*Artigo de Dom Walmor Oliveira de Azevedo,
Arcebispo
Metropolitano de Belo Horizonte, MG
‘A
passagem de 2015 para 2016, com a contagem dos dias do novo ano civil, incide
diretamente nos propósitos pessoais e nas possíveis reações que buscam novos
funcionamentos, transformações nas relações, nos hábitos e na governança, em
diferentes segmentos da sociedade. Considerando o legado desolador deixado pelo
ano que passou, é hora de efetivar mudanças. Particularmente neste terceiro
milênio, os horizontes da democracia e dos admiráveis avanços científicos e
tecnológicos contracenam com os rios de lama da corrupção, dos desvarios no
mundo da política, da submissão de poderes a interesses partidários e
cartoriais, dos abomináveis desastres ambientais e humanitários. Para
transformar esses cenários desoladores, não bastam as mudanças em propósitos e
hábitos pessoais. A renovação das consciências é minimamente presumível para
que seja superado o descaso com que se costuma tratar a vida e as coisas na
sociedade brasileira.
Se não houver
mudança de conduta, haverá o comprometimento do bem e da justiça. Os mais
pobres e indefesos sempre pagam o preço mais alto. Bem no início desta contagem
do ano novo de 2016, em meio ao tratamento dos problemas que continuam gerando
suas consequências e preços a pagar, é urgente considerar que a crise das
crises - a crise motora de todas essas outras em curso - é a de caráter
antropológico. Não diz respeito apenas a funcionamentos comuns e nem mesmo se
resolverá com mudanças de nomes ou substituição de legendas partidárias. A
crise, quando de caráter antropológico, é algo mais sério e profundo. Exige
novos entendimentos e grande investimento na configuração mais consistente do
tecido cultural.
Assim, não basta
resolver o caos perpetuado na sede dos poderes. Lá estão urgências que precisam
de novas e velozes reconfigurações. Mas é necessária uma revolução cultural na
sociedade brasileira, a partir de análises, assessorias especializadas,
engajamentos mais efetivos dos centros de pesquisa, formação e educação, como
universidades e escolas, com a participação decisiva e insubstituível dos
formadores de opinião, diversos meios de comunicação, não podendo ficar de fora
os produtores, instâncias e segmentos culturais. A revolução cultural almejada
não é um movimento político partidário e nem se reduz a formas e dinâmicas de
governo. Trata-se de investir e conquistar entendimentos novos sobre a própria
realidade histórico-cultural, promovendo clarividências. Todos precisam compreender melhor a sua missão
e vocação para efetivar, a partir de riquezas próprias, por vezes desprezadas,
desconhecidas e maltratadas, novo conjunto de hábitos.
São urgentes novas
posturas políticas, ousadia em empreendimentos e no tratamento das prioridades
dos segmentos do povo para constituir um substrato cultural com consistência e
força para poder debelar descompassos.
Desse modo, poderão ser consolidadas dinâmicas saudáveis do viver
cotidiano, que promovem o desenvolvimento sustentável, equilíbrio na gestão e
governanças inteligentes. O processo de enfrentamento da grande crise
antropológica parece não poder ser tratado senão a partir de ações nos muitos
contextos regionais do Brasil. No horizonte do país com dimensões continentais,
precisam ser feitas análises e verificações no tecido cultural de cada região.
A gigante realidade cultural brasileira precisa de resgates pontuais e
incidentes nos seus substratos. No conjunto da crise antropológico-cultural
estão os rasgões na diversidade que configura a unidade do povo.
A cultura é que
sustenta a sociedade na conquista de progressos, na consolidação da
inteligência indispensável para tratar os anseios do povo, particularmente as
prioridades de quem é mais pobre, com oferta de educação, saúde, lazer e meios
para fortalecer valores indispensáveis na composição do que é a nação
brasileira. Os líderes governamentais, educacionais, políticos, culturais e
religiosos são desafiados a olhar o conjunto de sua realidade sociocultural e
definir, com sabedoria, os investimentos prioritários, parcerias que façam
aumentar os tradicionais patrimônios - culturais, religiosos e educacionais -
que têm força para contribuir com as transformações capazes de dar ao país novo
rumo.
As reformulações
mais profundas não virão simplesmente das intenções de planos governamentais. É
hora de tratar - de modo técnico, científico e educativamente - os substratos
que alavancam ou esvaziam a cultura de cada região. Trata-se de, a partir da
reconfiguração dos contextos locais, desencadear operação mais revolucionária
no conjunto da cultura brasileira. Muitos são os itens que precisam ser
elencados para análise e tratamento. Entre eles está a consciência de ‘pertença’
ao povo. Urge nesse caso, especialmente, quando uma região é enriquecida por
muitos e diferentes traços culturais, a superação de um tipo de deboche -
superficial e ridículo - que parece colocar de fora das próprias fronteiras o
que é a riqueza do seu território.
Chama a atenção
quando uma região se deixa tratar apenas como destino extrativista e desrespeita
valiosos substratos da própria cultura. Uma visão distorcida, que considera
importante e interessante apenas o que está e o que se edifica fora do próprio
território. Isso acaba por sustentar dinâmicas que vão habituando o conjunto da
população a não tratar adequadamente seu patrimônio e a não mais investir em
empreendimentos com força para fazer avançar a sua história. Nesse caminho,
despreza-se o potencial turístico local, desconsiderando seus valores
culturais. Abre-se mão das riquezas regionais.
Líderes de
diversas áreas devem investir e apoiar projetos capazes de valorizar
equipamentos ambientais e culturais, legados da história e da natureza, com
força de projeção internacional. Dos governantes e políticos locais, é esperado
que busquem, inteligentemente, no cenário nacional, caminhos para melhorar a
infraestrutura de sua região, a partir do diálogo e do respeito aos outros.
Assim é possível fazer, por exemplo, da malha rodoviária de seu território um
verdadeiro jardim, e não cenários de abomináveis desastres fatais. Dos
educadores e produtores da cultura, são esperados mais diálogo e cooperação
efetiva, para fortalecer redes educativas, mecanismos que valorizam as
tradições, riqueza inigualável. Dos líderes religiosos, são demandadas mais inventividade
e abnegação para preservar o patrimônio da fé. Do menos ao mais influente
socialmente, pede-se o diálogo que leva à cooperação mútua, alimentada por
valores já existentes nas práticas familiares e religiosas.
A ladainha do que
é necessário reconfigurar no substrato cultural é grande, pode ser acrescida
com novos itens por todos. Conta agora compreender a crise antropológica e
reagir com ardor para aperfeiçoar recursos, dar velocidade a projetos,
priorizar as necessidades dos pobres. É hora de uma revolução cultural,
tratando sabiamente as incontestáveis falências para, assim, iniciar reações
indispensáveis.’
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