerdotes costumam ser mais temerosos da morte do que qualquer outro. Fazendo palestras em hospitais, com auditórios lotados de enfermeiras e assistentes sociais, observava a pequena presença de médicos. Geralmente estavam ausentes aqueles dos comentários irônicos. Perguntando-lhes por que não participavam, sempre tinham uma desculpa. E, como o desconhecimento é o maior responsável pelos medos e angústias, eles se privavam de superar o verdadeiro pânico de que padeciam com relação a nossa irmã morte. Por outro lado, os que estavam presentes nos seminários e palestras, frequentemente davam-me gratificantes retornos, dizendo o quanto aprenderam, e como fora libertador para eles eliminar preconceitos e temores, em sua convivência quase diária com situações de perdas e morte.

A morte, em si, não é uma tragédia. Trágicas são certas formas pelas quais ela acontece. Trágicas são as mortes precoces; trágicas elas são quando fruto de omissões dos poderes públicos, da carência ou ausência de cuidados médico-hospitalares adequados; trágicas são as decorrentes da fome e da miséria. Enfim, trágica é a morte quando fruto da imprudência, da violência, da irresponsabilidade dos humanos. Já a morte como fase final do transcorrer da vida, essa não deve ser estigmatizada, pois a vida é um dom imensurável, contudo já vem com data de vencimento. Não falo de destino nem de predeterminação, pois neles não acredito, mas das naturais etapas que temos de percorrer. Nascemos, aproveitamos nossa infância, saboreamos a juventude com suas dúvidas e naturais limitações, chegamos à fase adulta, quando podemos compartilhar tantos frutos que colhemos das semeaduras feitas ao longo de nossa caminhada. Entramos então no período da envelhecência, quando desfrutamos da sabedoria que somente os anos conseguem nos proporcionar, até chegar à senescência, que para alguns pode durar vários anos, e para outros nem tanto. Mas toda forma de vida tem, natural e inevitavelmente, as etapas do nascer, desenvolver e morrer. Sendo assim, não devemos encarar nenhuma delas como anormal. Pelo contrário, devemos aproveitar intensamente cada uma, e quando completar o ciclo, abraçar a irmã morte como a plena realização de uma vida. Quem o faz, tem uma passagem, uma transformação, um encantamento, como disse Guimarães Rosa – dê a ela o nome que quiser – tranquila e sem maior sofrimento pela sua ocorrência. O sofrimento, geralmente é devido a enfermidades dolorosas, deformantes, limitantes, mas não pela morte em si.

Sofrimentos maiores decorrem do apego desmedido que muitos desenvolvem, acreditando que são donos de tudo, controladores de tudo, senhores de tudo. Mas a morte não toma o menor conhecimento de nossa tecnologia sofisticada, de nossas veleidades, desse nosso pavor de perder o que tolamente julgamos ser posse inteiramente nossa. Ela reina absoluta, no seu tempo.

Mas existe também o sofrimento pela perda do outro. Esse, também causado pelo apego – pois temos o péssimo hábito de confundi-lo com o amor – e quanto maior o sentimento de posse, maior será a dor da perda. Para quem assimilou a essência do amar, quem tem a certeza de que amar é querer o bem do outro, é fazer o possível para que o outro seja feliz, tendo a certeza de que a felicidade do outro é a minha felicidade, esse sofre sim, a perda de quem ama. Mas é um sofrimento que rapidamente se transforma, de uma saudade dolorosa, numa saudade gostosa. Iremos nos lembrar sim, da pessoa amada, mas nem por isso deixando de usufruir plenamente a nossa própria vida que continua, pois para sermos felizes é que fomos criados, e existimos.

Nesse tempo de quaresma, em que os que creem meditam sobre o maior ato de amor da história, que foi o doar da própria vida pela vida dos outros, temos uma ótima oportunidade para refletir sobre tudo isso. Refletir sobre qual é o nosso relacionamento com a irmã morte, superando assim nossos medos e angustias, nossa dor e sofrimento pelas perdas que tivermos.’


Fonte :