Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa
da Santa Sé
‘Francisco
convocou um dia de oração pela paz na Ucrânia, e fez isso um dia antes da
invasão russa, ao intuir que a situação se agravaria. E é nessas horas que nos
perguntamos : a Santa Sé escolherá a vida da neutralidade ou da ‘profecia’?
Como a diplomacia pontifícia irá atuar frente a essa situação? O que ela fez
até aqui, está em linha com o clássico posicionamento da Santa Sé nessas
situações?
O
historiador italiano Alberto Melloni, em artigo publicado pelo jornal italiano
La Reppublica, na semana passada, fez esse mesmo questionamento. No seu texto,
ele teceu uma reflexão que poucos tiveram a coragem de expor.
O
conflito, que acabou se materializando no campo de batalha, também acontece nas
igrejas. A autocefalia da Igreja Ortodoxa Ucraniana, promulgada em 2016, e os
desencontros entre o patriarcado de Moscou e o de Constantinopla em meio a esse
processo, que culminaram no fim da comunhão eucarística entre ambas as sedes,
serviu para legitimar e oficializar uma divisão que perdura há séculos.
E
os pronunciamentos nacionalistas do Krill, patriarca de Moscou e de toda a
Rússia, certamente não vão ao encontro do que se espera de um líder cristão
nesse momento trágico. O mito da Terceira Roma ruiu faz tempo.
Portanto,
historicamente, as próprias instituições cristãs, das quais se espera um
posicionamento em concordância com o Evangelho, pouco contribuem com o processo
de pacificação, ao menos em campo ideológico.
Por
outro lado, a visita de Francisco à embaixada da Rússia junto ao Vaticano, na
última sexta-feira (25), e sua ligação ao presidente da Ucrânia, Volodymyr
Zelens'kyj, no dia 26, mostram que a Santa Sé está disposta a jogar no
tabuleiro geopolítico global com os recursos que tem.
Não
é comum que a autoridade máxima da Igreja Católica vá pessoalmente a órgãos de
representação diplomática, uma vez que é o secretário de Estado quem se
encarrega de fazer esse tipo de coisa. Mas dada a urgência da situação, e
aproveitando-se dos canais de diálogo que o próprio pontífice criou com a
Rússia, nada melhor do que fazer uso desse privilégio em vista do bem comum.
E
isso serve também para calar a boca de quem opina sobre a diplomacia da Santa
Sé e sobre suas alianças, sem o mínimo conhecimento de causa sobre o quanto
elas são importantes, principalmente em momentos como esse.
Francisco
é um líder global e, graças a seu carisma, a diplomacia da Santa Sé tem
adquirido, nos últimos anos, uma relevância que há muito não se via.
O
líder da Igreja Católica não só privilegia as periferias do mundo (que é o
carro-chefe da sua geopolítica), mas tenta impedir, quase que de maneira
profética, que a disparidade entre norte e sul globais ultrapasse a esfera
econômica - como já temos observado. Francisco se coloca na brecha, embora sua
única arma seja apelar para o diálogo. Seus últimos pronunciamentos sobre a
União Europeia, quando condenou as várias colonizações ideológicas que o
próprio bloco promoveu, deixou claro que o discurso pontífice vai além do tout
court dos pronunciamentos pontifícios, justamente porque é preciso atacar a
raiz do problema.
Quando
ele fala de uma ‘terceira guerra mundial em pedaços’, cujos sponsors são
as grandes potências de sempre, alerta para o perigo de normalizar o jogo de
interesses, como se, nessa disputa, houvesse anjos e demônios. Não há. E no
atual cenário, a única vítima é o povo ucraniano. Ninguém mais.
O
pontífice argentino foi o primeiro papa a encontrar-se com um patriarca de
Moscou em 2016. Antes de Francisco, o líder da Igreja Católica se encontrava
somente com as delegações e representantes da igreja russa. Ou seja, Francisco
abriu um canal de comunicação tão expressivo quanto aquele iniciado por João
XXIII em plena Guerra Fria.
Francisco
é visto com bons olhos por Putin e Biden, tem contatos fortes com a União
Europeia e é bem quisto pelo governo da Itália, que está ‘no seu quintal’.
Por isso mesmo, no jogo geopolítico, ele tem a possibilidade de transitar onde
quiser, exortar quem quiser e apertar a mão de quem quiser. E isso não está
relacionado a ser neutro ou conivente, mas é a postura típica da diplomacia
pontifícia, da qual se espera a manutenção do seu status de promotora da paz.
Se o povo sofre, a Santa Sé intervém - ou nos bastidores ou escancaradamente. A conta é simples.’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://domtotal.com/noticia/1567989/2022/03/invasao-na-ucrania-de-que-lado-o-vaticano-esta/
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