*Artigo
de Evaldo D´Assumpção,
médico
e escritor
Quando
em 1978 tive meu primeiro contato com a Tanatologia, ciência que estuda os
comportamentos diante da morte, com aplicação prática no cuidado dos enfermos
em fase terminal de sua doença e na assistência aos enlutados, fiquei fascinado
com esse trabalho, especialmente na importância que tinha para a melhora
significativa da relação médico-paciente, e nos cuidados dos médicos para
consigo mesmos. Aprofundei-me no seu estudo e tornei-me um dos pioneiros nesse
campo, em nosso país. Nos Estados Unidos e na Europa, ele já era feito e
crescia geometricamente, desde o final dos anos 60.
Comecei
a divulgá-lo através de artigos publicados em revistas leigas e médicas, em
palestras e cursos, e em diversos livros, como o ‘Sobre o viver e o morrer’ e ‘O
Luto’ (Ed. Vozes). Pouco tempo depois, alguns colegas passaram a comentar
jocosamente essa minha dedicação à Tanatologia (tanatos = morte, logia =
estudo), apelidando-me de ‘Doutor Morte’
ou então de ‘O médico amigo da morte’.
Uma evidente ironia para disfarçar seus próprios medos. Descobri então que
médicos e sacerdotes costumam ser mais temerosos da morte do que qualquer
outro. Fazendo palestras em hospitais, com auditórios lotados de enfermeiras e
assistentes sociais, observava a pequena presença de médicos. Geralmente
estavam ausentes aqueles dos comentários irônicos. Perguntando-lhes por que não
participavam, sempre tinham uma desculpa. E, como o desconhecimento é o maior
responsável pelos medos e angústias, eles se privavam de superar o verdadeiro
pânico de que padeciam com relação a nossa irmã morte. Por outro lado, os que
estavam presentes nos seminários e palestras, frequentemente davam-me
gratificantes retornos, dizendo o quanto aprenderam, e como fora libertador para
eles eliminar preconceitos e temores, em sua convivência quase diária com
situações de perdas e morte.
A
morte, em si, não é uma tragédia. Trágicas são certas formas pelas quais ela
acontece. Trágicas são as mortes precoces; trágicas elas são quando fruto de
omissões dos poderes públicos, da carência ou ausência de cuidados
médico-hospitalares adequados; trágicas são as decorrentes da fome e da
miséria. Enfim, trágica é a morte quando fruto da imprudência, da violência, da
irresponsabilidade dos humanos. Já a morte como fase final do transcorrer da
vida, essa não deve ser estigmatizada, pois a vida é um dom imensurável,
contudo já vem com data de vencimento. Não falo de destino nem de
predeterminação, pois neles não acredito, mas das naturais etapas que temos de
percorrer. Nascemos, aproveitamos nossa infância, saboreamos a juventude com
suas dúvidas e naturais limitações, chegamos à fase adulta, quando podemos
compartilhar tantos frutos que colhemos das semeaduras feitas ao longo de nossa
caminhada. Entramos então no período da envelhecência, quando desfrutamos da
sabedoria que somente os anos conseguem nos proporcionar, até chegar à
senescência, que para alguns pode durar vários anos, e para outros nem tanto.
Mas toda forma de vida tem, natural e inevitavelmente, as etapas do nascer,
desenvolver e morrer. Sendo assim, não devemos encarar nenhuma delas como
anormal. Pelo contrário, devemos aproveitar intensamente cada uma, e quando
completar o ciclo, abraçar a irmã morte como a plena realização de uma vida. Quem
o faz, tem uma passagem, uma transformação, um encantamento, como disse
Guimarães Rosa – dê a ela o nome que quiser – tranquila e sem maior sofrimento
pela sua ocorrência. O sofrimento, geralmente é devido a enfermidades
dolorosas, deformantes, limitantes, mas não pela morte em si.
Sofrimentos maiores decorrem do apego desmedido que muitos
desenvolvem, acreditando que são donos de tudo, controladores de tudo, senhores
de tudo. Mas a morte não toma o menor
conhecimento de nossa tecnologia sofisticada, de nossas veleidades, desse nosso
pavor de perder o que tolamente julgamos ser posse inteiramente nossa. Ela
reina absoluta, no seu tempo.
Mas
existe também o sofrimento pela perda do outro. Esse, também causado pelo apego
– pois temos o péssimo hábito de confundi-lo com o amor – e quanto maior o
sentimento de posse, maior será a dor da perda. Para quem assimilou a essência
do amar, quem tem a certeza de que amar é querer o bem do outro, é fazer o
possível para que o outro seja feliz, tendo a certeza de que a felicidade do
outro é a minha felicidade, esse sofre sim, a perda de quem ama. Mas é um
sofrimento que rapidamente se transforma, de uma saudade dolorosa, numa saudade
gostosa. Iremos nos lembrar sim, da pessoa amada, mas nem por isso deixando de
usufruir plenamente a nossa própria vida que continua, pois para sermos felizes
é que fomos criados, e existimos.
Nesse
tempo de quaresma, em que os que creem meditam sobre o maior ato de amor da
história, que foi o doar da própria vida pela vida dos outros, temos uma ótima
oportunidade para refletir sobre tudo isso. Refletir sobre qual é o nosso
relacionamento com a irmã morte, superando assim nossos medos e angustias,
nossa dor e sofrimento pelas perdas que tivermos.’
Fonte
:
Um comentário:
O pérolas finas tem publicado matérias ótimas. Além desta sobre a morte,(que São Bento em sua Regra recomenda lembrarmos dele todos os dias) mas os artigos de Raniero cantalamessa. Parabéns pelo excelencia dos textos trazidos.
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