*Artigo
de Rodrigo Ladeira,
mestre em Teologia Litúrgica (Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia / BH-MG)
‘É próprio do
período quaresmal, como tempo propício para a reconciliação, a quietude em
todos os níveis imagináveis. Ela viabiliza, entre outras coisas, uma melhor e
mais criativa escuta de Evangelho. Nesse tempo, a Igreja, que somos nós – não
nos esqueçamos! – nos convida, começando com a celebração litúrgica da
Quarta-feira de Cinzas, ao exercício integral, teo-antropológica, da conversão.
A Comunidade de Mateus nos ajuda a entrar no coração deste ‘tempo favorável’ para a fé. Mateus
consignou, nessa ordem, três exercícios da vida cristã, chamado pelos Santos
Padres e a Tradição da Igreja de ‘observância
quaresmal’ : esmola, oração e jejum. Devemos lembrar que esse tríptico, já
clássico para o cristianismo, é uma herança do povo de Israel, agora
ressignificada por Jesus, em vista do Reino de Deus e incorporada à Igreja,
corpo de Cristo.
A nova ordem da
tríade apresentada por Mateus (6,1ss), não é mera ‘reorganização dos tratores’ uma vez que altera a ‘construção do viaduto’. O evangelista
coloca o jejum por último. É bom lembrar que o jejum, uma das práticas rituais
do povo da Antiga Aliança, tinha se tornado umas das mais comuns em vista de
expressar sua fidelidade a Deus. Voltando a Mateus, a nova ordem dos
exercícios, por ele proposta, indica que à prática do jejum dever-se-á antes
observar a esmola, como metáfora da máxima alteridade; e da oração, símbolo da
mais alta experiência do Espírito de Cristo que reza em nós. Só por último
Mateus indica o jejum, nesse caso, fruto da esmola e da oração, ponto alto do tríptico,
por ele ressignificado a partir de Cristo, derradeiro lugar antropológico do
aprendizado sobre a relação com o ‘outro-de-nós-mesmos’
em vista de uma essencial e crucial ‘saída-de-si’.
Ponto de partida
para pensarmos o jejum, prática habitual da quaresma, deverá ser portanto a
lógica da fé cristã, que se retroalimenta do seguimento de Jesus Cristo, do
desejo de ser Igreja. Acontece que a fé, mais que invenção religiosa, supõe,
como dissemos acima, alteridade nos três níveis da experiência humana : com os
outros (esmola), para gerar fraternidade a partir dos mais necessitados; com
Deus (oração), refinando nossa capacidade de escuta do Deus que se autocomunica
em Jesus; conosco mesmos (jejum), colaborando para um sadio esvaziamento de si,
de recusa da idolatria.
Acontece que
aprendemos a prática do jejum quaresmal de modo pseudo-cristão. As famílias
católicas tinham essa experiência de abstinência como a parte mais importante,
porque custosa, em vista da preparação imediata da Páscoa, que tinha, inclusive,
data e hora certa para acabar. Aliás, não está longe de nós aquela prática de
jejum antes da participação na eucaristia. Esse tipo de atividade alimentou
nosso imaginário, dando mais valor à privação no sentido de provação, muitas
das vezes resumindo à abstinência
alimentar, do que ao espírito que deve animar, e não acabrunhar, a vida
dos cristãos. O jejum deve ser uma oportunidade para celebrarmos o Mistério da
fé, cujo nome é Jesus Cristo (cf. At 4,10). Ele é expressão da nossa liberdade,
restaurada na liberdade de Cristo, obediente até a morte, como manifestação de
sua kênose, de seu autoesvaziamento (cf. Fl 2).
Chegamos ao nó da
questão. Aqui não está em jogo só a nossa capacidade de autocontrole. Isso
qualquer não-cristão ou sem religião pode fazer, basta querer. O ponto crucial
para o cristão é a idolatria, cujo movimento em contrário está expresso no
Pai-nosso : ‘seja feita a vossa vontade’.
O profeta Isaías, mesmo antes da encarnação de Cristo, ressignifica a prática
do jejum, aliás, abundante apenas como recurso meramente ritual-expiatório no
tempo da religião judaica. ‘Acaso o jejum
que eu prefiro não será isto: soltar as cadeias injustas; desamarrar as cordas
do jugo; deixar livres os oprimidos; acabar com toda espécie de imposição?’
(cf. Is 58,6). Os cristãos temos um plus, que o profeta anteviu, mas que só
experimentou como sombra, porque o Verbo ainda não tinha se encarnado. Nós, por
outro lado, podemos dizer em alta voz : ‘Ele
está no meio de nós!’. Só encontramos sentido no exercício do jejum
seguindo a lógica da festa, da celebração. Trata-se de uma ‘chance’ para o evangelho, que carece de ‘espaços vazios’ em nós para ecoar. Como
exercício de seguimento cristão deve aí caber o todo da vida cristã, consignado
no querigma, nessa ordem, em ciruclar-espiral : vida – morte – ressurreição –
pentecostes – vida.
O jejum, como ação
ritual-celebrativa, valerá mais pela intenção e sentido, do que pela quantidade
e dificuldade. Abster-se de algum alimento, o mais clássico dos jejuns, ou da
TV, do excesso de bebida, de alguma vaidade, da fofoca, do consumismo e tantas
outras coisas, só será salutar, de acordo com a economia da salvação, se nisso
verificarmos, como indica Mateus (6,16-18), fisionomia alegre, cheiro de
perfume agradável, e não-publicidade, porque Deus gosta de pequenos segredos
íntimos.
O jejum deve nos
levar ao encontro, ao diálogo, à relação com o ‘Mistério da fé’ que se manifesta, se revela, nos outros, nossos
irmãos, quando nos fazemos esmoleres; na intimidade com Deus, cerzido pela
escuta da Palavra e do pão sacramental; mas também no autoesvaziamento, quando
o jejum acha seu real sentido, não como pífia expressão, mais das vezes
meramente racional, da fé, que nesse sentido é apenas manifestação religiosa,
por isso pré-cristã, feita de horrorosas tentativas de barganhar com Deus que é
o Amor (cf. 1Jo 4,8). O jejum, para não ser um simplório mecanismo de tutela
religiosa, deve nos ensinar a ser cristãos para valer, dispostos a, como Joel
(2,13), rasgar o coração mais que as vestes.’
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