Por Eliana Maria
(Ir. Gabriela, Obl. OSB)
‘Recebi um pequeno
vídeo em que o filósofo e educador Rubem Alves (1933-2014) fala sobre o
sofrimento na mentalidade católica. Teólogo presbiteriano, professor da
Unicamp, dedicado aos temas de educação e filosofia, ele foi um dos mais
brilhantes e simpáticos intelectuais brasileiros de sua geração. Representava
um humanismo em diálogo com o cristianismo, otimista e carregado de afeto. Nem
por isso estava correto em tudo aquilo que dizia.
No
vídeo, Rubem Alves diz que tem ‘um grilo sério com gente de convento, porque
toda a nossa tradição espiritual ocidental, é baseada no sofrimento’ e que as
pessoas religiosas, ao irem fazer promessas, oferecem coisas sofridas e não
coisas prazerosas… Bem, em primeiro lugar é preciso recordar que ele falava de
coisas com as quais não estava familiarizado (como presbiteriano tinha pouco
contato com a vida monástica e conventual), repetindo preconceitos muito em
voga na sua época (difundidos inclusive por católicos com uma visão distorcida
da própria Igreja).
Contudo,
esse preconceito, apesar de datado, ainda hoje se reflete na visão que muitos
católicos e não católicos têm sobre o vínculo entre religião e sofrimento.
Sendo assim, o tema vale algumas considerações. Como sempre, saliento que meus
comentários são os de um sociólogo buscando entender a mentalidade de nosso
tempo, não os de um teólogo dando catequese…
O medo irracional à dor
A
cultura moderna e pós-moderna desenvolveu um verdadeiro horror ao sofrimento e
à dor. Ninguém, em tempo algum, gosta de sofrer, sentir dor ou lidar com a
morte. Mas, em nosso tempo, vivemos uma esperança utópica de chegarmos, ainda
nessa vida, a um paraíso utópico onde não haverá mais dor, nem sofrimento, onde
tudo será perfeito e todos seremos permanentemente alegres e felizes – uma
realização atualizada da ‘terra sem males’, dos povos originários da América do
Sul. A dura realidade cotidiana dos pobres, dos fracos e dos doentes se tornou,
com inegável justiça, motivo de escândalo e indignação. E, quando se trata de
almejar a felicidade, frequentemente ignoramos os choros e tristezas dos ricos,
dos famosos e saudáveis – sinal inequívoco que o sofrimento, como a chuva, cai
sobre bons e maus, ricos e pobres, sãos e doentes, sobre os que têm e sobre os
que aparentemente não têm motivo para sofrer.
O
passar do tempo e a desilusão com as muitas utopias em voga no século XX nos
explicam a sabedoria da Igreja : a questão não é fugir dos sofrimentos, devemos
combater aqueles que podem ser evitados, mas não todos, pois muitos são
inevitáveis… E, para o sofredor, no auge do sofrimento, sua dor sempre parece
maior do que todas.
O sofrimento é superado pelo amor
Dificilmente
encontraremos, no catolicismo contemporâneo, um documento sobre o tema mais
profundo e grandioso que Salvifici doloris, de São João Paulo II. Publicada
em 1984, três anos depois do atentado que quase o matou e comprometeu
seriamente sua saúde, não é apenas uma reflexão teórica sobre o sofrimento, mas
reflete a própria experiência espiritual do Papa.
O
texto, em síntese, propõe que o ser humano não pode escapar do sofrimento, mas
foi feito para superá-lo; ser capaz de descobrir a felicidade não tentando
fugir ou se esquecer da dor, mas aprendendo a conviver com ela, dando-lhe um
sentido. Deus, conhecendo os sofrimentos humanos, não faz um milagre global que
o encerre, mas dá seu próprio Filho, para que Ele padeça com as maiores dores
humanas. Não é o caminho de evitar o sofrimento, mas sim aquele que descobre o
seu significado, vendo-o como parte do diálogo de amor entre nós e Deus, entre
nós e aqueles que amamos, as coisas que nos cercam e os desafios que
enfrentamos.
A
superação do sofrimento se dá na descoberta de seu sentido : poder vê-lo como
gesto de amor, encontrar – na própria dor – os sinais do amor que nos acolhe e
com o qual procuramos acolher aos demais. Aos que se julgam poderosos e inabaláveis,
evitar o sofrimento pode parecer uma alternativa viável. Para o pobre, o
doente, o fraco e o sofredor, a única alternativa realmente viável é oferecer a
própria dor, encontrar nela os sinais do amor que pode dar-lhe sentido.
O
catolicismo não fala do sofrimento porque seus religiosos gostem de sofrer ou
gostem de fazer os outros sofrerem. Falam do sofrimento porque o amor ao ser
humano, tal como é a sua vida, nos obriga a olhar para o sofrimento e buscar o
seu sentido.
Acolher o pobre que sofre
Uma
outra faceta dessa questão é um certo apego a uma espiritualidade centrada na
dor que acompanha particularmente os povos latinos, tanto no Velho quanto no
Novo Mundo. Um perfil inegavelmente emotivo nos faz procurar a identificação de
nosso sofrimento com aquele dos santos e do próprio Cristo. A arte religiosa
barroca está repleta de imagens de Jesus torturado e sofrendo, santos
convulsionados pela dor e coisas assim.
Essas
imagens parecem encurtar a distância entre nós e Deus. Parece ser mais fácil
crer que somos compreendidos e que seremos confortados, nessa vida ou na outra,
quando imaginamos os sofrimentos de Cristo e dos santos. Entre os pobres e os
doentes, o próprio sofrimento parece ser a última coisa a ser ofertada. Como
pode um doente terminal oferecer coisas prazerosas e seu cotidiano se tornou um
permanente martírio no caminho para a morte? Que pode o pobre injustiçado
oferecer pelo bem de seu filho? Uma beleza e uma alegria que não tem?
A
Igreja, em sua sabedoria, não fala do sofrimento por comprazer-se dele, mas sim
porque seu coração de Mãe se volta, antes de tudo, para aqueles seus filhinhos
para os quais nada mais restou no mundo além da própria dor. Esses são os
últimos, que para ela são os primeiros. Seu caminho de superação do sofrimento não
representa um remoer-se em tristeza, mas o sinal mais luminoso de que o amor
pode trazer a alegria em qualquer situação.
Um exercício ascético
Voltando
ao vídeo, Rubem Alves fala que ninguém oferece a Deus coisas boas, só coisas
dolorosas. Não é verdade, ainda que – como vimos – a dor seja muitas vezes a
única oferta possível ao sofredor. Mas muitos oferecem a própria alegria a
Deus, só que nesses casos, a oferta vem, naturalmente, mais ligada ao
agradecimento que ao pedido.
Existe,
contudo, mais uma questão a ser abordada nesse tema. Todo caminho ascético,
assim como todo treinamento esportivo, implica em esforço. Todas as religiões,
não só o cristianismo, desenvolveram práticas que mortificam o corpo para
desenvolver o espírito. Jejuns, abstinências, posições inicialmente incômodas
fazem parte dos exercícios ascéticos até mesmo de pessoas agnósticas que
procuram um aperfeiçoamento espiritual.
Nesse
sentido, a Igreja recomenda que exercícios ascéticos sejam escolhidos como
ofertas para Deus, quando se fazem promessas. Mas, mesmo nesses casos, o
magistério católico lembra que Deus nos atende por um ato de amor gratuito, não
‘compramos’ a graça com nossos esforços. Uma ideia de ofertar coisas dolorosas
só por serem dolorosas, sem valor ascético, pode estar presente na
religiosidade popular, mas não corresponde a nenhum ensinamento católico.
Além
disso, no caso do cristianismo, sempre valem as admoestações : ‘o sacrifício
que apraz ao Senhor é o coração contrito’ (Sl 51, 17); ‘é amor que eu desejo e
não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que holocaustos’ (Os 6, 6). É o
amor que supera o sofrimento; ele, o amor, é a única oferta que Deus quer
realmente de nós.’
Fonte : *Artigo na íntegra
https://pt.aleteia.org/2023/09/24/a-mentalidade-catolica-e-o-sofrimento/
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