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sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Teologia da liturgia na 'Sacrosanctum Concilium'

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

Cristo está presente na celebração eucarística tanto no ministro quanto nas espécies eucarísticas.
*César Thiago do Carmo Alves pertence 
à Congregação Religiosa dos Filhos de Maria Imaculada (Pavonianos)


‘O Concílio Vaticano II (1962-1965) constituiu uma guinada para a vida eclesial. Entre essas guinadas está a reforma da liturgia. A constituição conciliar que trata dela é a Sacrosanctum Concilium. Foi aprovada pelos Padres Conciliares no dia 04 de dezembro de 1963. Estavam presentes 2.178 votantes. 2.158 votaram favoráveis para sua aprovação, 19 foram contrários e 1 aprovou desde que se fizesse alguma modificação. Portanto, nota-se um número expressivo de votos favoráveis para aprovação da Constitutio De sacra Liturgia. Esses dados podem ser encontrados nas atas do Concílio Vaticano II (Acta Synodalia Sacrosancti Concilii Oecumenici Vaticani II).

Fruto de todo um trabalho que a precedeu como o movimento litúrgico; a nouvelle théologie que buscou um retorno às fontes escriturísticas, patrísticas e litúrgicas; o trabalho das comissões pré-preparatória e preparatória que cuidou de apresentar inicialmente um esquema para a Constitutio De sacra Liturgia, no intuito de ser examinada pelos Padres Conciliares, a Sacrosanctum Concilium, com os seus 130 números, surge como uma resposta para a pessoa contemporânea de fé que procura celebrar o seu crer em Deus por meio da vida litúrgica (proêmio). Tendo presente isso, uma pergunta emerge : se o Concílio Vaticano II julgou importante uma reforma litúrgica para que se pudesse fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptando-a às necessidades contemporâneas, qual é o conceito teológico de liturgia que se pode extrair da Sacrosanctum Concilium? Para responder essa pergunta o primeiro elemento que se faz necessário afirmar é que a liturgia constitui um lugar teológico. Embora o teólogo Melchior Cano (1509-1560) não a tenha citado em seu tratado De locis theologicis, sabe-se, pela Tradição, que a partir dela o conhecimento teológico pode elaborar o seu saber, então cabe a afirmação de que a liturgia constitui um lugar teológico.

São os primeiros números que ajudam a responder a questão proposta. A liturgia é o lugar no qual se celebra a obra da redenção do ser humano (n.2). Essa obra teve o seu prelúdio já no Antigo Testamento, quando Deus operava maravilhas na vida do povo. Percorrendo a literatura veterotestamentária poder-se-á constatar isso. Como exemplo das maravilhas de Deus está a libertação dos israelitas da escravidão no Egito (cf. Ex 13,17-15,21). Tal obra se completou em Jesus Cristo por meio de sua paixão, morte e ressurreição. No mistério pascal toda a Trindade está envolvida. O Filho se entrega na obediência filial ao Pai ao seu projeto salvífico por meio da força do Espírito Santo. Além disso, foi do seu lado aberto na cruz que nasceu o sacramento de toda a Igreja (n.5). É esse sacramento que é celebrado. O mistério pascal é para a liturgia o seu fulcro. Numa perspectiva cristológica e eclesiológica, para a Sacrosanctum Concilium a liturgia é fruto de um mandato do Senhor. Da mesma forma que Cristo foi enviado pelo Pai, de igual modo ele enviou os apóstolos não somente para pregar o Evangelho e anunciar o mistério pascal, mas para também levarem a efeito o que anunciavam, isto é, a obra de salvação através do Sacrifício, que é a eucaristia, e dos demais sacramentos. Por conta disso a Igreja nunca deixou de se reunir para a celebração do mistério pascal (n.6). O caráter comunitário está implícito no modo de se pensar a vida litúrgica. Não se celebra isolado da comunidade. Em outras palavras, a dimensão cristológica da liturgia está na celebração do mistério pascal. Já a dimensão eclesiológica aponta que esse mistério celebrado é feito em comunidade. Mais ainda, ele cria comunidade. De tal modo que se faz valer o antigo e sempre atual axioma de Próspero de Aquitânia (†465) lex orandi-lex credendi, ou seja, aquilo que a Igreja ora é aquilo que ela crê. A Igreja se reúne para celebrar a páscoa do Senhor justamente pelo fato de querer evidenciar no que ela professa a sua fé. Isso faz a comunidade e vice-versa. Dito de outra forma, a liturgia faz a Igreja e a Igreja faz a liturgia.

A perspectiva cristológica na Constituição leva a radicalização positiva de algum ponto. Esse ponto diz respeito à presença de Cristo na liturgia.  Era pacífica para a teologia católica dos sacramentos a afirmação da presença do Senhor no pão e no vinho eucaristizados. Sobretudo com o Concílio de Trento (1545-1563) que buscou reforçar essa ideia por conta dos Reformadores, não se pairava nenhuma sombra de dúvida a respeito disso. No entanto, se focou tão somente nesse aspecto não dando espaço significativo para se pensar a presença de Cristo em toda a ação litúrgica. Desse modo, a Sacrosanctum Concilium vem como que dar uma maior visibilidade para esse ponto que foi um tanto quanto negligenciado no decorrer dos séculos. A Constituição sobre a liturgia do Vaticano II reconhece que Cristo está presente na celebração eucarística tanto na pessoa do ministro quanto nas espécies eucarísticas. Está presente nos sacramentos, na Palavra e na Igreja que se reúne para orar (n.7). Essa guinada revela a posição global em que Cristo ocupa na ação litúrgica. Não se restringe a tão somente um aspecto, como o das espécies do pão e do vinho. A atenção da assembleia orante é convidada a se voltar para o todo e perceber que cada parte da liturgia tem sua importância e dignidade que lhe é própria. Essa hermenêutica proposta pela Constituição corrobora com a tese de que a liturgia é a celebração do mistério pascal pelo fato de que o Senhor está presente realmente em toda ela. Portanto, ao se falar de presença real de Cristo não se pode cair no risco do reducionismo. Com esse número 7 a Sacrosanctum Concilium deixa, de certa forma, um alerta para se perceber uma dinâmica holística da presença.

Celebrar o mistério pascal é fonte de vida das comunidades eclesiais. Fazer memória do seu Senhor é algo vital e favorece um itinerário mistagógico. A Sacrosanctum Concilium vem ao encontro dessas comunidades. Nesse sentido, sua recepção por parte da Igreja se torna elemento indispensável para que se possa nutrir a vida de fé dos fiéis. A riqueza teológica que a Constituição traz a respeito da liturgia não pode ser engavetada. Se assumida e traduzida no cotidiano da vida das comunidades, mediante a criatividade própria do Espírito, tende a fortalecer nos fiéis a experiência de Deus, o caminho da solidariedade com os sofredores e a comunhão com os irmãos, haja vista que a páscoa de Jesus revela esses três aspectos. Em tempos em que a liturgia está sendo vista por certos grupos eclesiais como algo mecânico e/ou voltado tão somente para o cumprimento das rubricas, urge a necessidade de revistar a Sacrosanctum Concilium e (re)descobrir a beleza apresentada pela Constituição no que diz respeito à vida litúrgica. Tal (re)descoberta, indubitavelmente, colaborará para uma maior vivência daquilo que é o núcleo da fé cristã : o mistério pascal do Senhor. ‘Fazei isto em memória de mim’ (Lc 22,19).’


Fonte :


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O Movimento Litúrgico e os efeitos do Concílio Vaticano II na Liturgia (Capítulo 3 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



4. OS EFEITOS DO CONCÍLIO VATICANO II
NA LITURGIA DA IGREJA CATÓLICA

W  25 de dezembro de 1961 convocação deste Concílio, o XXI Concílio Ecumênico, pelo papa João XXIII

W  11 de outubro de 1962 início em ritmo extraordinário

João XXIII
W  8 de dezembro de 1965 término sob o papado de Paulo VI  

Paulo VI

A Reforma Litúrgica (de 1963 a 1990 )

            A reforma litúrgica, decorrente do movimento litúrgico, foi o resultado mais notório deste Concílio.

            Com a promulgação da constituição ‘Sacrosanctum concilium’, que reproduz e am­plia a ‘Mediator Dei’, exatamente 400 anos após o fim do Concílio de Trento (04.12.1563 – 04.12.1963), testemunhamos um colegiado ocupando-se do tópico liturgia pela primeira vez na caminhada histórica da Igreja perante uma assembléia ecumênica.

            O propósito do Concílio Vaticano II era:

W  ‘Fomentar a vida cristã entre os fiéis’
W  ‘Adaptar melhor às necessidades do nosso tempo as instituições susceptíveis de mu­dança’
W  ‘Promover tudo o que pode ajudar à união de todos os crentes em Cristo’ e
W  ‘Fortalecer o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja

            E a finalidade da reforma era avivar a fé, proporcionar a justa medida entre tradição e adequações necessárias na liturgia – sem limitar-se a ritos, cerimônias e textos – e incen­tivar a participação ativa do fiel leigo. Sua importância foi inexorável para distinguirmos a liturgia como a luz primordial do ser cristão e o povo de Deus como o indivíduo da ação litúrgica. Impulsionou, ainda, a centralização da Palavra de Deus na liturgia e o reconheci­mento das Igrejas locais.

            Embora a reforma tenha sido relativamente bem aceita na Igreja de Rito Romano, ela não foi de todo compreendida, expondo atitudes equivocadas e contraditórias.

            Vale destacar que a reforma litúrgica não ocorreu sozinha, apartada de outros gru­pos. Na verdade, a atuação foi de maneira integrada ao movimento bíblico, ao ecumênico, às frentes missionárias, à pesquisa das várias religiões e à averiguação do elo entre a religião e as necessidades humanas antes e após o Concílio. Acima de tudo, a reforma litúrgica esta­beleceu um legado vigoroso :

W  Ampliou a vivência cristã ao incentivar a participação deliberada e ativa do fiel na litur­gia
W  Aumentou o sentido comunitário da vida litúrgica
W  Sancionou o uso da língua vernácula
W  Prestigiou o enriquecimento doutrinal e catequético
W  Incentivou a leitura bíblica
W  Adequou as instituições eclesiais ao contemporâneo
W  Estimulou o ecumenismo pela união dos cristãos
W  Recomendou a participação de todos na missão da Igreja
W  Simplificou e permitiu a transparência na brevidade dos ritos

            Contudo, passados os primeiros anos da promulgação conciliar, era nítido que a litur­gia atravessava momentos difíceis. Da exaltação inicial, ávidos por granjear resultados apressadamente, migrou-se para a desilusão.

            Alguns problemas não estavam previstos com clareza no Concílio. Por exemplo : as atenções estiveram focadas na liturgia em si e não no sacerdote; priorizaram a renovação de livros litúrgicos e não a reciclagem das assembléias celebrantes; assim como o problema da inculturação ou adaptação da liturgia às diversas culturas.

            Diferentes fases permearam estes anos:

Fase do Entusiasmo

            A década de 60, num geral, foi assinalada pela expectativa de aplicação da reforma :
ü  liturgia elaborada na língua pátria (ou vernácula)
ü  maior relevância às Conferências Episcopais
ü  reabilitação da concelebração e da comunhão sob as duas espécies
ü  sintetização do Ofício Divino
ü  impulso às frentes missionárias
ü  ênfase no mistério pascal, isto é, na paixão, morte, ressurreição e ascensão de Cristo
ü  fiel participativo
ü  exaltação do culto

Fase do Desencanto

            Na década de 70, o desapontamento era reflexo de uma renovação de cunho raso e que, talvez, não estivesse preparada para imersões mais profundas. A partir daí, a preocu­pação pastoral recorreu à evangelização ao entender que a liturgia não solucionava todas as questões de base :
ü  surgem novos livros litúrgicos
ü  a consolidação das celebrações
ü  a abertura da Igreja para a dimensão social reflete-se na liturgia
ü  propagação veloz da secularização na sociedade
ü  a deficiente formação litúrgica nos seminários
ü  a insuficiente reciclagem oferecida ao clero e
ü  sacerdotes em conflito 

Fase da Recuperação

            A reorientação litúrgica, na década de 80, reacendeu pesquisas e proporciou um novo estilo de celebração:
ü  pesquisa sobre a situação da vida litúrgica no Brasil (1983) e ampla avaliação das Dire­trizes Gerais da Ação Pastoral da CNBB (1987)
ü  a reciprocidade celebração-evangelização tornou-se mais dinâmica e conciliatória 

Fase da Pastorial Litúrgica

            Na década de 90, notabiliza-se a pastoral litúrgica e um renovado empenho pela Pala­vra de Deus:
ü  edição de novos Lecionários
ü  reconhecimento e uma certa apreciação da Liturgia das Horas e
ü  a prática do silêncio na oração


A Espiritualidade Litúrgica (de 1990 em diante)
           
      Espiritualidade é ‘a vida do cristão movida pelo Espírito’ e Espiritualidade litúr­gicafaz da liturgia (Eucaristia, Sacramentos e Ofício Divino) o grande referen­cial da vida do cristão’, conforme Dom Estevão Bettencourt, do mosteiro do Rio de Ja­neiro. A espiritualidade litúrgica não elimina ‘as respostas pessoais do cristão à graça de Deus ou às devoções particulares’. Porém, inexiste para muitos fiéis pela falta de uma formação ou catequese adequada. 
Dom Estevão Bettencourt
       Características :

ü  Sentir (pulsar) com a Igreja
o   O lema ‘Sentire cum Ecclesia’, isto é, pensar e viver com a Igreja, divulgado no princípio da restauração litúrgica, conscientiza o fiel de que, para ser Igreja, tem que se alimentar da Palavra de Deus.

ü  A leitura eclesial da Bíblia
o   Para entende-la é preciso interpretá-la sob o impulso do Espírito que a ins­pirou’ (Cons. Dei Verbum nr. 12).

ü  Formação doutrinária
o   Através da Bíblia e da tradição oral, a liturgia e a fé relacionam-se de acordo com a máxima dos antigos: lex orandi lex credendi (‘o conteúdo da oração deve condizer ao conteúdo da fé’)

ü  A Eucaristia e os sacramentos
o   Ser cristão é pertencer a um Corpo cuja Cabeça é Cristo e o tronco é Jesus. O embasamento no Corpo ou no tronco se faz primeiro pelo Batismo, é confirmado pela Crisma e nutrido periodicamente pela Eucaristia.

ü  Sacramentais 
o   São os ritos (bênçãos) ou objetos (rosário, crucifixos, etc...) pelos quais Deus difunde suas graças. Por exemplo : a Liturgia das Horas, ou Ofício Divino, expressa a oração da Igreja para as várias fases do dia e a santifica­ção do tempo.
ü  As devoções ou a piedade particular
o   Piedade objetiva (litúrgica) e piedade subjetiva (particular) não se opõem; mas a Igreja interpela para que o cristão tenha um elo doutrinário entre a liturgia e a oração individual.

ü  Sacerdócio comum dos fiéis
o   Segundo a doutrina da Igreja, todos os batizados participam do sacerdócio de Cristo, sem confundir com o sacerdócio ministerial, que é um sacra­mento da Ordem.

ü  Arte Litúrgica
o   Sendo um dos modos de representar o inefável ou invisível, está vinculada à liturgia, porém, a arte na Igreja ‘é um meio e não um fim e que o artista entenda o porquê e o para quê de cada objeto de arte, no contexto do templo sagrado’. 


5.   CONCLUSÃO

Da liturgia para a vida cotidiana

O Vaticano II sumarizou todas as ânsias do movimento litúrgico, ultrapassando precon­ceitos sem fundamento e o fiel transcendeu da liturgia para a vida, propagando no mundo essa transformação, que é obra do Espírito Santo.

A liturgia é o meio que Deus nos concede para falar com Ele, por isto, ela não se es­gota na celebração, mas existe um antes e um depois que devem ser cuidados pondera­damente : ‘a celebração litúrgica incorpora-nos na igreja de hoje e projeta-nos para o amanhã, num progresso contínuo, porque o Espírito que ressuscitou Jesus Cristo den­tre os mortos está presente na Igreja e acompanha-a através dos séculos’.



segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O Movimento Litúrgico e os efeitos do Concílio Vaticano II na Liturgia (Capítulo 2 de 3)

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)



                 3. O Movimento Litúrgico

            Do ponto de vista histórico-litúrgico, tivemos os grandes períodos :

W  de 1909 a 1963do movimento litúrgico à reforma litúrgica
W  de 1963 a 1990 – da reforma litúrgica à renovação
W  de 1990 em dianteda renovação à espiritualidade litúrgica

            O movimento litúrgico foi um processo de retomada das virtudes cristãs que impulsio­nou a Igreja e estimulou o leigo a compreender e a partilhar com mais ênfase da vida litúrgica em comunidade, abrangendo etapas distintas :

W  de 1909 a 1914
W  de 1914 a 1918 e de 1939 a 1943 - tempo das Grandes Guerras
W  de 1943 a 1963

Para cada etapa, destacaremos uma personalidade pioneira e sua contribuição.


A primeira etapa (de 1909 a 1914 )

Dom Lambert Beauduin
            Dom Lambert Beauduin (1873-1960), sacerdote que devotou parte de sua vida ao mundo operário na pastoral litúrgica das paróquias, ansiava o retorno consciente e participativo do cristão na liturgia e que o mesmo compreendesse os mistérios celebrados no altar.

            Tempos depois, entrou para o mosteiro de Mont-César, na Bélgica, tornando-se monge beneditino. Em 1909, na cidade de Malines, difundiu o movimento litúrgico no Congresso Nacional de Obras Católicas. Tal episódio recomendava a renovação da liturgia como a oração da Igreja (alimento principal da vida dos fiéis), do culto autêntico e que a liturgia se consistisse da verdadeira religiosidade da Igreja.

            Nos primeiros tempos, emergiu uma profusão de artefatos de grande excelência : temporadas de formação, cursos, revistas, sinalizando que a liturgia estava muito além das ações protocolares.

            Quanto ao leigo, também era necessário reeducá-lo pois, ao perder o sentido da celebração litúrgica, perdera também o sentido do sagrado.

            Ao publicar ‘A piedade da Igreja’ (1914) para oferecer ao movimento bases teológicas mais sólidas, era evidente o predomínio do espírito do Motu Proprio de Pio X.

            Na sua visão teológica, Beauduin propôs : ‘o missal traduzido para os fiéis, a reza das vésperas e completas, a revalorização da missa paroquial principal e das antigas tra­dições litúrgicas nas famílias’.

            Na visão eclesiológica, recebeu influência de seu professor de Dogmática, Dom Columba Marmion. O então abade de Maredsous, dera uma orientação bíblica à sua teolo­gia eclesiológica (baseando-se nas epístolas de São Paulo, nos ensinamentos dos concílios e nos Santos Padres) e uma orientação cristológica à sua espiritualidade. Beauduin adotou quase o mesmo enfoque.

            Posteriormente, a Lumen gentium concederá à Igreja uma eclesiologia arraigada na tradição, na Escritura e nos Santos Padres.   

            As encíclicas de Pio XII valeram-se de seu trabalho : a concepção de Igreja na obra divina da redenção na ‘Mediator Dei’ e o conceito de Igreja como corpo místico, o Cristo glorioso e cabeça do corpo místico, na ‘Mystici corporis’.

            Por último, na visão litúrgica, Beauduin baseou-se na pastoral litúrgica. Para ele, o aspecto comunitário era essencial. Considerava a liturgia como educadora da fé, da vida e do culto da Igreja, distinguindo a diferença entre sacerdócio ministerial e sacerdócio co­mum : ‘em seu ministério, o sacerdote oferece o sacrifício como representante de Cristo, cabeça da Igreja, enquanto o cristão comum apresenta as oferendas como membro ativo do corpo místico’.

            No tocante à eficácia da celebração litúrgica, Dom Odo Casel dará prosseguimento à intuição da força salvífica da Páscoa na partilha em comunidade.          

            Graças à criatividade de Beauduin, ao retornar às origens para obter os componentes basilares da renovação litúrgica, alcançamos a visão teológica da liturgia. E esta será uma das linhas adotadas pelo Concílio Vaticano II.

            Contudo, o movimento litúrgico era bem aceito desde que, limitado aos mosteiros, principalmente naqueles que receberam a influência renovadora de Dom Guéranger. O pa­norama deixou de ser tranquilo quando o movimento apresentou-se como ‘renovação espi­ritual’.

            Após a publicação de ‘A Litúrgia Católica’ (1913), de Dom Maurice Festugière, do mosteiro de Maredsous, numa revista francesa, deflagrou-se o conflito : nessa matéria, o  monge beneditino criticava duramente os movimentos espirituais que ao longo do tempo  haviam se afastado da liturgia.

             O jesuíta Navatel contestou dizendo que a liturgia nada mais era do que a ‘parte ceri­monial e decorativa do culto católico’. Para ele, uma vez aceito no plano da renovação espiritual, essas mudanças colocariam em crise posicionamentos de espiritualidade pre-estabelecidos.

            Tal burburinho alvoroçou quem temia as inovações, enquanto os fomentadores dos novos rumos insistiam que não era uma questão de ‘beneditismo’ e, sim, de algo muito maior : ‘restaurar o primado da graça de Cristo’.
  

A segunda etapa (de 1914 a 1918 e de 1939 a 1943 )

Dom Odo Casel
              O mosteiro de Maria Laach (Alemanha) se destacou em inúmeras frentes, dentre elas na doutrina elaborada sobre o mistério do culto cristão, capitaneada por Dom Odo Casel (1886-1948).

            Na década de 1930, esse admirável monge beneditino impressionou-se pela designa­ção da ação litúrgica nas fontes antigas como ‘mysterium-sacramentum’. A partir daí, concedeu-lhe um prestígio que perdura até hoje.

A liturgia da Igreja, como ‘celebração sintética de toda a história da salvação’, era a essência de sua reflexão e assegurava a presença consagratória do ato da morte e ressurrei­ção de Cristo, não no sentido físico, mas sacramental, na missa e em outros momentos do culto cristão. Esse princípio facilitou a compreensão da estrutura unitária e compacta do sistema sacramental. 
Embora tenha sido muito contestada por delinear um paralelo entre o paganismo e os mistérios cristãos, Casel concluiu uma idéia bastante original, baseando-se nos Santos Pa­dres, na escolástica e no Concílio de Trento :
ü  a realidade de um evento primordial de redenção
o   se a liturgia era totalmente destinada à história da salvação, que é o mistério de Cristo, a memória litúrgica cristã seria o mistério pascal ( morte e ressur­reição ) de Cristo, o fato que centraliza a vida do Verbo encarnado 
ü  que este evento torna-se presente num rito
o   o culto cristão atualizaria a obra real da redenção de acordo com os ritos e sím­bolos da liturgia, prolongando-se na Igreja para santifica-la e torna-la acessível
o   os monges de Maria Laach batizaram esse evento de mistério, que quer dizer ‘ação concreta que torna presente uma ação passada’
o   o ponto mais alto e denso dos ‘santos mistérios’, no culto, seria a celebração da Eucaristia
ü  que o homem de todo tempo e de todo lugar, através do rito, realiza a sua história universal de salvação
o   para Casel, a liturgia era a ‘ação ritual da obra salvífica de Cristo’, isto é, Deus revelado no mistério de Cristo, abrangendo todos os atos de sua vida, de maneira sacramental, simbólica e atemporal 
            Por meio de Casel, a liturgia conquistou um lugar decisivo na teologia, ao ser inserida como mistério cultual : o início e o fim de toda a revelação.
 
            Obviamente, ele influenciou a encíclica ‘Mediator Dei’, que seria escrita depois por Pio XII, e muitos trabalhos desenvolvidos no Concílio Vaticano II.


Ecos do Movimento Litúrgico no Brasil

            Um de seus expoentes foi Dom Martinho Michler, monge beneditino do mosteiro do Rio de Janeiro que, em 1933, incentivou os fiéis a compartilhar uma vida cristã, especialmente a liturgia, baseada nas fontes autênticas.


            As primeiras manifestações até que foram bem recebidas em alguns círculos, tais como a Ação Católica, mas aguçaram a oposição dos tradicionalistas que acreditavam tra­tar-se de um movimento insurgente no seio da Igreja, quase uma heresia.

            As implicações tiveram seu ápice no jornal ‘O Legionário’, das Congregações Maria­nas de São Paulo, e no jornal ‘O Catolicismo’, do movimento ‘Tradição, Família e Proprie­dade’ (TFP).

            Foi pertinente a intervenção do bispos do Brasil e da Santa Sé para serenar as discus­sões : de um lado tínhamos os liturgistas promovendo os novos ares e, de outro lado, os de­vocionistas, conservadores que não permitiriam a extinção do culto aos santos, ao papa, à Virgem, ao Santíssimo, etc..., ou seja, às devoções populares. 


A terceira etapa (de 1943 a 1963 )

Pio XII
             Algumas personalidades, que atuavam na vanguarda do movimento litúrgico, exagera­ram seus posicionamentos, chegando a desconsiderar a piedade individual e as de­voções particulares, para enaltecer exclusivamente a oração comunitária e as celebrações de caráter oficial da Igreja.
 
            A escola de Maria Laach, por exemplo, era uma das que distinguiam entre piedade objetiva (litúrgica) e piedade subjetiva (pessoal). A reação de correntes contrárias foi rá­pida, apontando desvios nos avanços litúrgicos.
 
            Pio XII (1876-1958), com suas encíclicas ‘Mystici corporis’ (1943) e ‘Mediator Dei’ (1947), interveio com muita prudência.
 
            A encíclica ‘Mediator Dei’, considerada a carta magna do movimento, acolheu o con­ceito de que Cristo atua na liturgia e removeu idéias exageradas, censurando francamente os extremismos e, em particular, levantou a questão da ‘piedade objetiva (litúrgica)’, apre­sentada como um ‘denominador comum’ de muitos erros.
 
            A encíclica apresentava como fato :

ü  a harmonia entre liturgia e vida espiritual – reconhecendo na ação litúrgica sua superio­ridade, não desvalorizou nem estabeleceu antagonismo entre a oração litúr­gica e a oração privada e

ü  a defesa da liturgia subordinada à hierarquia eclesiástica – na eclesiologia de Pio XII, a liturgia seria confiada aos sacerdotes, em nome da Igreja.
o   a ‘Sacrosanctum concilium’ será alicerçada mais no sacerdócio comum dos fi­éis do que no sacerdócio ministerial e falará desta participação como um di­reito e uma obrigação de todos os cristãos em virtude de seu batismo
o   segundo o grande teólogo Yves Congar, ‘Pio XII não era contrário às mudan­ças, mas fazia questão de conservar um certo controle’.

            Apesar de favorecer as mudanças e suas perspectivas positivas, o Papa Pio XII inquie­tava-se por enxergar no movimento litúrgico mais razões de apreensão do que de consenso.

             E por fim, ao discursar no Congresso Litúrgico Internacional de Assis (1956), os con­gressistas perceberam que a ‘questão litúrgica’, entendida agora como ‘reforma litúrgica’, tinha começado seu caminho, mostrando o valor da liturgia na santificação das almas e a ação pastoral da Igreja. 

              Síntese de suas realizações :

ü  reordenação da vigília pascal (1951),
ü  introdução da missa vespertina e das novas normas para o jejum eucarístico (1957),
ü  decreto de simplificação das rubricas, do breviário e do missal (1955),
ü  ‘Ordo hebdomadaesanctae’ (1955), 
ü  instrução sobre a música na liturgia (1956),

ü  novo Código de Rubricas (feito em conjunto com João XXIII),

ü  nova edição típica do breviário e do missal

             Independente de seus limites, as reformas de Pio XII traçaram – de modo brando – uma nova teologia litúrgica, que será bem recepcionada pelo Vaticano II.