*Artigo
do Padre Alexander Schmemann,
teólogo e sacerdote cristão ortodoxo
(13.09.1921 – 13.12.1983)
‘De todos os hinos
e orações da quaresma, uma pequena oração pode ser qualificada como ‘A Oração da Quaresma’. A Tradição
atribui sua autoria a um dos maiores mestres da vida espiritual, Santo Efrén o
Sírio.
‘Senhor e Mestre
de minha vida,
afasta de mim o
espírito de preguiça,
de abatimento, de
domínio, de loquacidade,
e concede a mim,
teu servo, um espírito de integridade,
de humildade, de
paciência e de amor.
Sim, Senhor e Rei,
concede ver meus
pecados e não julgar meus irmãos’
porque és bendito
pelos séculos dos séculos. Amém.
Esta oração é
recitada duas vezes ao final de cada Ofício de Quaresma, de segunda a
sexta-feira.
Por que esta
pequena e simples oração ocupa um lugar tão importante em toda a vida litúrgica
da Quaresma? Porque enumera, de um modo singular, todos os elementos positivos
e negativos do arrependimento e constitui, de algum modo, uma espécie ‘checking list’ de nosso esforço
individual de Quaresma. Este esforço aponta primeiro a nossa libertação de
algumas enfermidades espirituais fundamentais que dão forma à nossa vida e que
tornam virtualmente impossível para nós, inclusive, iniciar o nosso retorno
para Deus.
Então, negativos :
. Indolência
. Desalento
. Vanglória
. Loquacidade
(palavras vãs, inúteis)
Indolência
A enfermidade
básica é a indolência. É esta estranha preguiça e passividade de nosso ser que
sempre nos empurra para ‘baixo’, em
vez de nos elevar para o ‘alto’ – que
constantemente nos convence que nenhuma mudança é possível e, portanto,
desejável.
É de fato um
cinismo profundamente enraizado que reage a cada ato espiritual : ‘para que?’ e faz de nossa vida um enorme
desperdício espiritual. É a raiz de todo pecado porque envenena a sua energia
espiritual em sua própria fonte.
Desalento
E o resultado da
indolência é a pusilanimidade, o estado de desalento considerado por todos os
Santos Padres como o maior perigo para a alma. O desalento é a impossibilidade
do homem ver qualquer coisa como boa ou positiva; é a redução de tudo ao
negativismo e pessimismo. É, verdadeiramente, um poder demoníaco em nós, porque
o diabo é fundamentalmente um mentiroso. Ele mente ao homem sobre Deus e sobre
o mundo; ele enche a vida com obscuridade e negação. O desalento é o suicídio da
alma porque, quando o homem é possuído por ele fica absolutamente incapaz de
ver a luz e desejá-la.
Vanglória
Por
estranho que possa parecer, é precisamente a indolência e o desalento que
enchem nossa vida de vanglória. Ao contaminar toda a atitude para a vida e
fazê-la sem sentido e vazia, forçam-nos a buscar compensação numa atitude
radicalmente equivocada para com as outras pessoas.
Se minha vida não
estiver orientada para Deus, não apontará para valores eternos e,
inevitavelmente, se tornará egoísta e egocêntrica, e isto significa que todos
os outros seres se tornarão meios de minha autodestruição.
Se Deus não é o
Senhor e Mestre de minha vida, então eu me torno senhor de mim mesmo, mestre e
centro absoluto de meu mundo, e começo a avaliar tudo em termos de minhas
necessidades,meus desejos e meus juízos.
A vanglória é
então uma depravação fundamental em minha relação com outros seres, uma busca
de sua subordinação a mim. Não é necessariamente expressada num verdadeiro impulso
de dominar e mandar aos ‘outros’.
Pode também se manifestar em indiferença, desprezo, falta de interesse,
consideração e respeito.
Quando a
indolência e o desalento se dirigem aos outros, aí então está verdadeiramente a
vanglória; assim completamos o suicídio e a morte espiritual.
Loquacidade (Palavra
Inútil)
Finalmente, a
loquacidade. De todos os seres criados, somente o homem foi dotado com o dom da
palavra. Todos os Santos Padres vêem na vã palavra o verdadeiro ‘selo’ da Imagem Divina no homem, porque
Deus mesmo se revelou como verbo (Jo 1,1). Porém, na medida em que é dom
supremo, é igualmente prova de supremo perigo. Sendo a mesma expressão do
homem, o meio de sua auto-realização, é por esta mesma razão o meio de sua
queda e auto-destruição, de traição e de pecado. A palavra salva e a palavra
mata; a palavra inspira e a palavra envenena. A palavra é o meio da verdade e a
palavra é um meio da mentira demoníaca. Verdadeiramente, cria, positiva e
negativamente.
Quando é desviada
de seu propósito e origem divina, a palavra se torna inútil e reforça : a
indolência; o desalento; a vanglória.
E transforma a
vida em um inferno, se torna mesmo poder do pecado.
Estes são então,
os quatro ‘objetos’ negativos do
arrependimento. São os obstáculos a serem removidos. Porém, somente Deus pode
removê-los. Portanto, é a primeira parte da Oração de Quaresma – este grito do
fundo do desamparo humano. Logo, a oração se move às atitudes do arrependimento
que também são quatro.
Positivos :
. Castidade
. Humildade
. Paciência
. Amor
Castidade
Se se reduz este
termo (e, freqüentemente é entendido de forma errônea) só às suas conotações
sexuais, é entendido como a contraparte positiva da indolência. A indolência é,
antes de tudo, dissipação, ruptura de nossa visão e energia, a incapacidade de
ver o todo. Seu oposto é precisamente plenitude.
Se, usualmente nos
referimos a castidade como a virtude oposta à depravação sexual, é porque o
caráter destruído de nossa existência é aqui melhor manifestado que na luxúria
sexual. Cristo restaura a plenitude em nós e Ele faz isto ao restaurar em nós a
verdadeira escala de valores ao levar-nos de volta a Deus.
Humildade
O primeiro e
maravilhoso fruto desta plenitude ou castidade é a humildade. Está sobre tudo
mais a vitória da verdade em nós, a eliminação de todas as mentiras nas que
usualmente vivemos. A humildade é em si mesma a verdade, e pode ver e aceitar
as coisas como são e, portanto, de ver a majestade e bondade de Deus em tudo. É
por isso que se nos diz que Deus dá graça ao humilde e se opõe ao orgulhoso.
Paciência
A castidade e a
humildade são naturalmente seguidas pela paciência.
O homem ‘natural’, ou ‘caído’ é impaciente porque, sendo cego para si mesmo é rápido para
julgar e para condenar aos outros. Tendo um conhecimento fragmentado e
distorcido do todo, ele mede todas as coisas por seus próprios gostos e idéias.
Sendo indiferente a todos, exceto a si mesmo, ele quer que a vida seja exitosa
aqui mesmo e agora. A paciência, não obstante, é realmente uma virtude divina.
Deus é paciente não porque Ele é ‘indulgente’,
mas porque Ele vê a profundidade de tudo o que existe, a realidade interior das
coisas que, em nossa cegueira, não conseguimos ver.
E, quanto mais nos
aproximamos de Deus, mais pacientes nos tornamos e mais refletimos este
infinito respeito por todos os seres, que é a qualidade própria de Deus.
Amor
Finalmente, a
coroa e fruto de todas as virtudes, de todo o crescimento e esforço é o amor –
o amor que, como temos dito, só pode ser dado por Deus – este dom que é a meta
de toda a preparação e prática espiritual.
Todo isto é
resumido e reunido na súplica (petição) de conclusão da Oração da Quaresma na
qual pedimos ‘...conhecer minhas faltas e
não julgar a meus irmãos’. Porque, em último caso, só há um perigo : o
orgulho. O orgulho é a fonte do mal, e todo mal é orgulho.
Os escritos
espirituais estão cheios de advertências contra as sutis formas de
pseudo-piedade, as quais, na realidade, sob a aparência de humildade e
auto-acusação, podem levar a um orgulho verdadeiramente demoníaco. Porém,
quando nós ‘conhecemos nossos próprios
erros’ e ‘não julgamos os nossos
irmãos’, quando, noutros termos, a castidade, a humildade, a paciência e o
amor são um só em nós, então, e só então, o último inimigo - o orgulho – terá
sido vencido.
Logo após cada
petição da oração realizamos uma prostração.
A prostração não
se restringe à Oração de Santo Efrén, mas é apenas uma das características
distintivas da vida litúrgica da Quaresma. Aqui, no entanto, seu significado é
dado a conhecer melhor.
No longo e difícil
esforço da recuperação espiritual, a Igreja não separa a alma do corpo. O homem
completo caiu e se afastou de Deus; o homem completo foi restaurado, ele, o
homem inteiro é que deve regressar a Deus. A catástrofe do pecado acha-se
precisamente na vitória da carne – o animal, o irracional, a luxúria em nós –
sobre o espiritual e o divino. Porém, o corpo é glorioso, o corpo é sagrado,
tão sagrado que Deus mesmo ‘fez-se carne’
Jo 1,1.
A salvação e o
arrependimento não são desprezo do corpo ou sua negação, mas a restauração da
sua verdadeira função como a expressão e a vida do espírito, como o templo da
alma humana que não tem preço.
O ascetismo
cristão é uma luta, não contra, mas em favor do corpo. Por esta razão, o homem
completo - alma e corpo – se arrependem. O corpo participa na oração da alma
assim como a alma ora através e no interior do corpo.
A prostrações :
signo ‘psicossomático’ do
arrependimento e da humildade, da adoração e da obediência são, desta forma, o
rito de Quaresma por excelência.
Deus nos permita
viver esta Quaresma de modo adequado. Que Ele nos fortaleça para que cheguemos
a ter em nós a humildade, a castidade, a paciência e o amor.
Este é o convite!
Em ti está a decisão de segui-lo!’
Fonte :
* Artigo na íntegra https://www.ecclesia.com.br/biblioteca/espiritualidade/a_oracao_de_santo_efren.html
Tradução : monges da Comunidade Monástica São João, o Teólogo
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