Por Eliana Maria
(Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Corria o ano de 1858 e Dom Bosco, já conhecido nos ambientes
eclesiásticos e políticos italianos, estava em audiência com o Papa Pio IX para
lhe apresentar seu projeto de fundação de uma congregação moderna que se
dedicasse à educação da juventude. O Papa ouviu-o por um longo tempo e com
muito interesse. Quis saber como ele tinha chegado àquela decisão e, no fim,
depois de ter dado o seu pleno consentimento, exortou-o a escrever tudo o que
lhe havia contado.
Alguns anos se passaram e em 1867 Dom Bosco foi novamente falar com o
Papa; quando este lhe perguntou se ele já havia escrito a autobiografia, teve
de responder que não, por causa do muito trabalho. ‘Bem!’, disse o Papa, ‘se é
assim, deixe todas as outras ocupações e comece a escrevê-la. Pois agora não se
trata somente de um conselho, é uma ordem’. Dom Bosco finalmente resolveu
escrever Memórias, uma autobiografia que vai até a idade de 40
anos, pois não conseguiu terminá-la como era seu desejo diante do pedido do
Papa. Temos o suficiente para compreender como ele se deixou guiar por Deus na
construção de sua obra.
Nasceu aos 16 de agosto de 1815 em Becchi, Castelnuovo d’Asti. O pai
Francisco era casado em segundas núpcias com Margarida Occhiena e deixou-o
órfão com a idade de 2 anos. Mesmo entre dificuldades econômicas, a mãe viúva
com três rapazes, dentre os quais um era do primeiro casamento do marido, não
quis casar novamente para poder se dedicar a eles inteiramente.
Um sonho inesquecível
O pequeno João tinha apenas 9 anos quando viu em sonho, no campo em
frente da casa, uma turma de rapazes que estavam brigando entre gritos e
blasfêmias. Horrorizado, atirou-se sobre eles, dando murros naqueles que podia
alcançar. De repente, apareceu-lhe um homem de um semblante brilhante que lhe
disse : ‘Deverás torná-los amigos com bondade e caridade, não batendo neles…’.
Perguntou-lhe quem era ele, ao que o homem respondeu : ‘Eu sou o filho daquela
que tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia’.
‘Naquele momento’, conta Dom Bosco, ‘vi, próxima dele, uma senhora
majestosa, vestida com um manto que brilhava em todas as direções, como se cada
ponto fosse uma estrela muito brilhante’. A senhora fez sinal para que ele se
aproximasse, pegou-o pela mão e convidou-o a olhar para o jardim, então, ele
não viu mais os rapazes de antes, mas, em seu lugar, uma quantidade enorme de
cabritos, cães, gatos, ursos e muitos outros animais.
‘Eis o teu campo’, disse a senhora, ‘o lugar onde deves trabalhar.
Crescer humilde, forte e robusto, e isto que vês acontecer a estes animais, tu
o deverás fazer pelos meus filhos’. ‘Olhei ainda’, conta Dom Bosco, ‘e eis que
no lugar dos animais ferozes apareceram outros tantos cordeiros mansos, que
saltavam, corriam, baliam, faziam festa ao redor daquele homem e daquela
senhora. Naquele ponto, no sonho, comecei a chorar. Falei com a senhora que não
entendia todas aquelas coisas. Então, ela colocou a sua mão sobre a minha
cabeça e me disse : ‘No tempo certo, compreenderás tudo’. Tinha apenas dito
essas palavras e um barulho me acordou. Tudo havia desaparecido’.
Foi preciso um bonito sonho para imprimir na mente de uma criança algo
inesquecível. Ele logo foi contar aos irmãos, mas foi motivo de gozação;
contou-o à mãe, que entreviu um sinal da sua futura vocação ao sacerdócio, e
quis também saber o parecer da avó. Ela comentou sabiamente que não havia necessidade
de acreditar em sonhos. João não pensou mais naquilo.
No entanto, não perdia tempo : reunia no campo colegas e para eles
improvisava como um prestidigitador e saltimbanco e, depois de tê-los
divertido, repetia-lhes o sermão que havia escutado na igreja no domingo. E não
eram só os pequenos que acorriam, muitas vezes vinham também os pais e as mães
encantados em ver as piadas, as brincadeiras e mais ainda em escutar as suas
palavras. Mesmo quando precisava distanciar-se de casa para trabalhar como ajudante
no sítio Moglie, continuou a reunir ao seu redor os jovens do lugar.
O seu interesse pelas coisas da fé e seu talento chamaram a atenção de
um sacerdote, Dom Calosso, que lhe custeou os estudos, mas sua morte repentina
deixou-o novamente sozinho e sem ajuda. Precisou voltar ao trabalho,
abandonando os estudos, que retomou somente aos 16 anos, mas, com sua vontade
persistente e a inteligência brilhante, conseguiu completar em quatro anos o
ensino fundamental e então já podia iniciar os estudos no seminário.
Sacerdote ou missionário?
Mas era essa a sua vocação? Ele desejava tornar-se sacerdote, mas queria
ser também missionário. Não era melhor tornar-se franciscano? Diante dessa
indecisão, o pároco pensou em obter a colaboração decisiva da mãe,
mostrando-lhe que um filho padre lhe seria uma ajuda também econômica. A mamãe
Margarida ouviu com respeito as palavras do sacerdote, como era seu costume,
mas depois tomou a decisão, como sempre fazia, sozinha diante de Deus. Foi até
o filho e lhe disse : ‘Tu não deverás te preocupar comigo. Eu nasci pobre, vivi
como pobre e quero morrer pobre. Se tu te tornares um padre secular e por
desgraça ficares rico, não colocarei os pés na tua casa nem que seja somente
uma vez. Não te esqueças disso’.
Após ter orado e meditado longamente e ter pedido conselho aos mais
velhos, João, aos 20 anos, entrou como externo no seminário. Para pagar a
pensão foi preciso trabalhar todas as noites como ajudante em diversas
profissões : alfaiate, padeiro, carpinteiro, ferreiro, sapateiro, conforme as
oportunidades se apresentavam. Deus assim o preparava para fundar um dia as
escolas profissionais para os jovens. Nos dias festivos se ocupava com os
jovens e para eles fundou a Sociedade da Alegria, quase um prelúdio do
oratório, colocando as bases de um dos eixos do seu método educativo : o
ambiente de alegria.
O estudo lhe agradava e ele aproveitou para adquirir uma sólida cultura.
Sua paixão era ouvir os professores, ler os livros de Teologia, e logo
imaginava como traduzir essas riquezas doutrinais numa linguagem à altura dos
jovens e como lhes tornar agradável. Para ele foi importante o encontro com São
José Cafasso, que se tornou seu mestre e confessor quando, terminados os
estudos do seminário e ordenado sacerdote em 1841, por ele foi levado ao
colégio eclesiástico de Turim para aprimorar a formação com os estudos de
teologia moral.
Lá, Dom Bosco conheceu a fundo a espiritualidade de São Francisco de
Sales e de Santo Afonso Maria de Liguori. Os dois santos lhe forneceram os
elementos inspiradores de sua espiritualidade.
O oratório e as primeiras oposições
Durante aquele período, exatamente aos 8 de dezembro de 1841, Dom Bosco
iniciou oficialmente o oratório. A balbúrdia que os jovens faziam não foi bem
aceita pelos ‘bem comportados’, por isso ele teve continuamente de ir de um
lugar para o outro, à procura de uma sede, até que em Valdocco pôde aos poucos,
em meio a dificuldades, implantar sua obra : o oratório festivo, o internato
para estudantes e artesãos, a igreja etc. Entretanto, antes de chegar a esse
ponto é bom conhecer algumas das dificuldades pelas quais passou.
O governo liberal-maçônico do Piemonte não via com bons olhos aquele
sacerdote rodeado de mais de quatrocentos jovens, quase todos eles de condição
humilde, que o seguiam com entusiasmo e obedeciam prontamente a cada aceno seu.
Pessoas influentes procuraram convencê-lo a dissolver o oratório, mas foi em
vão. Outros usaram métodos mais desumanos, organizando emboscadas anônimas e
espancando-o. Tudo em vão. Então, interveio o chefe da polícia, um certo
Michel, pai do famoso Camillo Benso, conde de Cavour, para emitir ordem de
fechamento do oratório por motivos de ordem pública.
Também dessa vez a providência veio em sua ajuda por meio do próprio rei
Carlos Alberto que, conhecendo pessoalmente Dom Bosco e estimando-o pelo que
fazia entre os jovens, não o permitiu.
Os adversários não se renderam : passaram a intimidar os jovens,
controlando suas atividades dentro e fora da igreja, mas o resultado foi que os
guardas faziam também fila entre os jovens para se confessar com Dom Bosco.
As dificuldades mais dolorosas lhe vieram dos párocos de Turim, que o
culparam de lhes tirar os jovens das paróquias. Dom Bosco respondeu : ‘A maior
parte desses jovens que recolho são forasteiros. Seus pais vieram para a cidade
à procura de trabalho. Não o tendo encontrado foram embora e os deixaram aqui.
Ou então são jovens vindos sozinhos para a cidade à procura de ocupação. São
saboianos, suíços, valdostanos, bielesos, novareses, lombardos’.
A situação da época era triste. O desenvolvimento industrial de Turim
atraía muita gente da zona rural, mas, muitas vezes o sonho de um lucro fácil
se transformava numa amarga experiência de miséria e de fome. Os jovens, na
maioria analfabetos e sem emprego definido, sempre caíam nas mãos de patrões
desumanos, quando a desgraça não os deixava a vagar pelas estradas levando-os
ao latrocínio para sobreviver e depois terminando nas prisões.
Sobretudo para eles, Dom Bosco havia fundado a sua obra, mas muitos não
o compreendiam. Para os homens do governo era um líder perigoso de uma massa
explosiva ‘que podia ser usada para rebelião e revolução’; para muitos pastores
da Igreja, ele era um concorrente desleal.
Por sorte, Dom Bosco encontrou o apoio de alguns sacerdotes mais abertos
à novidade do Espírito, como Cafasso e Borel, e, sobretudo, teve o apoio
decisivo do Arcebispo Fransoni. Ele aprovou o oratório como a paróquia dos
jovens sem paróquia. Num momento de grande perseguição, quando todas as portas
se fechavam diante de Dom Bosco, que não conseguia encontrar nem mesmo um palmo
de terra para reunir os jovens, até Dom Borel o convidou a fechar o oratório,
pelo menos por um ano, a fim de que fosse aplacada a ira dos adversários. Dom
Bosco lhe respondeu decididamente que não : ‘Nós já temos uma sede : um pátio
amplo e espaçoso, uma casa pronta para muitos jovens, com igreja e fachada. E
há padres e religiosos prontos para trabalhar conosco’. ‘Mas onde estão essas
coisas?’, interrompeu Dom Borel. ‘Não o sei. Mas sei que existem e estão à
nossa disposição.’ Então, Dom Borel interrompeu-o em prantos e exclamou ‘Pobre
Dom Bosco’ e foi-se embora. A notícia de que Dom Bosco, devido ao excesso de
trabalho, tivesse perdido o juízo, fez com que dois sacerdotes amigos quisessem
levá-lo para um manicômio para se curar. Ele mesmo relata o divertido episódio :
‘Logo percebi a brincadeira que queriam fazer comigo e, fingindo que nada
sabia, acompanhei-os até a carruagem. Insisti para que eles entrassem primeiro.
Quando entraram, em vez de segui-los, fechei rapidamente a porta e disse ao
cocheiro : ‘Toca depressa para o manicômio. Lá estão esperando por estes dois
padres’’.
Outro sonho profético
Quem garantia a Dom Bosco a certeza de que sua obra era destinada a
continuar e que ele teria numerosos colaboradores? Tinha visto, em outro famoso
sonho, que entre os rapazes ‘muitos cordeiros transformavam-se em pequenos
pastores que, crescendo, tomavam conta do rebanho’. Deus fará nascer então uma
numerosa multidão de sacerdotes com o seu mesmo ideal e não de sacerdotes
somente, mas também de leigos cooperadores e de freiras.
Uma família espiritual que, das antigas ordens religiosas, conservará só
a totalidade da doação a Deus, pois, quanto às realizações práticas, deverá ser
de acordo com as necessidades dos jovens e responder às exigências do mundo
moderno. Por isso ele, ao colocar as bases da espiritualidade, escolheu como
modelo São Francisco de Sales, que nos seus escritos propõe um modelo de
santidade adaptado a todos e especialmente a quem vive em meio das ocupações
temporais. Outra característica daquele santo que atraía Dom Bosco era a
mansidão, uma virtude indispensável para quem quer levar os jovens a Deus.
Dom Bosco também se inspirou na espiritualidade de Santo Afonso de
Liguori. Da escola de Cafasso, apreciou a profunda humanidade desse santo
napolitano que tanto o ajudou na confissão e na direção espiritual dos jovens.
Aspectos de um espiritualidade moderna
Escolheu para si e para os jovens uma espiritualidade moderna e a
completou com algumas características próprias. Antes de tudo, a convicção de
que todo trabalho, feito de acordo com a vontade de Deus e para o bem do
próximo, por si é uma oração. O dito dos antigos monges, ‘ora et labora’
(‘reza e trabalha’), foi substituído pelo seu : ‘o trabalho é oração’. Abria,
assim, um novo caminho para a santidade de todos os leigos, também daqueles que
exercem profissões consideradas mais humildes.
Uma segunda característica é a alegria. Ele colheu o aspecto alegre da
fé e dele fez o ambiente normal para formar seus rapazes e jovens. A alegria se
exprimia também na festa exterior com tudo aquilo que esta comporta, sobretudo
num ambiente juvenil, mas, para Dom Bosco, era algo mais profundo : a alegria
espontânea e genuína que jorra do interior de quem está com Deus e com o
coração puro, por isso, inculcava a seus jovens a confissão e a comunhão
frequente e uma profunda devoção a Maria.
Uma terceira característica era a fidelidade ao Papa. Num tempo de
grandes agitações sociopolíticas, nas quais, juntamente com a queda do poder
temporal do Papa, anunciava-se também a extinção do próprio papado, Dom Bosco
deixou aos seus filhos o compromisso de fidelidade a toda prova ao carisma de
Pedro.
Sobre essas bases, a família salesiana foi tomando consistência e
crescendo. Em 1859, nasceu oficialmente a Pia Sociedade Salesiana, o ramo
masculino de sua obra, e, em 1872, nasceu também o das Filhas de Maria
Auxiliadora; em 1875, começavam as missões salesianas na América Latina; no ano
seguinte, constituía-se a Pia União dos Cooperadores Salesianos e, em 1877,
iniciava a impressão do Boletim salesiano.
Dom Bosco havia imprimido muitos livros e alguns deles, como a A
história sagrada, foi por muito tempo verdadeiro best-seller.
Fundou também uma tipografia e uma editora que se tornaram depois famosas.
Quando, em 1887, inaugurou em Roma a Basílica do Sagrado Coração,
construída por vontade do Papa, encheu-se de alegria, pois todos os seus sonhos
tinham sido realizados. No dia 31 de janeiro do ano seguinte, faleceu, mas
então sua obra já havia sido difundida.’
Fonte : *Artigo na íntegra
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