Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
Em vista do bem mais universal, jesuítas buscaram preservar a saúde de seus membros
*Artigo do Padre Aaron Pidel, SJ
Tradução : Ramón Lara
Experiência com a ‘Peste de Milão’ ilustra o discernimento necessário para a suspensão ou não de ministérios
‘Quando
a Igreja Católica optou por se tornar virtual para seus encontros da Semana
Santa no ano passado, tive dúvidas sobre a escala de valores relativa que isso
implicava. Jesus certamente nos ensina a priorizar a saúde espiritual sobre as
questões temporais : ‘E não temais os que matam o corpo e não podem matar a
alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo’
(Mt 10,28). Além disso, como jesuíta, estou angustiado pelas histórias de
padres mais velhos, nossos antecessores, que se colocaram em perigo para levar
a palavra de Deus aos fiéis no passado. ‘Para que servem os filhos de Loyola’,
perguntou o bem-aventurado Miguel Pró numa carta escrita pouco antes do seu
martírio, ‘se fogem ao primeiro sinal?’. O cancelamento dos sacramentos
e ministérios por causa do coronavírus refletiria uma perda de fé ou pelo menos
de coragem?
Com
essa questão um tanto inquietante em mente, comecei a estudar o registro
histórico, especialmente a resposta pastoral dos jesuítas na Itália à chamada
Peste de São Carlos em Milão (1576-78). O que encontrei me surpreendeu. Mesmo
no contexto da peste, os jesuítas restringiram as ofertas sacramentais para
preservar a vida temporal, embora não a vida por si mesma. Mas, ao moderar
estrategicamente sua ousadia, eles começaram a brigar com ninguém menos do que
com São Carlos Borromeu. O ‘estudo de caso’ pode fornecer um padrão mais
indulgente para avaliar a resposta pastoral da Igreja contemporânea.
Antes
de descrever em detalhes a estratégia pastoral dos jesuítas e sua lógica, é
importante observar algumas semelhanças e diferenças importantes entre la
peste di San Carlo e nossa nova pandemia de coronavírus. Às vezes,
presume-se que os primeiros modernos não tinham noção do contágio interpessoal
e, portanto, do perigo que os ministros no meio da praga representavam, não
apenas para eles mesmos, mas para os outros. Isto é falso. No século 16, o
conselho de saúde milanês subscreveu a teoria do contágio, tomando isso como a
justificativa para confinar os doentes em um hospital isolado (um lazaretto)
fora das muralhas da cidade. A peste de Milão revelou-se muito mais virulenta
do que a Covid-19. A maioria estima que ao longo de 18 meses, atingiu cerca de
17 mil milaneses, cerca de 15% da população da cidade. O número proporcional de
mortes nos Estados Unidos seria de quase 50 milhões. Em suma, os jesuítas
milaneses enfrentaram uma crise de saúde que, embora análoga à nossa, pertencia
a outra ordem de magnitude.
Como
os jesuítas em Milão reagiram a uma peste considerada altamente contagiosa? De
acordo com o livro Plague? Contos jesuítas de doenças epidêmicas
no século 16, de A. Lynn Martin, os religiosos adotaram o que era mais ou
menos a política jesuíta ‘oficial’ para a pastoral no tempo da peste.
Com a bênção do superior geral jesuíta, Everard Mercurian, isolaram a maioria
dos jesuítas enquanto dedicavam alguns sacerdotes aos ministérios espirituais
vitais para as vítimas da peste, especialmente a confissão. Naquela época,
Milão tinha comunidades jesuítas vinculadas ao Collegio di Brera e à paróquia
de San Fedele. Os religiosos mantiveram os professores e acadêmicos na
faculdade, de longe o grupo maior, mas deixaram um punhado de voluntários na
Casa di San Fedele para cuidar das vítimas da peste. Dois dos voluntários jesuítas
caíram na peste quase imediatamente, e outros então se ofereceram para ocupar
seu lugar. Embora os jesuítas não se esquivassem do heroísmo, canalizavam seus
impulsos heroicos para colher os maiores dividendos espirituais de seu
investimento na vida.
Essa
resposta, entretanto, não agradou a todos. São Carlos Borromeu, então cardeal e
arcebispo de Milão, censurou amargamente a Ordem Religiosa ao saber que os
jesuítas de San Fedele não estavam junto aos enfermos, mas apenas ouvindo suas
confissões. Um dos jesuítas do colégio, Bernardino Viottino, revelou em uma
carta escrita ao padre Mercurian que tentou em vão apaziguar o arcebispo junto
às autoridades teológicas. Tendo aduzido fortes opiniões contra a existência de
uma estrita obrigação de dispensar a Comunhão às vítimas da peste, Viottino
concluiu : ‘Monsenhor, ensinamos a doutrina que recebemos dos santos
doutores e nada mais’. O cardeal Borromeo respondeu : ‘Você não é bispo
e não cabe a você dizer o que devemos fazer. Não gosto desta doutrina e não a
quero’. Sem dúvida, o arcebispo preferiu a abordagem dos capuchinhos, que
enviaram seus frades em massa para ministrar no lazaretto, perdendo
10 ao todo. A Companhia de Jesus claramente usou critérios diferentes para
determinar o escopo de sua resposta.
Que
princípios guiaram sua deliberação? Os dois mais significativos eram a
indiferença, no sentido jesuíta, e o bem mais universal. A indiferença jesuíta
encontra expressão clássica no Princípio e fundamento, a
consideração introdutória no livro dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio.
Depois de observar que o propósito das pessoas humanas é ‘louvar,
reverenciar e servir a Deus nosso Senhor, e por este meio salvar suas almas’,
o Princípio e fundamento chega a uma conclusão bastante
estimulante : ‘é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas
criadas, em tudo o que é concedido à liberdade do nosso livre arbítrio, e não
lhe está proibido; de tal maneira que, da nossa parte, não queiramos mais saúde
que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que vida curta,
e consequentemente em tudo o mais; mas somente desejemos e escolhamos o que
mais nos conduz para o fim para que somos criados’. Essa indiferença à
saúde implica, é claro, que um bom jesuíta arriscará sua saúde quando a
salvação de almas o exigir. Mas a indiferença à doença, também implícita,
significa que um bom jesuíta também não insistirá na autoimolação imprudente. A
opção a ser escolhida deve depender unicamente de seu fim : o serviço divino.
De
acordo com as constituições jesuítas, porém, este serviço divino maior é
praticamente sinônimo do ‘bem mais universal’ : ‘Quanto mais
universal é o bem, mais divino’. Este segundo princípio estabelece que os
superiores jesuítas, olhando para a Igreja ‘universal’ ao invés de uma
única região, devem priorizar missões que atendam às necessidades espirituais
mais urgentes ou tenham uma influência espiritual de maior alcance.
Dado
esse padrão na escolha das missões, facilmente se percebe por que os jesuítas
chegaram a um julgamento prudente diferente daquele do cardeal Borromeo, cujo
único horizonte pastoral permaneceu sendo sua diocese infestada de pragas. Como
membros de uma ordem religiosa internacional, em contraste, o horizonte dos
jesuítas incluía um empreendimento educacional extenso, mas cronicamente
insuficiente. Em 1575, os jesuítas tinham 3.905 membros e 210 escolas, muitos
deles em regiões de campo de batalha religiosa como a Alemanha. Diante desta
situação, continuaram favorecendo a política que Juan de Polanco propôs a São
Pedro Canísio já em 1562 :
A escassez de membros que temos na Alemanha obriga-nos a conservá-los da
melhor maneira possível para o serviço divino e o bem comum. Embora devamos
preferir o bem da alma alheia à nossa própria vida, não devemos expor a vida de
um servo eficaz apenas para o consolo de uma pessoa, porque se o servo viver,
poderá ajudar muitas almas.
Tendo
responsabilidades diferentes das do cardeal Borromeo e ministérios tradicionais
diferentes dos praticados pelos capuchinhos, os superiores jesuítas julgaram
que o ‘bem mais universal’ seria mais bem servido pelo espírito de
prudência e conservação do corpo docente da Ordem.
Em
comparação com a abordagem dos jesuítas milaneses às doenças epidêmicas, a
resposta da nossa Igreja contemporânea mostra diferenças instrutivas e
semelhanças reconfortantes. Do lado das diferenças, os jesuítas milaneses
priorizaram a confissão como o sacramento mais coerente com sua segurança. Os
jesuítas teriam ficado intrigados ao ver como algumas paróquias durante a
pandemia efetivamente suprimiram a confissão ou a restabeleceram por último,
depois de todos os outros sacramentos.
Do
lado das semelhanças, os jesuítas do século 16, assim como os pastores
contemporâneos, não hesitaram em restringir os serviços sacramentais quando
confrontados com doenças epidêmicas. Embora alguns, sem dúvida, acabem se
afastando do apego excessivo à vida terrena, há boas razões para pensar que
muitos permaneceram verdadeiramente indiferentes. Considerando imparcialmente
que sua longevidade serviria melhor ao ‘bem mais universal’, eles
exibiam uma espécie de autopreservação altruísta. Gosto de pensar que muitos na
Igreja contemporânea, ordenados ou leigos, também são motivados por esta
indiferença inaciana.
A
estratégia pastoral jesuíta do século 16 sugere como se pode enquadrar a escala
de valores do Evangelho com uma redução dos sacramentos em tempos de praga. Para aqueles jesuítas, a suspensão
sacramental refletia não um medo excessivo do que pode ‘matar o corpo’, mas um
julgamento prudente sobre o que pode salvar mais almas. Até o beato Miguel Pró admitia esse
critério. Logo após perguntar retoricamente se os ‘filhos de Loyola’
poderiam fugir da luta algum dia, ele se conteve com humildade : ‘Não estou
falando em geral; entendo que alguns certamente devem ser poupados, porque
serão muito úteis algum dia’.
As
palavras de Miguel Pro, portanto, têm duas formas. Lembram aos cristãos que
optar pela autopreservação nem sempre é ‘vender’ ou diluir o Evangelho.
Mas também lembram aos cristãos que, do ponto de vista do Evangelho, o objetivo
de se abster dos sacramentos por um período não é viver mais; mas vivendo mais,
sermos mais úteis.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1484257/2020/11/jesuitas-apresentam-guia-para-a-pastoral-em-tempos-de-pandemia/
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