*Artigo
de Marco Lacerda,
jornalista, escritor e Editor Especial do DomTotal
‘Para os mais de
300 mil imigrantes e refugiados que chegaram à Europa pelo Mar Mediterrâneo até
agosto do ano passado, arriscar a vida em embarcações sem nenhuma
infraestrutura não é pior do que as circunstâncias que eles vivem em seus
países. Vítimas de guerras civis, terrorismo, perseguições e miséria, eles
buscam no continente uma chance de uma vida mais digna, mas nem sempre chegam à
terra firme. Só em 2015, mais de 2.500 pessoas morreram afogadas na travessia,
um número sem precedentes.
A Europa é
sinônimo de esperança e salvação no brilho dos olhos da maioria dos refugiados
assim que pisam em terra firme, após cruzarem num bote de plástico os 10
quilômetros de mar que separam a costa turca das praias de Lesbos. Mas, terra
adentro, a realidade lhes golpeia, e não demora até que eles substituam a
ilusão pelo assombro ao descobrirem que quase não há recursos para acolhê-los.
Esse abandono pode
ser confirmado pelos mais de 62.000 refugiados que permanecem retidos em
território grego, amontoados em centros de acolhida ou à fria intempérie sob
uma tenda de lona. E é confirmado também pelas cifras oficiais, que indicam
sobretudo um problema de falta de vontade política para encontrar soluções
humanitárias para a crise.
Em setembro de
2015 os países membros da UE se comprometeram a redistribuir em dois anos
160.000 refugiados com direito a asilo que já se encontravam em território
europeu, podendo assim dividir o esforço. Um ano depois, foram realocados
apenas 8.741. A Espanha, por exemplo, acolheu só 898 dos 17.300 que prometeu.
Por outro lado, há duas ações em que a UE teve uma clara iniciativa :
terceirizou o problema para países com uma duvidosa reputação na questão dos
direitos humanos, e construiu muros.
Se os Governos
europeus facilitassem travessias seguras e procedimentos que permitissem
solicitar asilo a partir dos países limítrofes com as zonas de conflito, como
determinam os tratados internacionais, os refugiados não precisariam cair nas
mãos de máfias de traficantes nem arriscar suas vidas para cruzar o
Mediterrâneo. Segundo cifras do Acnur, órgão da ONU para refugiados, mais de
3.700 migrantes morreram afogados nestas águas em 2015 tentando chegar à
Europa. Em 2016 foram mais de 5.000.
‘Meu sonho é encontrar
paz. Só isso.’
Algumas rotas,
como a do Mediterrâneo ocidental, fecharam-se depois do acordo com a Turquia ou
por causa das cercas que foram erguidas. Mas isto não soluciona o conflito, só
o transfere para outros lugares. E aumenta as dificuldades, as distâncias e o
risco para homens, mulheres e crianças cujo único crime é buscar uma vida
melhor ou simplesmente sobreviver.
‘Lá, quando você sai à rua nunca sabe se vai
voltar para casa. Tinha medo de que alguém me mate’, conta Halid, de 48
anos, que perdeu uma perna quando uma bomba caiu sobre a sua casa, em Daraa
(Síria). ‘Decidi escapar quando vi outra
atingir 12 pessoas. Mas o pior foi que ninguém pôde socorrê-las, porque havia
dois franco-atiradores que nos impediam de nos aproximar’, explica com
tristeza. ‘Várias delas passaram dois
dias agonizando antes de morrer. Naquele dia decidi ir embora. Percebi que
estávamos perdendo a humanidade.’ Halid reflete enquanto revira com suas
muletas alguns centímetros de areia firme sob os cantos da praia. ‘Na Síria alguns morriam e outros viviam, mas
os que vivíamos estávamos também morrendo pouco a pouco. Quero encontrar paz na
Europa. Meu sonho é encontrar paz. Só isso.’
A guerra tirou 11
milhões de sírios dos seus lares, obrigando quase cinco milhões deles a saírem
do país. A visão do conflito oferecida pela mídia parece se ater à luta entre
dois bandos principais : o regime e os rebeldes. Mas Ahmad, um estudante de
arquitetura sírio de 20 anos, afirma, após desembarcar na Europa, que ‘há cinco bandos lutando entre si’ no seu
país. ‘Não me sinto próximo de nenhum’,
acrescenta. ‘E isso é quase mais
perigoso, pois você se torna suspeito para todos os lados’.
Ahmad reflexiona
em voz alta : ‘Por que essa guerra? Não
sei. Só sei que as pessoas se matam porque o ódio está em seus corações’.
Por isso decidiu ir para a Turquia. Encontrou emprego em Istambul fazendo
sapatos. Mas, segundo conta, não lhe pagavam ou lhe pagavam menos do que o
combinado. ‘Quando você diz que é sírio,
respondem ‘você não é ninguém’. Tratam você como um escravo. Então decidi ir
para a Europa’.
Mirza (26 anos) é
um claro exemplo desse desamparo. Mesmo tendo nascido e vivido no Irã, não
estava em situação legal neste país, pelo fato de sua família ser afegã. Conta
que depois de trabalhar por toda a sua vida como alfaiate em uma fábrica de
calças, o Irã começou a negar a renovação dos documentos dos afegãos de origem,
até mesmo aos nascidos no próprio Irã. De modo que ele e sua família tiveram
que voltar ao Afeganistão. ‘Lá a situação
não é boa’, diz. Após quatro anos sobrevivendo sem trabalho e diante da
instabilidade política, decidiu partir à Europa com toda a sua família.
Mirza conta a
etapa final de sua viagem até alcançar a Grécia enquanto a roupa seca ao sol
sobre as duras pedras de uma praia de Lesbos. ‘Após quatro hora de ônibus saindo de Izmir (Turquia) chegamos de noite
ao litoral’, explica. Ao amanhecer os traficantes juntaram as pessoas por
grupos. ‘Quando nós estávamos subindo no
bote percebemos que não cabíamos. A capacidade máxima desses botes é de 40
pessoas, e éramos em 54!’, exclama. ‘Precisamos
então nos desfazer da maior parte da bagagem porque vimos que o barco afundaria
com tanto peso’.
Alguns pais
suplicaram. Precisavam das mochilas de seus bebês, de modo que tivemos de
priorizar suas bagagens. ‘Por isso minha
mochila ficou na outra margem’, diz com resignação. ‘Meus últimos pertences estavam lá. E aqui estou. Assim cheguei à
Europa. Minhas calças e minha camiseta são meus únicos pertences. Não tenho
mais nada’.
Mirza me explica
as táticas da Guarda Costeira Turca. ‘O
que vou lhe contar vi com meus próprios olhos da praia’, afirma. ‘O bote que nos precedeu foi abordado pela
guarda costeira. A patrulha turca passava ao seu lado para que as ondas de sua
lancha o inundassem. Mas como viram que não funcionava, se aproximaram do bote
e um guarda tomou o bebê dos braços de uma das mães. A patrulha voltou às
praias turcas com o bebê sequestrado. A mãe gritava e chorava de pânico.
Finalmente, a estratégia deu certo. O bote de refugiados voltou para poder
recuperar a criança’.
1.200 quilômetros de
cercas anti-imigrantes
Apesar do direito
internacional obrigar a acolher os refugiados de guerra, não parece que os
dirigentes europeus estão dispostos a fazê-lo. De acordo com dados da agência
Reuters, foram construídas na Europa 1.200
quilômetros de cercas anti-imigrantes desde a queda do muro de Berlim. A maior parte,
levantada a partir de 2015.
O exemplo vem de
outros países. A Turquia sozinha recebeu 2,5 milhões de refugiados sírios desde
o começo do conflito armado. O Líbano recebeu 1,5 milhão. A Europa, por sua
vez, acolheu um milhão de imigrantes em 2015. O que
representa somente 0,2% da população europeia.
A essa altura,
qualquer um pode se perguntar se os valores de solidariedade sobre os quais a
UE foi construída chegaram ao seu fim. Se viraram algo inútil. No momento em
que a Europa vive talvez o maior desafio desde sua criação, qualquer um pode
afirmar que algo definitivamente se quebrou nela. Que sua viagem, como o
trajeto dos milhares de pessoas que fogem da guerra, também foi uma viagem rumo
ao nada.
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