'Cristo no deserto', de Ivan Kramskoj, 1872
*Artigo
de Mirticeli Dias de Medeiros,
jornalista
e mestre em História da Igreja
Há uma nova
invasão bárbara : a dos 'cristãos' que 'descristianizam' a doutrina de Cristo.
Isso
foi tão levado a sério pelos cristãos dos três primeiros séculos que não é
difícil encontrar entre os escritos dos padres da Igreja algo que represente
esta máxima : onde não há solidariedade e amor ao próximo, não há cristianismo.
É certo que não estamos atribuindo às primeiras comunidades cristãs uma ideia
de perfeição que muitos grupos ideológicos contemporâneos acabaram resgatando.
Porém, historicamente, não podemos negar que os primeiros seguidores do judeu ‘filho do carpinteiro’, condenado como o
pior dos criminosos pelos seus algozes, atraiu um grupo de pessoas convictas.
Nos escritos cheios de vida compostos por testemunhas oculares e
neoconvertidos, essas pessoas encontraram um modo de se libertar dos fardos
interiores impostos pela estrutura social do império romano. Por exemplo : um
estrangeiro não podia participar da famosa distribuição de grãos promovida pelo
imperador por não possuir a cidadania romana. Por isso, acredita-se que o ‘banco de caridade’, criado por algumas
comunidades cristãs do Ocidente, servia para atender justamente essas pessoas.
Inicialmente, o cristianismo surge, portanto, como uma proposta de inclusão,
sobretudo para quem ‘não era ninguém’.
É tanto que Papa Calisto I (155-222) traz em sua biografia um passado que, para
qualquer cidadão romano do período, era condição mais infame perante a qual
ninguém poderia se orgulhar : a de escravo. Isso mesmo : um ex-escravo - ou
liberto, usando a nomenclatura correta - tornou-se um dos mais importantes
papas do período.
A
mensagem cristã apareceu como uma proposta de refrigério em meio a uma
sociedade que divinizava tiranos e massacrava os mais fracos : de repente, uma
doutrina sustentada por lunáticos - como os cristãos eram considerados - chegou
a todas as camadas da sociedade, sem distinção. Os adeptos desse novo movimento
religioso chocavam por chamarem uns aos outros de irmãos - o que lhes rendeu
acusações de incesto; supersticiosos, por seguirem uma seita - já que,
para os romanos, a nova doutrina que se formava não se enquadrava nos
parâmetros da religiosidade tradicional; e por fim, ignorantes por, em sua
maioria, não privilegiarem somente aqueles mais doutos ou homens de posse. A
propósito disso, o filósofo Celso, no seu famoso discurso Celso contra
os cristãos, do século III, escreveu : ‘De
fato, as pessoas desse tipo são dignas do seu próprio deus. Eles (os cristãos)
admitem abertamente que somente os burros, ignorantes, insensatos, escravos,
mulherzinhas e crianças cheguem à tal conversão’.
A
coisa mais contraditória é que, atualmente, não sãos ‘os pagãos’ a se queixarem da abertura da Igreja àqueles que mais
necessitam dela, mas os cristãos ‘barbarizados’
do presente que, através de uma ideologia pautada por um discurso político
travestido de cristão, convocam cruzadas contra pessoas, não contra aquilo que
as ameaçam verdadeiramente : a descrença no amor.
Um
filósofo e historiador italiano do século XVII chamado Giambattista Vico, tido
como autor do conceito de verum ipsi factum - a verdade está
no fato -, foi um dos primeiros pensadores a interpretar a história como
ciência, contrapondo-se corajosamente a Descartes, à época . Vico divide a
história em três fases : a dos deuses (quando o homem se utiliza dos mitos para
interpretar os acontecimentos); a idade dos heróis (quando nascem as
aristocracias) e a idade dos homens (quando os homens operam com a razão,
promovem a reflexão e criam estruturas). Nessa última fase, o escritor
italiano, como grande teórico dos ciclos da história, reflete sobre o retorno à
barbárie. Para ele, quando uma civilização chega ao cume da sua ‘maturidade’ há o grande risco de cair de
novo na barbárie, uma vez que o egoísmo, a renúncia às tradições e a
desagregação promovem lentamente a sua própria decadência, a sua desumanização.
E sobre o nosso cristianismo : estaríamos hoje promovendo o seu caráter
humanizador em nossa sociedade, ou o estamos transformando em instrumento dessa
barbárie politizada?’
Fonte
:
* Artigo na íntegra http://domtotal.com/noticia/1320565/2018/12/cristaos-entre-barbaros-e-humanizados/
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