Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Após a divulgação de dossiê sobre o ex-cardeal McCarrick, o mundo inteiro chega à conclusão que o clericalismo está mais vivo que nunca. É o grande desafio de Francisco.*Artigo
de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa
da Santa Sé
‘Presenciamos,
esta semana, um outro momento histórico. Sem dúvida, você deve ter visto esta
frase se repetir várias vezes durante o pontificado de Francisco. O papa ‘da
periferia’ faz história no centro da cristandade. E seus opositores não
podem mais negar isso. Do contrário, ficará muito feio para eles. Esperneiam,
como crianças mimadas, frente a um movimento de transformação que derruba os
muros da indiferença, os salões faustosos da corte dos ‘perfeitos’ e as
colunas tortas da contradição.
Francisco
quer salvar a Igreja ‘das igrejas’ que foram construídas com argamassa
partidária e ritualismo estéril. Ele quer destruir os palácios do moralismo que
guardam toda sorte de coisa, menos uma religiosidade genuína. Está na hora do
catolicismo de muitos voltar a ser cristão.
Militar
contra Francisco é atacar ‘um de nós’. Um ‘nós’ feito de
católicos, protestantes, ateus e tantas pessoas de boa vontade que reconhecem
sua importância. Num mundo que carece de líderes de referência, já dizia o
sociólogo Marcos Campos, Francisco se destaca por assumir o cajado do
equilíbrio e da coerência em meio às águas turvas do populismo que invadem os
átrios dos templos. É pontifex : a ponte que conduz, quem estiver disposto a
atravessá-la, a uma vida com sentido, a uma espiritualidade com sentido.
Como
ignorar as vítimas de abusos que foram silenciadas por líderes corrompidos,
cujo drama foi escancarado pelo dossiê do ex-cardeal McCarrick, publicado esta
semana?
Graças
a Francisco, o público teve acesso à lista de crimes cometidos por alguém que,
por muitos anos, comandou uma das arquidioceses mais importantes dos Estados
Unidos e manchou, com sua conduta, as vestes púrpuras de colaborador do papa.
Na era moderna, nenhum molestador dentro do catolicismo conseguiu chegar tão
alto.
Mesmo
sob suspeitas de cometer crimes sexuais, McCarrick conseguiu integrar o grupo
seleto de membros da alta hierarquia católica. Foi beneficiado por uma série de
acobertamentos feitos por seus colegas de episcopado. Por conta disso, teve
força suficiente para burlar as leis rígidas que regem as nomeações episcopais.
Mentiu ao papa João Paulo II, dizendo ‘nunca ter praticado sexo na vida nem
com homem nem com mulher’. O papa polonês, considerando as denúncias contra
ele infundadas, preferiu ficar com sua declaração de inocência. Ao considerar
as suspeitas inconsistentes, deu a ele o barrete cardinalício, mesmo depois de
ter sido alertado pelo cardeal John O'Connor, que previu a possibilidade de um
escândalo mais à frente. Dito e feito.
O ‘corporativismo
eclesial’, fruto do clericalismo que Francisco, desde o início do pontificado,
combate, venceu nessa história. O papa argentino, há muito tempo, havia feito
esse diagnóstico. Porém, para variar, foi ignorado e acusado de não se
preocupar ‘com os interesses da instituição’. Quem se fecha para essa
denúncia profética, comumente acha que Igreja é um principado intocável, o
Estado Pontifício medieval que se alia à mentalidade deste mundo e promove
disputas para garantir seu território.
Para Francisco, a Igreja
são as nossas avós que nos ensinaram a rezar o terço. É feita de trabalhadores
que agradecem a Deus pelo sustento de cada dia. Por mulheres que doaram suas
vidas ‘pela causa do reino’ e não receberam nenhum reconhecimento. É formada
por padres que, por ajudarem os pobres, foram chamados de ‘comunistas’ (pelo
povo que não faz nem 1% do que eles fazem, mas passa o dia digitando ofensas e
tratados de religiosidade vazia nas redes sociais). E tem também o velho
sacerdote de uma paróquia de interior que, no cumprimento de suas tarefas
diárias, usando uma batina surrada, mantém a fé das pessoas que não sabem
pronunciar nenhuma palavra em latim, mas aprenderam a falar com Deus por causa
de seus sermões.
Mais
que gestos, reviravoltas pastorais e revolução comunicativa, o governo do papa
argentino é feito de ousadia. O pontífice entra no jogo do perder para ganhar.
Mesmo que, por um momento, a instituição receba golpes que põem em risco sua
credibilidade, é o cristianismo quem vence. Francisco trabalha, a duras penas,
para construir essa consciência : cristianismo é encontro
com Deus e com o outro. Se estiver fora disso, é só uma confraria de
homens e mulheres que discutem teologia. Ele manda o recado para aqueles que se
acham santos demais, mas têm vidas que não passam de culto à religião do eu.
Você
pode até não gostar do papa, mas negar que ele é necessário para este tempo,
demonstra de que lado você resolveu ficar. O católico mais devoto deveria ser o
primeiro a defender, com unhas e dentes, o seu próprio líder. É, no mínimo,
incoerente assumir uma postura contrária. Tradicionalismo que afronta a
Tradição (a de dois mil anos, que inclui o papa no pacote) é o que mais vemos
por aí. Não passa de moda, esteticismo espiritual : não é a fé dos apóstolos.
Desde
quando o papa assumiu o governo da Igreja, em 2013, deixou claro que não
focaria nas questões de sempre. Sua missão era pôr ordem na casa. Também
prometeu agir com transparência; porém, não imaginávamos que chegaria a tanto.
Francisco revisita uma das páginas mais dolorosas da história da instituição
sem medo de mostrar para todos onde estão as maçãs podres. Afirmação forte,
não? Tão forte quanto verdadeira. Não pare, santo padre!’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1482851/2020/11/francisco-o-mestre-de-obras-de-um-novo-tempo/
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