Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)
'Cena de uma Inquisição', de Francisco Goya
*Artigo de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista e mestre em História da Igreja, uma das
poucas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de
Imprensa da Santa Sé
‘Muitos
querem saber por onde começar para estudar a Inquisição. Um tema espinhoso que
requer o máximo de atenção na hora de destrinchá-lo. O famoso tribunal, que
perseguiu hereges por mais de 600 anos, possui várias nuances relativas a seu
processo de estruturação.
Por
isso, farei uma análise sobre os erros que frequentemente cometemos ao
pesquisar sobre o assunto e como criar um percurso para compreendermos melhor a
questão.
A Inquisição surge na
Idade Média, não no Renascimento
Este
é o ponto de partida do nosso estudo : traçar uma linha do tempo para
individuar cada fase da Inquisição. Os tribunais medievais possuem um método;
os do Renascimento, outro. Apesar de historiadores divergirem em reconhecer o
Renascimento como um período histórico, nós, historiadores eclesiásticos,
reconhecemo-lo como tal. E ampliamos seus efeitos, geralmente associados
somente à filosofia e à arte.
Não
pensem que, no século 12 – quando foi oficialmente instituída a Santa
Inquisição –, existiam o Santo Ofício ou os tribunais monárquicos. Nem afirmar
que, em seus primeiros anos, a Inquisição operava ‘universalmente’. Era
algo mais restrito às dioceses.
É
por isso que alguns historiadores chamam esta primeira fase (1184 – 1231) de ‘inquisição
episcopal’, uma vez que ficava a cargo do bispo presidir os processos, não
de um inquisidor nomeado pelo pontífice romano. Em 1199, a heresia – até então,
um desvio de caráter religioso – passa a ser considerada um crimen
lesae majestatis, ou seja, um crime de natureza pública. A partir de então,
defender o ordenamento eclesial significa defender o ordenamento civil.
O
papa Lúcio III, através da bula Ad abolendam (1184), ordenou
que os bispos fizessem uma espécie de ‘censo’ para identificar os focos
de heresia em seus respectivos territórios, como mostra este trecho do
documento :
‘Qualquer
bispo ou arcebispo, sozinho ou através de pessoas idôneas e honestas, uma ou
duas vezes ao ano, façam inspeções nas paróquias nas quais se suspeita que
existam hereges; e obrigue três ou mais pessoas de boa fama, ou, se necessário,
toda a comunidade, as quais, sob juramento, indiquem ao bispo ou ao
arquidiácono (vigário do bispo) se conhecem algum herege, alguém que celebre
reuniões secretas, se isole da vida, dos costumes ou das práticas comuns aos
fiéis’.
Em
1231, o papa Gregório IX ordena que os delegados pontifícios (representantes do
papa) se tornem os inquisidores permanentes. Quatro anos depois, a função passa
a ser desempenhada pelos dominicanos. Mais à frente, em 1246, os franciscanos
entram para o time de inquisidores.
Vale
salientar que, até o século 14, a intenção era combater a heresia ‘prática’
ou publicamente manifestada, não os questionamentos restritos ao debate
teológico. Na idade média, o surgimento de movimentos heréticos eram vistos
como uma ameaça aos planos de universalização da Igreja romana.
Já
nesta fase, os culpados começaram a ser encaminhados ao ‘braço secular’
para aplicação de penas mais rígidas. A práxis seguia a determinação da Igreja
que impedia os clérigos de praticarem a ‘violência cruenta’, ou seja, de
condenar alguém à morte diretamente.
Um
livro bastante interessante, que elenca as principais características dessa
primeira fase da Inquisição, foi escrito pelo historiador italiano Grado
Giovanni Merlo, da Universidade de Milão : Inquisidores e Inquisição na
Idade Média.
E as bruxas?
Sim,
elas foram perseguidas e condenadas, mas não foram o foco principal da
Inquisição. Essa ideia de que os tribunais, em todas as suas fases, se
concentraram numa frenética caça às bruxas se deve, em parte, a uma visão
reduzida de seu papel enquanto sistema repressão.
De
acordo com dados levantados pelo livro Witchcraft and magic in
Europe (Bruxaria e magia na Europa) 40 mil pessoas – e não milhões,
como dizem! –, foram queimadas vivas após terem sido acusadas de pacto
com o diabo. A Igreja Católica amplia o número de condenações à fogueira para
104 mil, dentre as quais, segundo levantamento feito em 2004, 100 contaram com
sua participação na promulgação do veredito.
Muitas
dessas pessoas sequer praticavam o ocultismo, mas eram simples camponeses que
propagavam algum tipo de superstição popular ou curandeirismos, como muitas das
nossas avós hoje em dia.
O
auge da perseguição acontece entre os séculos 15 e 17. Um dos maiores
especialistas no assunto, o historiador Brian Levack, diz que ‘a descoberta
e a eliminação das bruxas – da denúncia à punição – se desenvolvia em âmbito
jurídico’ para conter as tensões sociais, não somente para combater a
heresia.
A fase mais famosa da
Inquisição
A
Inquisição Espanhola, a mais sanguinária de todas, não estava sob a jurisdição
direta da Santa Sé, ao contrário do que se pensa. Apesar de o papa Sisto IV ter
autorizado seu funcionamento a pedido de Isabel de Castela e Fernando II de
Aragão, em 1478, era um tribunal autônomo. Ele foi instalado inicialmente em
algumas cidades do reino de Castela, e não dependia do aval da Igreja para a
execução de seus processos. Os reis podiam nomear seus próprios inquisidores,
inclusive.
O
papa chegou a denunciar os excessos deste tribunal, mas acabou não fazendo nada
para conter sua expansão devido às pressões de Fernando de Aragão. O monarca
ameaçou retirar o apoio militar à Igreja caso a bula para a criação de
tribunais em outros territórios da coroa não fosse promulgada. Após esse
embate, o rei acabou conseguindo o que queria, em 1483.
A
intenção do casal de monarcas era atacar as minorias étnicas e religiosas
(muçulmanos e judeus), vistas como empecilho em meio ao processo de coesão
nacional. Os soberanos foram responsáveis pela conclusão da Reconquista,
movimento que pôs um fim ao domínio muçulmano no território. A unificação dos
reinos de Aragão e Castela pôs as bases para a formação da Espanha, enquanto
reino unificado. Um dos maiores especialistas em Inquisição Espanhola da
atualidade é o historiador Henry Kamen. Vale a pena explorar o tema com ele.
Em
1530, o papa também autorizou a criação da Inquisição Portuguesa, cuja linha de
atuação era muito parecida com a Espanhola. Também posta sob a autoridade
direta do rei, este tribunal nomeava seus inquisidores e também perseguia ‘falsos
convertidos’, ou seja, judeus que, apesar de se professarem cristãos,
praticavam a religião de origem em segredo. O tribunal português também atuou
no Brasil, na Índia e em Cabo Verde. Sobre este tribunal, o historiador
português José Pedro Paiva, pesquisador da Universidade de Coimbra, lançou uma
obra chamada História da Inquisição Portuguesa, e é uma das maiores
autoridades no assunto.
A Inquisição Romana
A
Sagrada Congregação do Santo Ofício, ou Inquisição Romana, propriamente dita,
foi instituída por Paulo III em 1542, com o objetivo de conter ‘a ameaça
protestante’. Foi o tribunal que assumiu, diretamente, a manutenção da
ordem no processo da Contrarreforma.
Segundo
fontes oficiais, foi uma das menos sanguinárias. Os registros apontam que
somente 50 pessoas foram encaminhadas ‘ao braço secular’ para a
aplicação da pena de morte, em meados do século 17. Após esta fase, o tribunal
se restringiu sobretudo às publicações, proibindo a propagação de textos que
não se alinhavam à doutrina católica. O historiador John Tedeschi publicou as
maiores obras de referência relacionadas à Inquisição Romana.’
Fonte : *Artigo na íntegra https://domtotal.com/noticia/1465475/2020/08/inquisicao-um-guia-para-estuda-la/
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