*Artigo
de Lorena Alves Silveira,
graduanda em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
‘Dizer sobre o
cansaço e o stress da sociedade em que estamos inseridos já é um clichê.
Continuamente somos bombardeados por uma série de informações de todos os tipos
possíveis. Ao mesmo tempo, recebemos, através das redes sociais, inúmeras
mensagens nos alertando sobre a importância de parar um pouco, refletir sobre a
vida, reorganizar as prioridades, redescobrir e se importar com o que realmente
é essencial.
Interromper o
ritmo cotidiano para retirar-se da agitação desenfreada que nos envolve e
transborda em nós, nunca foi tão necessário. Essa é a proposta quaresmal : um
grande retiro! Retiro que não está atrelado ao espaço físico, ao silêncio meramente
exterior, ao estar só. O desafio é justamente este : retirar-se estando em meio
à efervescência urbana, cercado por pessoas, bombardeado por sons e imagens,
permeado por conflitos internos, caos social, econômico e cultural.
Lançado o desafio,
eis pergunta fundamental : retirar-se para quê? E é aí que costumamos nos
perder... Se perguntarmos à muitas pessoas de nosso convívio o que as vêm em
mente quando se diz ‘quaresma’,
muitas irão nos responder ‘sacrifício’,
‘penitência’, ‘sofrimento’. A quaresma, não raramente, nos coloca em contato com
pessoas que, nesse período, se dispõem à algum tipo de ‘sacrifício’, se abstendo de carnes, guloseimas, bebidas alcóolicas.
Muitas vezes, atos vazios de sentido e perdidos neles mesmos.
Se retomarmos às
fontes desse tempo litúrgico, veremos que a quaresma surge como oportunidade
para os catecúmenos se prepararem mais intensamente para receber o batismo na
celebração anual da Páscoa do Senhor, a Vigília Pascal. Essa experiência
catecumenal é estendida a todos os já batizados, que na Noite Santa do Senhor
irão renovar suas promessas batismais.
Voltemos para a
pergunta fundamental : retirar-se para quê? Para revermos nossa vida a partir
da experiência com o Ressuscitado e, alimentados por ela, renovarmos os
compromissos assumidos em nosso batismo.
Todo acordo,
contrato, combinação, carece de ser revisitado, para que nos recordemos de
nossas motivações e tenhamos a possibilidade de avaliar a coerência de nosso
caminhar. Assim, o período quaresmal deve ser um movimento de retirar-se da
superfície de nós mesmos e irmos a fundo.
As perguntas a
serem respondidas por todos os batizados durante a Vigília Pascal são um bom
fio condutor para nossa reflexão nesses 40 dias. Para vivermos na liberdade dos
filhos e filhas de Deus, para vivermos como irmãos e irmãs, renunciamos a todo
o pecado, a tudo o que pode nos desunir? Cremos no Pai, Filho, e Espírito, que
são amor, relação, fonte de vida?
Perguntas
genéricas que encontram inúmeras possibilidades no particular de nosso viver.
Pessoalmente e em comunidade, podemos nos colocar ao encontro dessas respostas.
Afinal, em que Deus a nossa fé está fundamentada? Cremos na misericórdia, no
amor, nas relações? Quais são meus valores fundamentais a partir de minha
crença? Sou capaz de renunciar a tudo o que é contrário ao Reino?
Conduzidos por
estes questionamentos, somos convidados aos três pilares desse tempo litúrgico,
recebidos da fé judaica : a oração, o jejum, e a esmola. Essas práticas
certamente nos auxiliam na busca pela coerência em nossos compromissos
batismais, tão exigentes e fundamentais para o cristão.
Se colocar na
dinâmica de diálogo com o Senhor, ouvir o que Ele nos ensina a partir do seu
Evangelho, percebê-lo no grito ou silêncio do pobre, daqueles que estão às
margens. É na oração que conhecemos a Deus, mas na oração verdadeira, sensível
ao Senhor que se comunica através da vida. Conhecendo-o e atraídos pelo seu
amor, somos capazes de entregá-lo nossas misérias mais profundas, nossas reais
necessidades, nosso canto de louvor e gratidão.
A partir desse
encontro amoroso, que é a oração, estamos aptos para reconhecer o outro em suas
carências e alimentá-lo a partir de nossas renúncias, como irmãos e irmãs que
somos. A esmola nada mais é do que o fruto do nosso jejum, que vai em socorro à
necessidade do outro. Assim, o pão que não esteve em minha mesa voluntariamente,
deve estar na mesa daqueles que não o tem todos os dias, para que a súplica ‘o pão nosso de cada dia nos dai hoje’ se
concretize e o Reino aconteça.
Como o jejum dos
alimentos encontra seu sentido alimentando o outro, toda renúncia encontra sua
significação na cura das relações. Jejuar da malícia, da maldade, do egoísmo,
da ambição... isso cura a todos nós, nos reconfigura como filhos do mesmo Pai
amoroso, nos restabelece irmãos e irmãs.
Ser batizado é
fazer experiência da morte para, com Cristo, encontrar a vida, vida nova, vida
nele. Essa experiência é profunda, transformadora, comprometedora. Dessa forma,
identificar a quaresma como sofrimento em si mesmo, é rejeitar a vida que o
Ressuscitado nos oferece.
Pensemos em nosso
batismo, na coerência de nossa vida batismal. Sejamos pessoas, comunidades, uma
sociedade ressuscitada, o que só é possível a partir da nossa decisão pelo
amor, pela verdade, pelas relações cheias de saúde. Relação com Deus, conosco
mesmos, com nossos irmãos e irmãs, com nossa casa comum.
Como carecemos de
saúde, de salvação! Cercados por crises, por mentiras, corrupção, por
escândalos e mais escândalos nacionais, mundiais, não sejamos, nós, cristãos,
também motivo de escândalo.
‘Mas o que é o escândalo? O escândalo é dizer
uma coisa e fazer outra; é ter vida dupla. Vida dupla em tudo : sou muito
católico, vou sempre à missa, pertenço a esta e aquela associação; mas a minha
vida não é cristã. Não pago o que é justo aos meus funcionários, exploro as
pessoas, faço jogo sujo nos negócios, reciclo dinheiro, vida dupla. Muitos
católicos são assim. Eles escandalizam. Quantas vezes ouvimos dizer, nos
bairros e outras partes : ‘Ser católico como aquele, melhor ser ateu’. O
escândalo é isso. Destrói. Joga você no chão. Isso acontece todos os dias,
basta ver os telejornais e ler os jornais. Os jornais noticiam vários
escândalos e fazem publicidade de escândalos. Com os escândalos se destrói.’
Papa Francisco (Homilia da missa matutina
celebrada, no dia 23/02/2017, na Casa Santa Marta).
Sejamos coerentes,
sejamos fiéis, sejamos amor!’
Fonte :
* Artigo na íntegra http://domtotal.com/noticia/1134993/2017/03/as-interpelacoes-quaresmais-e-a-experiencia-da-vida-nova/
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