Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
*Artigo de Michael Sean Winter
Tradução : Ramón Lara
‘O
conto sombriamente brilhante de Mark Twain, The man that corrupted
Hadleyburg, não é realmente sobre um homem corrupto, é sobre uma cidade. Os
habitantes da cidade, moralmente incorruptíveis, estão dispostos a contar
mentiras aos outros e, finalmente, a si mesmos, a fim de pegar um saco de ouro
que foi deixado na casa de Edward e Mary Richards. Por fim, são os próprios
Richards que ficam com o dinheiro, mas também com o conhecimento de que sua
mentira, embora desmascarada, é a mesma dos outros. Eles morrem de tristeza e
vergonha, e não conseguem gastar o dinheiro.
O ‘Relatório
sobre o conhecimento institucional da Santa Sé e a tomada de decisões
relacionadas ao ex-cardeal Theodore Edgar McCarrick’ também não é realmente
sobre McCarrick. Sim, ele é a pessoa em torno de quem os rumores de escândalo
giraram durante anos. Ele é a pessoa cujos crimes sexuais são catalogados em
toda a brutalidade de uma lista forense. Ele é aquele que foi destituído de seu
cardinalato e depois de seu sacerdócio. Mas o relatório é realmente sobre as
maneiras como a cultura da hierarquia católica lidou com o pecado e o crime de
abuso sexual e como essa cultura mudou ao longo de quatro pontificados.
Conforme
descrito no sumário executivo divulgado com o relatório, o principal culpado na
promoção de Theodore McCarrick na hierarquia foi o papa João Paulo II. Nada
sugere que faltou integridade a João Paulo II, de modo que ninguém precisa
questionar sua canonização, embora a velocidade do processo agora pareça
imprudente. Mas quem insiste em chamá-lo de ‘João Paulo, o grande’ é um
tolo, seu culto deveria ser abandonado e as escolas (especialmente as escolas)
que levam seu nome deveriam ser renomeadas. A maior ferida auto infligida em
centenas de anos foi a crise dos abusos sexuais do clero e este relatório
confirma o grau em que o fracasso de João Paulo II em confrontar essa crise,
foi um fracasso na liderança da ordem mais elevada.
Isso
não deveria ser novidade, visto que McCarrick foi nomeado bispo de Metuchen,
New Jersey, arcebispo de Newark, arcebispo de Washington e, finalmente,
cardeal-sacerdote da Igreja Romana, tudo pelo falecido pontífice polonês, que
também achou fácil ignorar as acusações contra o padre Marcial Maciel
Degollado, o depravado fundador dos Legionários de Cristo.
‘As
evidências mostram que o papa João Paulo II pessoalmente tomou a decisão de nomear
McCarrick [para Washington] e o fez depois de receber o parecer de vários
conselheiros de confiança de ambos os lados do Atlântico’, afirma o sumário
executivo. Em seguida, observa que as alegações ‘foram resumidas em uma
carta de 28 de outubro de 1999 do cardeal John O'Connor, o arcebispo de Nova
York, ao núncio apostólico, e foram compartilhadas com o papa João Paulo II
logo após’.
O
relatório indica que rumores de má conduta sexual impediram McCarrick de ser
promovido a três outras sedes cardinalícias, mas que, na primavera de 2000, o
cardeal pediu ao núncio, o arcebispo Gabriel Montalvo, que fizesse perguntas
por escrito aos quatro bispos de Nova Jersey para ver se as alegações eram
verdadeiras, três deles forneceram depoimentos inexatos ou incompletos na
época. Esses bispos eram protegidos de McCarrick, então por que alguém ficaria
surpreso por eles não serem mais abertos?
Tampouco
se deve surpreender ninguém que tal investigação limitada tenha falhado em
produzir muitas evidências, e o Vaticano não tenha recebido uma alegação
confiável diretamente de um menor ou de um adulto, então ‘os defensores de
McCarrick poderiam plausivelmente caracterizar as alegações contra ele como
'fofoca' ou 'umores'’.
O
relatório faz uma afirmação que já ouvimos antes, porém, em uma linguagem mais
reservada aqui. ‘Embora não haja nenhuma evidência direta, parece provável,
pelas informações obtidas, que a experiência anterior de João Paulo II na
Polônia com relação ao uso de alegações espúrias contra bispos para degradar a
posição da Igreja, desempenhou um papel em sua disposição de acreditar nas
negações de McCarrick’, afirma o relatório.
Essa
teoria não tem mais peso. Na época em que McCarrick foi nomeado para
Washington, João Paulo II já era papa há 22 anos. O comunismo tinha deixado de
controlar a Polônia por 11 anos. E John O'Connor não era um agente comunista. A
relutância de João Paulo em investigar as graves alegações contidas na carta de
O'Connor, escrita enquanto o cardeal já estava morrendo de câncer cerebral terminal,
é profundamente condenatória.
O
papel óbvio de João Paulo II na ascensão de McCarrick foi obscurecido para
muitos pelas alegações contidas na lousa emitida em 2018 pelo desonrado
ex-núncio arcebispo Carlo Maria Viganò. Ficou óbvio em uma primeira leitura que
o objetivo do manifesto de Viganò não era descobrir a verdade sobre McCarrick,
mas tentar desencadear um golpe contra o papa Francisco.
O
relatório nos dá, agora, um motivo adicional para o discurso de Viganò : você
protesta demais. O resumo indica que quando novas alegações surgiram em 2012, e
Viganò as relatou ao novo prefeito da Congregação para os Bispos, o cardeal
Marc Ouellet ‘instruiu Viganò a tomar certas medidas, incluindo uma
investigação com funcionários diocesanos específicos e os 3 sacerdotes, para
determinar se as alegações eram confiáveis’, afirma o resumo.
‘Viganò
não deu esses passos e, portanto, nunca se colocou em posição de verificar a
credibilidade dos relatos. McCarrick continuou ativo, viajando nacionalmente e
internacionalmente’. Em partes para satisfazer o desejo de Viganò de ser
visto como um arauto da verdade!
O
papa Bento XVI não se saiu tão mal quanto seu antecessor, mas o quadro
oferecido é de ineficácia. Quando forneceu informações adicionais em 2005, o
papa alemão pelo menos antecipou o momento da aposentadoria de McCarrick. Sua
cúria também divulgou o que o sumário executivo chama de ‘indicações’ a
respeito de McCarrick, essencialmente instruindo-o a se manter discreto, o que
mais ou menos ignorou. Essas estavam no centro das acusações originais de
Viganò. Mas nenhum processo canônico foi iniciado para chegar à verdade das
alegações, muito menos para impor quaisquer penalidades canônicas. É importante
notar, no entanto, que neste momento, não havia alegações de impropriedade
sexual envolvendo um menor.
Quando
o papa Francisco foi eleito em 2013, McCarrick estava aposentado há sete anos.
O novo papa teria visto o ex-arcebispo na festa de despedida do papa Bento XVI
e nas reuniões dos cardeais antes do conclave. Francisco certamente não saberia
nada sobre quaisquer ‘indicações’ contra McCarrick. Uma vez eleito,
parecia haver questões mais importantes a serem examinadas do que alegações que
datavam da década de 1980 contra um cardeal idoso aposentado há muito tempo.
Francisco decidiu deixar a onça quieta e, como todos sabemos pelo modo como o
papa lidou com a confusão dos abusos sexuais no Chile, Francisco ainda não
havia compreendido a enormidade moral e espiritual da inação.
Uma
vez que uma alegação contra um arcebispo, McCarrick, envolvendo um menor foi
considerada crível, implementaram-se os procedimentos para lidar com um
sacerdote comum, mas tais acusações foram um médio eminentemente útil contra
McCarrick : ele foi removido do ministério público e eventualmente destituído.
O
relatório completo, sem dúvida, preencherá os detalhes do esboço aproximado
fornecido pelo resumo executivo, mas todos nós conhecemos a história agora.
Durante o pontificado de João Paulo II, a maioria dos hierarcas seguiram o
exemplo do Vaticano, acreditando que as revelações sobre a verdade do abuso
sexual do clero causariam ‘escândalo’, encontrando falsas
racionalizações no Evangelho para desculpar o comportamento criminoso do clero
abusivo, recusando-se a escutar as vítimas e suas famílias. Se você quiser ver
o quão longe a Igreja evoluiu da negação da era de João Paulo II, considere
estas palavras do cardeal Pietro Parolin que apresentam o relatório :
Publicamos o relatório com pesar pelas
feridas que esses eventos causaram às vítimas, suas famílias, à Igreja nos
Estados Unidos e à Igreja Universal. Como fez o papa, também eu pude ver os
testemunhos das vítimas contidos na ata em que se baseia o relatório e que
foram guardados nos arquivos da Santa Sé. A contribuição deles foi fundamental.
Em sua 'Carta ao povo de Deus' de agosto de 2018, o santo padre Francisco
escreveu, a respeito do abuso de menores : ‘Com vergonha e arrependimento,
reconhecemos como comunidade eclesial que não estávamos onde deveríamos estar,
que nós não agimos em tempo hábil, percebendo a magnitude e a gravidade dos
danos causados a tantas vidas’.
Os únicos heróis neste relatório são as vítimas e seus
defensores. Eles viram o que o papa e os bispos não viram, que a ‘luz do
Evangelho’ estava sendo invocada, mas não seguida. A crise dos abusos
sexuais que marcou a virada do milênio precisava da luz do dia para que pudesse
receber a luz do Evangelho. A recusa em enfrentar, ou mesmo inquirir, as
alegações sobre Theodore McCarrick são indicativos de uma cultura hierárquica
que era profunda, intensamente falha e que só agora começou a mudar realmente.
No
final da história de Twain, os cidadãos de Hadleyburg mudam o lema de sua
cidade removendo uma palavra, tirando o ‘não’ de ‘Não nos deixe cair
em tentação’. Neste relatório McCarrick, vemos que a tentação de proteger a
instituição resultou em uma traição grosseira da instituição e que São João
Paulo II definiu as normas e o tom que levaram ao verdadeiro escândalo.
A
relação entre graça e natureza sempre será um dos enigmas teológicos mais espinhosos,
mas, neste caso, a lição moral é fácil de extrair : se você esquecer sua
humanidade, não só corre o risco de se tornar um monstro, mas cria uma cultura
que permite aos monstros florescer, e se esconder atrás do Evangelho, que é a
maneira mais segura de minar o ministério salvador de Jesus Cristo.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1482639/2020/11/o-que-o-relatorio-mccarrick-nos-diz-sobre-a-cultura-da-hierarquia/
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