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terça-feira, 9 de janeiro de 2024

A cerca de Chesterton, o princípio que te obriga a pensar duas vezes antes de mudar algo

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo publicado na BBC.com


Não destrua o que você não entende!

Isso é, em resumo, o que aconselha uma regra simples chamada Cerca de Chesterton, que sugere que você nunca deve destruir algo, mudar uma regra ou alterar uma tradição se não entender por que ela foi criada.

É, de certa forma, um apelo à humildade ao criticar e querer reformar desde políticas ou instituições, até costumes familiares, protocolos de trabalho ou linhas de código em programas de computador.

Essa teoria ressalta que, sem compreender totalmente o que está acontecendo, as consequências de uma ação precipitada podem acabar sendo muito piores do que aquilo que se pretende reparar.

Aquela coisa da cerca pode parecer estranha, mas é chamada assim pela forma como a ideia foi ilustrada por quem a tornou famosa : o escritor e filósofo inglês Gilbert Keith Chesterton (1874–1936).

Chesterton era um ‘gigante obeso’, como Jorge Luis Borges o descreveu no prólogo do conto O Olho de Apolo no livro A Biblioteca de Babel.

O escritor argentino afirmou ser ‘um homem gentil e afável’ que ‘poderia ter sido Kafka ou Poe, mas escolheu corajosamente a felicidade ou fingiu tê-la encontrado’.

Ele descreveu os escritos críticos de Chesterton como encantadores e penetrantes e disse que seus primeiros romances combinavam ‘o místico com o fantástico’.

Mas as obras que causaram maior impacto foram cerca de 50 contos sobre um detetive que era um padre aparentemente ingênuo, mas psicologicamente perspicaz, chamado Padre Brown.

‘A literatura é uma das formas de felicidade; talvez nenhum escritor tenha me proporcionado tantas horas felizes quanto Chesterton’, escreveu Borges.

Quando não estava escrevendo ou, mais tarde, dando entrevistas para a BBC, ele adorava debater, muitas vezes se envolvendo em disputas públicas amistosas ​​com intelectuais como George Bernard Shaw, H. G. Wells e Bertrand Russell.

Ou brincava com eles.

Certa vez, ele disse a Shaw : ‘Ao ver você, qualquer um pensaria que uma fome atingiu a Inglaterra’, ao que Shaw respondeu : ‘Ao ver você, qualquer um pensaria que você causou a fome.’

Mas algo que ele levava muito a sério era a religião.

‘Da fé anglicana ele passou para a fé católica, que, segundo ele, se baseia no bom senso’, disse Borges.

‘Ele argumentou que a estranheza dessa fé se ajusta à estranheza do universo, assim como o formato estranho de uma chave se ajusta exatamente ao formato estranho da fechadura.’

Precisamente e curiosamente isso foi extraído de um livro intitulado The Matter: Why I am Catholic (1929), em português, algo como ‘O assunto: por que sou católico’, no qual ele falou sobre a cerca que leva seu nome.

Ele declarou que ‘em matéria de reformar as coisas, em vez de deformá-las, existe um princípio claro e simples’.

Ele sugeriu imaginar ‘por uma questão de simplicidade, uma cerca ou portão erguido ao longo de um caminho’.

‘O tipo mais moderno de construtor chega alegremente e diz : 'Não vejo utilidade nisso; vamos derrubá-lo.'‘

‘Ao que o tipo mais inteligente de construtor faria bem em responder : 'Se você não vê utilidade nisso, certamente não vou deixar você eliminá-lo. Vá embora e pense. Então, quando você puder voltar e me dizer que você vê utilidade nisso, posso permitir que você faça isso.’

A ideia é que somente quando você souber qual era o propósito de algo, você poderá decidir se ainda é necessário, se deve ser modificado ou simplesmente omitido.

Segundo Chesterton, esse princípio se baseia no senso comum mais básico.

‘A cerca não cresceu ali. Não foi criada por sonâmbulos que a construíram durante o sono.’

‘Alguém tinha algum motivo para pensar que isso seria bom para alguém. E até sabermos qual foi o motivo, não podemos realmente julgar se foi razoável.’

E alertou que, se não tivermos certeza, ‘é muito provável que percamos todo um aspecto da questão’.

A cerca, por exemplo, mesmo que fosse em mau estado e pequena, talvez separasse as vacas das ovelhas, imaginou o filósofo Jonny Thomson em Big Think.

As ovelhas, ao comerem, arrancam a grama quase pela raiz, enquanto as vacas precisam de grama alta para comer com suas línguas preênseis. Pouco depois de remover a cerca, as vacas estariam desnutridas e com fome.

De refrescos a pardais

Ora, embora Chesterton tenha defendido a análise de decisões que implicavam mudança desta forma porque tendia a ser conservador, o princípio continua ecoando em vários campos, do pessoal ao político.

Ao tentar mudar maus hábitos, por exemplo, muitas vezes deixamos de levar em conta que eles não aparecem do nada : geralmente evoluem para satisfazer uma necessidade não atendida.

Se esse aspecto não for levado em consideração, mesmo que um hábito seja eliminado, ele poderá ser substituído por outro mais prejudicial.

No nível empresarial, em um post considerado clássico, o empreendedor Steve Blank deu um exemplo que viu em startups quando elas crescem e contratam diretores financeiros.

Estes, na tentativa de reduzir custos – e se exibir – muitas vezes decidem acabar com detalhes da empresa para os funcionários, como refrigerantes e salgadinhos gratuitos, por considerá-los um gasto inútil.

Na experiência de Blank, o resultado é sempre o mesmo : para os funcionários que ajudaram a empresa a crescer, mesmo que tenham condições de pagar pelos refrigerantes, parece um sinal de mudança na cultura da empresa.

E isso pode levar as pessoas mais talentosas a abandonarem porque, de repente, tudo parece muito corporativo, não é mais como antes.

Como estes, muitos exemplos, incluindo um tremendamente trágico : o extermínio de pardais na China, parte da Campanha das Quatro Pragas do projeto Grande Salto Adiante de Mao Zedong (1958 a 1962).

Os pardais eram suspeitos de roubar grãos dos campos, por isso milhões de chineses fizeram tudo o que podiam para eliminá-los, com sucesso : a população de pardais foi levada à beira da extinção.

O surto de gafanhotos, por outro lado, sem pardais para controlá-los, disparou e se tornou um dos gatilhos da Grande Fome Chinesa, um dos maiores desastres provocados pelo homem na história.

Vista dessa forma, a cerca de Chesterton parece um mecanismo para evitar a lei das consequências não intencionais.

O princípio invoca o entusiasmo excessivo dos reformadores e procura contê-lo.

Mas pode ser usado para o oposto.

As reformas, grandes e pequenas, tendem sempre a ter uma força que trabalha contra elas : a resistência à mudança.

Uma organização, por exemplo, pode facilmente se tornar algo desnecessariamente complexo que já não se adequa à sua finalidade. Mas quanto mais tempo sobreviver, menor será a probabilidade de ser reformada ou abolida.

Nestes casos, é aconselhável se comportar como aquele ‘construtor inteligente’, e assim ter argumentos sólidos para demonstrar exatamente porque se tornou inútil.

Mas às vezes, não importa o quanto você queira, você não pode se dar ao luxo de examinar todas as decisões. Portanto, talvez valha mais a pena invocar Alexandre, o Grande, do que Chesterton.

Segundo a lenda, quando Alexandre conquistou a Frígia foi desafiado a desatar o nó górdio, tão complicado que um oráculo declarou que quem conseguisse desfazê-lo estava destinado a governar toda a Ásia.

Alexandre tentou por um tempo até cansar. Ele declarou que não importava como conseguiria isso, então ele desembainhou a espada e cortou de uma só vez.

O importante é saber se você está olhando para uma cerca ou para um nó.

Às vezes sim, às vezes não

Existem certas estratégias que podem ser usadas como guias nesses casos.

Aqueles que trabalham com computação, como na estratégia de Alexandre, o Grande, às vezes usam o que chamam de Teste do Grito, que aplicam a produtos, serviços ou capacidades que estão ativos, mas ninguém usa.

É simples : retire e espere para ver se alguém grita. Se isso acontecer, reinstale.

É um caso que poderia se enquadrar nas decisões do tipo 2 descritas pelo fundador da Amazon, Jeff Bezos, em uma carta aos acionistas que muitos usam como referência para discernir entre as opções de fechamento ou de nó.

Só que ele falou sobre portas.

Só existe um caminho : depois de atravessá-la, ela fecha nas suas costas e não é aberta novamente.

Outra é de mão dupla : você pode entrar e sair por ela.

‘Algumas decisões têm consequências e são irreversíveis ou quase irreversíveis (portas de sentido único) e essas decisões devem ser tomadas de forma metódica, cuidadosa e lenta, com grande deliberação e consulta.’

‘Se você passar e não gostar do que vê do outro lado, não conseguirá voltar para onde estava antes. Podemos chamar essas decisões de Tipo 1.’

‘Mas com a maioria das decisões não é assim : são mutáveis, reversíveis, são portas de mão dupla.’

‘Se você tomou uma decisão abaixo do ideal, não precisa conviver com as consequências por tanto tempo. Você pode abrir a porta novamente e voltar.’

‘As decisões do tipo 2 podem e devem ser tomadas rapidamente por indivíduos ou pequenos grupos com bom senso.’

Você vai fazer a reforma ou buscar solucionar um problema facilmente reversível?

Então você poderia fazer alterações rapidamente com informações imperfeitas e ver o que acontece.

Se for irreversível, é aconselhável recolher informação, mesmo que o processo seja lento e implique custos.

Chesterton teria concordado com esse tipo de cuidado antes da decisão.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c902we095v5o

domingo, 8 de agosto de 2021

Tempo de decidir, momento decisivo e complexo. Orar a própria situação de eleição - Parte 2

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo d0 Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ


‘Nestes tempos sombrios, somos assolados por medos de todo tipo. Se não bastasse o pavor de sermos contaminados ou de contaminar nossos entes queridos, experimentamos também o medo de olhar para dentro de nós mesmos, pois somos conscientes que nem sempre temos vivido essa situação de modo conforme ao Evangelho. Mas é preciso rezar (e muito!) durante o tempo da pandemia. Vamos dar mais um passo esta semana, lembrando, no entanto, que cada passo implica o anterior, que continua sendo válido.

Segundo passo – Atentos aos desejos profundos que nos movem

Para sermos pessoas de discernimento precisamos ter a paixão de fazer em tudo a vontade de Deus, como Jesus. Paixão pelo Reino, pela verdade, pela justiça, pela paz. Ter um grande desejo de conhecer sempre mais e melhor o que Deus quer de nós, aqui e agora1. Ao rezar sobre o que fazer nesse tempo de indecisões e inseguranças, Inácio nos orienta a considerarmos que força ocupa em nossa vida essa Paixão pelo Reino!

Diante de cada possibilidade que se apresenta a nós, importa muito considerar os motivos interiores que nos movem a tomar esta ou aquela decisão. Normalmente somos movidos por uma mistura de motivos, alguns deles talvez nos atraiam mais. A presença de motivos mistos não nos impede de sermos conscientemente movidos pelo Amor de Deus, mas é preciso dirigir nossos pensamentos e sentimentos para Deus com todo o nosso coração, alma e mente, com toda a nossa força 2. O Amor de Deus é que deve ser o motivo principal que nos move.

Rezar nossos desejos profundos, que movem nossa decisão : ‘O Reino de Deus é semelhante a um tesouro escondido em um campo que um homem encontra’ (Mt 13,44). Esse tesouro está em nós. Decidir a própria vida é buscar e encontrar esse tesouro oculto, nosso desejo profundo. Essa busca de nosso tesouro exige paciência e escuta, isto é, atenção e disponibilidade aos sinais que Deus nos faz, em nós mesmos e ao nosso redor. A filósofa judia Simone Weil pressentia isto quando escrevia em seu livro Attente de Dieu3 : ‘Os bens mais preciosos não devem ser buscados, mas sim esperados, porque o homem não pode encontrá-los por seus próprios meios’.

Desejos e discernimento : Os desejos têm uma grande importância no discernimento espiritual. O jesuíta Anthony de Mello ilumina essa verdade em uma história que ele nos conta de como devemos proceder para descobrir o chamado de Deus:

O discípulo era um judeu. Ele perguntou : ‘Qual boa obra eu devo realizar que seja aceitável a Deus?’. ‘Como eu poderia saber?’, disse o Mestre. ‘A sua Bíblia diz que Abraão praticou a hospitalidade e Deus estava com ele. Elias amava rezar e Deus estava com ele. Davi governou um reino e Deus estava com ele também. Há algum modo para que eu possa encontrar o trabalho que me cabe fazer?’. ‘Sim. Procure pela mais profunda inclinação do seu coração e a siga4.

Contrariamente ao modo negativo que os desejos são vistos na tradição cristã posterior, Jesus dirigia as pessoas a irem ao encontro dos seus desejos quando elas estavam em busca de direção para suas vidas. O evangelho de João (1,30-36) descreve a experiência dos dois discípulos de João Batista que se põem a seguir a Jesus e este se volta e lhes pergunta : ‘O que vocês querem?’. ‘Rabi, onde moras?’. ‘Vinde e vede’. Santo Inácio nos seus Exercícios também segue essa visão positiva dos desejos na vida espiritual. Ele instrui os exercitantes a iniciarem cada período de oração comunicando os seus desejos que enchem o seu coração (EE 48). ‘Pedir o que quero e desejo’ é essencial à oração inaciana. Inácio articula uma espiritualidade do desejo5.

Selecionando nossos desejos na oração : Quando olhamos para nossos corações, deparamo-nos com uma mescla de desejos, sonhos, esperanças, necessidades, temores e desejos. Alguns dos nossos desejos são compatíveis com outros; alguns são mutuamente excludentes. Somos conscientes também que os desejos podem afetar nossa vida seja positiva seja negativamente. Alguns desejos podem nos escravizar e dissipar nossas energias; outros têm a capacidade de gerar poder e energizar nossas vidas. Eis porque é muito importante rezar sobre os nossos desejos : A oração é o lugar onde nós selecionamos os desejos que nós escolhemos seguir6. O processo envolve identificá-los, avaliá-los e selecioná-los.

Discernir o desejo é separar o que há nele de ambição e o que há de comunhão : do desejar coisas ao viver a comunhão de desejos entre pessoas. Separar as duas forças do desejo humano : discernir o ‘Desejo’ nos desejos dispersos, descobrir que somos ‘desejáveis’ para os demais e que somo ricos para bendizer. O progresso no amor e no desejo é um despojamento de tudo e de todos. Temos que tender a uma libertação do coração, que vai se abrindo ao amor e à graça de um novo encontro. Trata-se de despertar uma atenção aguda às atrações do coração, à emergência do Desejo7.

Seguir a Jesus no ‘mais’ do desejo : A pessoa que se põe em contato com os relatos do evangelho é chamada a se identificar com as figuras evangélicas em sua forma de experimentar a proximidade de Jesus, no seu convite a viver uma vida diferente da que vivia até então, nas vicissitudes que esse caminho de seguimento comporta; é chamada, em suma, a converter estas experiências concretas em experiências-chave para sua própria vida. Desde modo, viver o seguimento de Jesus se converte em uma categoria evangélica da vocação cristã e reflexa, com as estruturas dinâmicas próprias desta figura, o processo de aventura de reabilitação radical do desejo, que se converte em processo de amadurecimento e confirmação da eleição de vida8.

Jesus, o mediador do Desejo de Deus, pelo fascínio e atração que suscita, seduz e adestra o desejo a ir mais longe, mais além dos desejos cultivados pelo mundo, mais além inclusive do que o próprio sujeito desejante se suponha capaz de alcançar, nem sequer de poder imaginar : o ‘mais’ do desejo. A missão de Jesus é iniciar-nos no desejo vindo de Deus, porque não conhecemos o dom de Deus, e a este nem a carne nem o sangue podem revelar, mas só Deus mesmo, no rosto e no amor de seu Amado. Jesus é o Mestre do desejo e seu Desejo é o original, onde se podem mirar todos os desejos realmente humanos.’

 

Notas :

(1) Luís González-Quevedo, Discernimento Espiritual – As Regras Inacianas, São Paulo: Loyola 2013,12.

(2) Cf. Tad Dunne, Spiritual Exercises for Today, 154.

(3) Simone Weil, Attente de Dieu, Paris: La Colombe 1950, 120.

(4) Anthony de Mello, One Minute Wisdom, New York: Doubleday and Company 1975, 15.

(5) Wilkie Au and Noreen C. Au, The Discerning Heart. Exploring the Christian Path, New York/ Mahwah, N.J. : Paulist Press 2006, 133.

(6) Wilkie Au and Noreen C. Au, The Discerning Heart, 138.

(7) Xavier Quinzá Lleó, Ordenar el caos interior. Una propuesta espiritual. Santander- Bilbao: Mensajero – Sal Terrae 2011, 94.

 (8) Xavier Quinzá Lleó, Ordenar el caos interior, 104-105.

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1532032/2021/08/tempo-de-decidir-momento-decisivo-e-complexo-orar-a-propria-situacao-de-eleicao-segundo-passo/

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Tempo de decidir, momento decisivo e complexo. Orar a própria situação de eleição - Parte 1

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo d0 Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ


Com alívio e esperança, acompanhamos o avanço da vacinação que abre uma nova perspectiva na realidade dura da pandemia. Mas os seus sintomas seguem atuantes. Por mais que tentemos afastar os pensamentos negativos, a verdade é que seguimos afetados pela insegurança e confusão com relação ao que devemos fazer, como prosseguir com nossas atividades nesta situação.

Certamente nesses tempos a oração aparece como muito importante, fundamental, mas é preciso confessar que não é fácil rezar em meio a tanta dor e sofrimento.  Continuamente somos invadidos pela questão insidiosa do que Deus quer com tudo isso, porque permite tantas mortes, e como nós, comunidades de fé, temos que agir (reagir).

Vem em nosso socorro a espiritualidade inaciana, na sua busca ininterrupta de encontrar a Vontade divina na realidade da vida e poder aderir a ela com todo nosso ser (1)Inácio foi um buscador incansável dessa vontade. Nos textos que seguem, vamos refletir como podemos rezar e procurar a vontade do Senhor em meio à pandemia.

Tempo de decidir, momento decisivo e complexo

Algumas considerações me parecem necessárias ao adentrar nesse tema. Inicialmente, precisamos experimentar que nossa oração tem que ser vivida como busca e resposta, que vão teimosamente se sucedendo uma à outra. A atitude de base para poder avançar é ‘escutar’. A segunda etapa dos Exercícios Espirituais, que se centra na busca do que Deus quer para mim, inaugura-se com o chamado do Rei Eterno (EE 91-100), que já nos abria à consideração de um chamamento feito vida (2). A graça ali pedida era uma graça de escuta (‘não sermos surdos ao seu chamado’) em vista de uma decisão (‘mas prontos e diligentes para cumprir sua vontade’) (cf. EE 91).

Inácio nos alerta que não se trata de modo algum de uma mera passividade, esperando que a vontade de Deus caia pronta do alto. Ele afirma que será preciso ‘agir contra nossa própria sensualidade e amor carnal e mundano’ (EE 97). Em linguagem atual : que não será fácil, pois nossas resistências se farão sentir!

Temos experimentado nesta pandemia que os dias dedicados a este discernimento sobre qual é a Vontade de Deus para nós podem se prolongar em um processo que pode ser penoso e difícil, até que surja com suficiente claridade no horizonte o que Deus quer de nós. A oração durante esse período será intensa, e não caberá a nós a controlarmos nem a prever. Tomar decisões nessa situação é complexo. Pois decidir implica, inicialmente, querer resolver definitivamente a questão. Ora, encontramo-nos a miúdo em uma zona de incerteza e névoa, uma zona de confusão, e temos medo de assumir uma postura. Mergulhados em um confuso magma de desejos dispersos, sonhos, projetos não concretizados, qualquer decisão que tomemos não nos aparece como conclusiva, capaz de pôr um ponto final na questão. E hesitamos.

PRIMEIRO PASSO : Orar a própria situação e as alternativas que se nos apresentam

O que tomar como matéria para nossa oração? Creio que é preciso rezar a própria vida, como ela se apresenta e se faz sentir. A aproximação à realidade, quanto mais cheia de afeto for, maior efeito trará. Que favoreça um diálogo íntimo com o Senhor e culmine em uma resposta apaixonada de amor. Que nos deixemos atingir, tocar (Inácio usaria ‘afetar’) pelo que rezamos. Que nossa oração nos desinstale, amplie nossos horizontes e nos motive a poder nos comprometermos com Deus e com os demais, principalmente os mais necessitados (3).

Para rezar esse momento tão crucial, ajuda considerar três coisas : nossa herança biológica-humana-psicológica-cultural, que representa aquilo que recebemos e que não podemos mudar;  em seguida, considerar a área da minha vida em que eu posso exercer alguma escolha, onde as coisas acontecem a mim e eu posso responder a elas, aceitando-as ou rejeitando-as; finalmente, é preciso mover-me na direção do centro do meu ser, onde eu posso estar inteiramente na presença de Deus, onde eu experimento verdadeiramente a presença Dele. Nessa área eu não posso prever nada. É aqui onde se revela o poder da oração. É o risco da jornada interior, ao qual somos chamados a nos abrir (4).

Portanto, importa tomar consciência de que forma estamos sendo tocados por Deus. Isso pode se dar em uma variedade de modos : através de uma intensa comunhão com a natureza, em uma relação humana, em um momento de profundo ‘insight’ que parece provir de além de nós mesmos ou talvez em uma claridade súbita que nos mostra o caminho a seguir em uma situação particular. Quando esses momentos acontecem, podemos dizer que não somente Deus nos ‘tocou’, mas que algo ‘fez raiz’ na nossa experiência vivida. O Deus transcendente que nos tocou irá despertar o Deus imanente que jaz em nosso interior, trazendo-o à vida.

Esse é o efeito da oração em nós : a oração nos conduz ao centro do nosso ser. A oração não é somente um meio de nos sustentar através da nossa jornada linear (embora ela faça isso também), mas é ela mesma a realidade da nossa jornada. Na oração se revela a verdadeira essência do nosso ser (5). Podemos nos aproximar sem receio do que vamos ali encontrar!

A verdadeira liberdade que temos que buscar para poder tomar uma decisão livre, conforme a Vontade divina, não é um mover-se de um ponto para outro, de um círculo para outro. A verdadeira liberdade interior nos faz movermos ao interno do nosso Eu mais profundo, na presença de Deus, permitindo a nós mergulharmos sempre mais em Deus (6).’

 

Notas :

 (1) Dom Luciano Mendes de Almeida, Servir por Amor. Trinta dias de Exercícios Espirituais. São Paulo: Loyola 2001, 95.

(2) A. M. Chércoles, La oración en los Ejercicios Espirituales de San Ignacio de Loyola, EIDES 49 (2006)18-19.

(3) Cf. Jaime Emilio González Magaña, Orar y encontrar facilmente a Dios, Apuntes Ignacianos 56 (marzo-agosto 2009) 66.

(4) Margaret Silf, Inner Compass. An invitation to Ignatian Spirituality. Chicago : Loyola Press 1999, 1-2.

(5)  Margaret Silf, Inner  Compass, 3-4.

(6) Margaret Silf, Inner Compass, 8.

  

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1530430/2021/07/tempo-de-decidir-momento-decisivo-e-complexo-orar-a-propria-situacao-de-eleicao/

quarta-feira, 14 de abril de 2021

A decisão de amar

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Fabrício Veliq,

teólogo protestante


‘A mensagem de Jesus é bem conhecida por todos que se dizem cristãos e que, em algum momento, leram os evangelhos. Ainda que muitas vezes não praticada, dificilmente alguém diria desconhecê-la. Ou seja, qualquer um que se professa cristão, ao ser perguntado sobre a mensagem de Jesus, tende a falar que esta trata do amor – ao próximo e a Deus. Desse modo, o seguimento à vontade divina envolve, necessariamente, uma atitude de amor frente ao mundo.

Contudo, mesmo sabendo e recitando isso, percebe-se que não são tantos assim os que estão dispostos a esse seguimento, o que se verifica tomando como prova nossa própria nação. Segundo o último censo, cerca de 80% dos brasileiros se nomeiam cristãos. Entretanto, somos um dos países de maior desigualdade social no mundo. Ora, tendo uma maioria declaradamente cristã, o Brasil não deveria ser um lugar onde os princípios do Reino seriam marca distintiva do viver de sua população? Sendo composto majoritariamente por seguidores e seguidoras de Jesus, não deveria ser um exemplo para o mundo de como é viver os princípios ensinados pelo Mestre?

Em outras palavras, ter uma população que se denomina majoritariamente cristã e, ao mesmo tempo, ser um país exemplo daquilo que Jesus não pregou – e, muito menos, viveria – é forte indício da distinção e separação abissal entre essa suposta profissão de fé e o seguimento real do Cristo.

Com isso em mente, pergunta-se : por que, afinal de contas o conhecimento da mensagem evangélica não se converte em prática? A meu ver, uma possível resposta está no fato de que amor não se dá pelo conhecimento dogmático ou, muito menos, doutrinal de determinada religião. Por mais que possamos, através de uma pedagogia do amor, mostrar como deve ser a sociedade desejada pela mensagem de Jesus, amar é sempre decisão que parte do indivíduo na direção do outro.

Essa decisão, por sua vez, não tem como ser forçada. Não há como obrigar alguém a amar o outro, assim como não há como amar por ele. Nesse sentido, a exigência de seguimento de Jesus demanda uma escolha que deve ser tomada por cada pessoa, individualmente.

Quando lemos nos Evangelhos o chamado de Jesus aos seus discípulos, o máximo que ele fez foi convidar : ‘Segue-me’. A decisão de abandonar tudo e seguir partiu de cada um dos que o ouviram. Em nenhum momento houve chantagem, coerção, proselitismo, vingança pelo não seguimento. Ainda que os discípulos, em certa ocasião, tenham quisto atear fogo celeste, consumindo todos aqueles que não quiseram seguir a mensagem evangélica, Jesus os repreendeu afirmando que não sabiam sobre o espírito que os animava.

Assim, o seguimento de Jesus, que é o seguimento do amor – o que implica em buscar, na medida do possível, fazer sempre o bem ao próximo –, rompe com toda lógica meramente discursiva e condena todo discurso amoroso que não se mostra em atos.

Entre dizer que devemos amar uns aos outros e, efetivamente, amarmos uns aos outros é que se encontra o desafio do seguimento de Jesus. Só se aprende a amar amando e tal decisão é sempre individual, que ninguém pode tomar por mim. Ficar no campo do discurso, obviamente, é bem mais fácil. Porém, o que Jesus ordena a seus discípulos e discípulas é amar por meio de ações concretas que visam o bem da humanidade. E isso, necessariamente, demanda uma decisão da nossa parte.

Será que estamos dispostos a ouvir esse chamado ao seguimento do Senhor hoje?’

 

Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1508906/2021/04/a-decisao-de-amar/