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quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Shevchuk: a Grande Fome queria matar desejo de liberdade dos ucranianos

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
Pessoa coloca trigo diante da estátua da 'Memória Amarga da Infância', de Petro Drozdowsky, no complexo do Genocídio Holodomor do Museu Nacional em Kiev. (Photo by Oleg Petrasyuk)

*Artigo de Svyatoslav +

Pai e Primaz da Igreja Greco-Católica Ucraniana


‘Transcorre a 93ª semana da grande guerra que o ocupante russo trouxe à nossa pacífica terra ucraniana. Ao longo de toda a linha da frente, a tensão nos combates persiste sem tréguas. O inimigo bombardeia constantemente cidades e aldeias ao longo das fronteiras das nossas regiões de Chernihiv, Sumy e Kharkiv. Onde quer que possa estender a sua mão assassina, o inimigo continua a atacar as pacíficas cidades e aldeias da Ucrânia.

No Dia da Memória do Holodomor, quando a Ucrânia recorda o 90º aniversário da grande fome e do genocídio, a nossa cidade, Kiev, a nossa capital, foi palco do mais massivo ataque de drones na história da guerra. Esta luta atual, este confronto com o mal que a Ucrânia trava hoje, tem todos os sinais de uma batalha espiritual.

Sabemos que na guerra espiritual, quando uma pessoa que crê enfrenta as forças do mal, essas forças podem ser extremamente poderosas e o seu ataque pode ser intensamente forte. No entanto, a vitória contra o mal é definida como resiliência. Vence quem não se rende. Vence quem não abaixa as mãos. Vence quem resiste neste confronto.

Não podemos destruir os espíritos do mal nos espaços celestiais, mas podemos opor-nos ao seu ataque, que nunca é eterno, nem sempre forte, mas temporário. Observamos hoje uma situação semelhante na Ucrânia. O inimigo quer desgastar o nosso povo, quer nos fazer perder a fé, nos desanimar e deseja a nossa rendição. No entanto, a Igreja ucraniana, as nossas Igrejas e organizações religiosas permanecem como portadoras de esperança. Levamos conosco Cristo, que é a fonte da resiliência do nosso povo. É por esta razão que resistiremos como nação, como Estado, como povo de Deus. Hoje, queremos dizer a nós mesmos e ao mundo inteiro : a Ucrânia resiste, a Ucrânia luta, a Ucrânia reza!

Noventa anos desde a grande carestia e genocídio na Ucrânia. Esta última é uma data triste e dolorosa. O regime de Stalin matou mais de sete milhões de ucranianos pela fome artificial. Esta carestia era artificial porque, embora as terras ucranianas tivessem produzido colheitas abundantes naquele ano, as autoridades soviéticas confiscaram tudo.

Esta carestia foi um verdadeiro genocídio, uma vez que o Estado tinha a intenção deliberada de matar os ucranianos como nação, como povo, como cultura. A Grande Fome teve como objetivo não apenas matar o corpo, mas também semear um medo paralisante em relação ao desejo de liberdade.

A Grande Fome tinha por objetivo matar permanentemente o desejo dos ucranianos de serem eles mesmos, o desejo de serem pessoas livres.

E, infelizmente, esse trauma, que é um trauma espiritual, assim como um trauma psicológico, tem a propriedade inerente de ser transmitido de geração em geração. E, infelizmente, constitui uma parte da nossa situação atual, da nossa identidade, a de uma nação pós-genocídio. É por isso que hoje é tão importante lembrar e homenagear aqueles que foram inocentemente mortos pela fome na Ucrânia.

Mas este ato de recordação e comemoração tem um efeito terapêutico e curativo. A recordação nos liberta. A memória nos faz compreender que ser nós mesmos não só é possível, mas também necessário. Não somente é legítimo desejar a liberdade, mas o Senhor Deus nos dá esta liberdade como seu dom. O dom da dignidade, o dom da liberdade. É por isso que os ucranianos estão profundamente gratos a todos aqueles que hoje, juntamente connosco, prestam homenagem às vítimas desta grande catástrofe, que tocou os próprios alicerces da humanidade.

Este trauma superou em muito as fronteiras do povo ucraniano. Estamos gratos a todos os países que reconhecem o Holodomor como um genocídio. Mais de trinta nações em todo o mundo já comemoram esta ferida e a dor da Ucrânia.

Podemos observar que a atual guerra que a Rússia está travando contra a Ucrânia tem todos os indicadores de um genocídio. A Rússia pretende subjugar mais uma vez a Ucrânia como a sua antiga colônia e extinguir o próprio desejo de liberdade do povo ucraniano. Pretende suprimir esta capacidade de liberdade nos ucranianos. Contudo, vemos que a Ucrânia não foi aniquilada há 90 anos e a Ucrânia não se rende. Continuará a resistir também hoje.

Apelo a todas as pessoas de boa vontade em todo o mundo. Dirijo-me a todos aqueles que atualmente têm o que comer e que, durante este inverno, vivem em condições confortáveis ​​e quentes. Convido-vos a pensar nos sete milhões de ucranianos que necessitarão de assistência imediata para se alimentarem e manterem aquecidos neste Inverno. O Holodomor de 90 anos atrás e a guerra em curso na Ucrânia hoje são ambos causados ​​pelo mesmo mal : o insaciável imperialismo russo.

Vamos unir forças e juntos deter o mal. Permaneçamos unidos na luta contra as forças do mal, naquela que é uma batalha espiritual. Porque a batalha da Ucrânia hoje é uma luta pela liberdade humana em todos os países, em todas as culturas e entre todos os povos.

Deus, proteja a Ucrânia. Deus, cure a ferida do nosso povo. Esta ferida, que hoje completa 90 anos, mas também este trauma, infligido ao nosso povo por esta cruel guerra de longa duração. Deus, abençoe as crianças da Ucrânia. Dê-nos forças para não nos cansarmos. Dá-nos forças para resistir, porque sabemos que o mal pode ser derrotado não pelo poder humano, mas apenas pelo poder de Deus. Portanto, Deus, abençoe a Ucrânia com a tua justa paz celestial.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2023-11/ucrania-mensagem-arcebispo-greco-catolico-kiev-93-semana-guerra.html


domingo, 26 de novembro de 2023

Como saber se tenho vocação sacerdotal ou religiosa?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 

*Artigo de Felipe Aquino,

professor 


‘Jesus chamou para apóstolos ‘aqueles que Ele quis’, depois de passar a noite em oração. A Igreja viu nisso o chamado ao sacerdócio e também às outras formas de vida religiosa.

É Jesus quem chama o jovem à vida sacerdotal, o que não é fácil. A vida religiosa exige muitas renúncias para ser ‘todo de Deus’, estar a serviço do Seu Reino para a edificação da Igreja e a salvação das almas.

A palavra ‘vocação’ vem do latim vocare, que quer dizer ‘chamar’. Deus põe no coração do jovem esse desejo de servi-lo radicalmente, em tempo integral, sem divisão.


Alguns sinais indicativos da vocação

Para discernir esse chamado divino, o jovem precisa, sem dúvida, de um bom orientador espiritual, um padre ou um leigo experiente para ajudá-lo. Penso que alguns sinais indicativos da vocação de um jovem ao sacerdócio ou à vida religiosa sejam esses :

1. Ter vontade de entregar a vida totalmente a Deus sem guardar nada para si; ser como Jesus, totalmente disponível ao Reino de Deus. Ser um outro Cristo – alter Christus. Abraçar o celibato com gosto, oferecendo a Deus a renúncia de não ter esposa, filhos, netos, vontade própria etc. É um casamento com Jesus. Ele disse que receberá o cêntuplo nesta vida e a vida eterna depois quem deixar tudo por causa d’Ele e do Seu Reino. Jesus disse que as raposas têm seus ninhos, mas que Ele não tinha nem mesmo onde reclinar a cabeça. Isso é sinal de uma vida despojada de tudo. Nada era d’Ele, nem a gruta onde nasceu, nem o burrinho que O levou a Jerusalém. O barco de onde pregava e viajava, o manto que os soldados sortearam também não eram d’Ele. Nem a casa onde vivia em Cafarnaum pertencia ao Senhor. Tudo Lhe foi emprestado. Cristo era despojado de tudo; a Ele só pertencia a cruz.

Dom Bosco disse que não pode haver graça maior para uma família do que ter um filho sacerdote. É verdade. O padre faz o que os anjos não podem fazer : perdoar os pecados, realizar o milagre da Eucaristia, tornar presente o Calvário em cada Missa para a salvação do mundo.

2. A vocação religiosa exige que o candidato tenha o desejo de trabalhar como Jesus pela salvação das almas, sem pensar em um projeto para a sua vida. Exige entrega total nas mãos de Deus, desejo de viver mergulhado no Senhor. Tem de gostar de rezar, de estar com Deus, de meditar sua Palavra e participar da liturgia, pois sem isso não se sustenta uma vocação sacerdotal.

O demônio tem muitas razões para tentar um sacerdote ou um religioso, pois este lhe arrebata as almas. Então, o religioso consagrado tem de viver uma vida de extrema vigilância, muita oração e mortificação, como disse Jesus.

3. Amar a Igreja de todo o coração, tê-la como Mãe e Mestra, ser submisso aos ensinamentos do seu Magistério. Ser fiel à Igreja e a seus pastores, nunca ensinando algo que não esteja de acordo com o Sagrado Magistério da Igreja. Viver o que diziam o Santos Padres : sentire cum Ecclesia. Amar o Papa, os bispos, Nossa Senhora, os anjos e santos, os sacramentos, a liturgia e tudo o que faz parte da nossa fé católica. Amar a Bíblia e gostar de meditá-la todos os dias. Desejar estudar Teologia, Filosofia e tudo o mais que o Magistério Sagrado da Igreja nos recomenda e ensina. Gostar de fazer meditações, retiros espirituais e uma busca permanente de santidade. Almejar, como disse São Paulo, atingir a estatura adulta de Cristo; ser um bom pastor para as ovelhas.

4. Desejar viver uma vida de penitência, na simplicidade, na pobreza evangélica, na obediência irrestrita aos superiores, aberto a todos por um diálogo franco. Ser tudo para todos. Estar disposto a obedecer sempre o seu bispo ou seu superior a vida toda, qualquer que seja a decisão dele sobre você.

5. Estar disposto a dar até a vida pela Igreja, pelas almas e por Jesus Cristo.

Talvez eu tenha sido um pouco exigente, mas para aquele que deseja ser um ‘sacerdote do Deus Altíssimo’, creio que não se pode pedir menos do que isso. Quem opta pela vida sacerdotal deve se entregar de corpo e alma a ela; não pode ser mais ou menos sacerdote ou religioso. Seria uma frustração para a pessoa e para Deus. É melhor ser um bom leigo do que um mal religioso.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2018/08/08/como-saber-se-tenho-vocacao-sacerdotal-ou-religiosa/

sábado, 25 de novembro de 2023

Solenidade de Cristo Rei e o final do Ano Litúrgico

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

 
*Artigo da Comunidade Shalom


Prosseguimos para o destino final, seja de nossa vida, da humanidade, ou da criação toda. O verdadeiro destino é Cristo, proclamado como centro, alvo e Rei do universo. Fim marcado pela esperança e confirma que a nossa vida tem sentido.

Antes de tudo, temos que construir o presente, o mundo do trabalho, da cultura, da ciência, das artes, da política, dos meios de comunicação, da economia, da família, da educação, da vida profissional, fazendo com que tudo seja permeado pelos valores do Reino de Deus. Em tudo está a tarefa dos leigos e leigas cristãos, como agentes de transformação, fazendo das realidades temporais caminhos e condições de vida saudável. Isto acontecendo podemos dizer, ‘pessoas da Igreja no coração do mundo e pessoas do mundo no coração da Igreja’.

O reinado de Jesus Cristo é ponto de unidade, de chegada para toda a humanidade. Ele é rei que apascenta, guia, cuida e zela das ovelhas. O seu verdadeiro trabalho é constituído de tirar o povo do domínio das trevas e conduzi-lo para as realidades da luz.

Com frequência corremos o perigo do desvio do verdadeiro caminho, abandonando a via traçada por Cristo e chegar a um fim de destruição, perdendo a chance de uma eternidade feliz. Não podemos excluir os valores e as atitudes do Reino da vida.

Celebramos a Liturgia de Cristo Rei, detectando uma realidade de Cristo muito contraditória. De um lado, deveríamos ver as pompas de um rei; de outro, o fato da cruz, onde estava escrito : ‘Este é o Rei dos Judeus’. Rei crucificado.

Jesus foi Rei que não usou as forças do poder. Agiu como ovelha nas mãos dos carrascos, sem atitude de vingança, de punição e de revanche sobre os maus. O objetivo era a plenitude da vida conquistada no Mistério Pascal da Cruz.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://comshalom.org/solenidade-de-cristo-rei-e-o-final-do-ano-liturgico/

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Sinceridade e direção espiritual

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Padre José Eduardo


Costumamos chamar de ‘direção espiritual’ esse meio de formação da consciência que alinha o indivíduo com o seu fim sobrenatural, primeiramente em nível moral, mas sobretudo em nível ascético. Ora, a matéria desse direcionamento outra coisa não é senão a vida mesma do dirigido, que se expõe com total simplicidade ao médico que lhe pode ajudar a não fazer a sua própria vontade, mas a vontade de Deus.

A direção espiritual, portanto, deveria ser o momento em que nós livremente nos abrimos, expondo todos os aspectos da nossa personalidade perante o infinito, contando com a graça de estado daquele que nos orienta para sermos tratados em todos os pontos da nossa indolência, da nossa claudicação, da nossa fragilidade.

Se o ponto mais alto da maturidade humana é viver, por assim dizer, ‘in conspectu Dei’, na presença de Deus, é justamente nesses momentos em que nós o comprovamos para nós mesmos. Para quem quer ser santo, a sinceridade deixa de ser uma obrigação e passa a ser o tema mesmo de sua existência, com todos os seus ônus, visto que ela não é senão um aspecto daquela humildade fundamental, sem a qual jamais podemos ser verdadeiramente conscientes diante de Deus.

O homem vaidoso, insincero, que quer parecer bom aos olhos do seu diretor e, por isso, oculta-lhe, talvez com o pretexto de não o decepcionar, as suas próprias misérias, nada mais é que um extraviado que fez a opção de perder-se de modo cada vez mais irreversível. Não há nada mais patético do que um dirigido que se apresenta como quem lesse a ‘positio’ do seu próprio processo de beatificação : tudo são qualidades, tudo são méritos, recheados de lirismo pseudo-místico, de poesia e de orgulho espiritual.

Quem quer parecer santo diante do seu diretor deve simplesmente interromper esta encenação e reconhecer humildemente o quanto é hipócrita, cínico e palhaço, pois o crescimento em santidade é tão maior quanto maior é o reconhecimento da nossa precariedade, do nosso nada. E não se trata de um reconhecimento retórico, mas da coragem de demolir a própria autoimagem e demonstrar-se como verdadeiramente se é, com todas as sutilezas da sua própria canalhice, ignorância, fraqueza e malícia.

Ir à direção espiritual é dispor-se para falar mal de si mesmo, para revelar-se em toda a amplidão da sua própria virulência, a fim de receber o remédio adequado.

Um diretor experiente sabe quando está lidando com uma pessoa ou com um personagem. Pessoas têm fraquezas, lutas, tentações; personagens têm proezas, para o bem ou para o mal: suas virtudes são façanhas de Hércules, seus pecados são as desventuras de Hazazel e os seus problemas são o tormento de Sísifo; tudo para esconder, por detrás de desproporções, a mediocridade real de sua miséria.

Não existe santidade sem humildade. Qualquer sacerdote sabe disso. E, para além da parlóquia inútil, os santos têm virtudes reais, radicais, heroicas.

Portanto, se alguém pretende autobeatificar-se, não está buscando um diretor espiritual, mas um fã. E isso é uma grande falta contra a justiça e a caridade. Se o dirigido não tem pena de sua própria alma, vitimada por sua própria mentira e fingimento, ao menos deveria ter pena de perder o próprio tempo com conversa tão inútil, bem como deveria ter misericórdia de fazer perder o tempo àquele pobre sacerdote, que tem muitas ovelhas para cuidar e que não pode se dar ao luxo de trabalhar inutilmente, deixando de rezar e de estudar para simplesmente debalde pastorar bodes.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2023/11/23/sinceridade-e-direcao-espiritual/

domingo, 19 de novembro de 2023

E os silêncios de Deus?

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)


*Artigo de Felipe Aquino,

professor


Muitas pessoas ficam desconcertadas ao verem o mal campear no mundo, sem que Deus pareça tomar parte na angústia dos que são vítimas da violência e da injustiça. Às vezes parece que Deus se torna mudo diante do nosso sofrimento; mas não é assim.

Alguém já disse que ‘Deus não fala, mas tudo fala de Deus’. Isto é, Deus fala pela Revelação e pela vida, mas esta linguagem tem de ser decifrada. Seus silêncios aparentes são sábios e nos obrigam a exercitar o ouvido da alma, e criar novas antenas e ouvidos interiores, para ouvir a sua voz. Não é que Deus não fale, somos nós que não captamos sua palavra.

Deus não é indiferente diante dos acontecimentos deste mundo. Sempre pesou sobre a mente dos homens a aparente indiferença de Deus diante do desenrolar dos acontecimentos neste mundo. O povo sente-se, por vezes, desanimado e propenso a ‘fazer como todo o mundo faz’, visto que ser reto e digno parece custar muito caro e não trazer proveito. Até o salmista tem a tentação de agir como os maus (…), mas depois entende a sua triste sorte :

‘Por pouco meus pés tropeçavam; um nada, e meus passos deslizavam. Porque invejei os arrogantes, vendo a prosperidade dos ímpios. Para eles não existem tormentos, sua aparência é sadia e robusta; a fadiga dos mortais não os atinge, não são molestados como os outros (…).

Refleti para compreender, e que fadiga era isto aos meus olhos! Até que entrei nos santuários divinos : entendi o destino deles! De fato, tu os pões em ladeiras, tu os fazes cair em ruínas. Ei-los num instante reduzidos ao terror, deixam de existir, perecem por causa do pavor! (…), Sim, os que se afastam de Ti se perdem (…). Quanto a mim, estar junto de Deus é o meu bem!’ (Sl 72, 2-5. 16-19. 27s)

A Bíblia nos mostra que é exatamente nos momentos de maior luta, conflito, desespero e perplexidade que Deus prepara as suas ações mais belas.

A Páscoa cristã e a glória da Ressurreição de Jesus foram precedidas da cruel e dolorosa Paixão do Senhor, que deixou os apóstolos atônitos e perdidos. Mas, na manhã do domingo, ficou claro que o ‘fracasso’ do Mestre se transformara em inacreditável vitória sobre a morte. Então, tudo se fez novo (…). Ele ressuscitou como o Kýrios, o Senhor da vida e da morte; a vida venceu a morte, as trevas foram dissipadas pela luz.

É no silêncio de Deus que o cristão aprende a crescer na fé e na confiança no Senhor. Não sejamos crianças na fé.

Nesse silêncio sagrado somos obrigados a apurar os ouvidos interiores e a criar novas antenas para tentar compreender a vontade de Deus.

É preciso, então, não se deixar afundar na hora da tormenta, mas esperar com fé na Providência divina que não falha. No meio do fogo das tribulações, é preciso continuar a caminhar, ainda que gemendo e chorando, ‘como se visse o invisível’ (Hb 11,27).

Este ‘avançar na fé’ pode ser comparado a um complicado jogo de ‘quebra-cabeça’; no seu início não temos a menor ideia do quadro a compor, parece que o ‘quebra-cabeça’ não tem solução, a charada é desafiadora; mas, devagar, com paciência, vamos juntando as peças (…) começa a surgir alguma coisa. Ao se combinar as peças começa a surgir o quadro, e então, vai ficando cada vez mais fácil, até o fim.

A vontade de Deus para nós é assim; os fatos da vida, isolados, parecem não ter sentido, mas, quando os vamos juntando na fé e analisando-os na esperança, vemos a sua mensagem. Às vezes é preciso olhar peça por peça, sem saber qual é a próxima que virá. Mas é preciso ir em frente, caminhar com perseverança.

A grande Edith Stein disse uma bela verdade : ‘Não sei para onde Deus me leva, mas sei que é Ele me conduz’. Isto basta.

Não podemos esperar que a mensagem esteja decifrada para começar a caminhar; assim não começaríamos nunca a viagem. Nunca encontraremos um discurso de Deus para nós, pronto e claro, e nem um caminho nitidamente traçado; não, Deus nos conduz no escuro da fé, onde Ele vai nos falando durante o caminho, como fez com os discípulos de Emaús. E, se não caminharmos, não ouviremos a Sua voz.

Por que Ele age assim? Na sua sabedoria infinita Ele tem motivos para agir assim conosco; logo, cabe a nós não nos calarmos diante Dele, mas responder na fé e na oração incessante.

‘O justo vive da fé’ (Rm 1,17; Gl 3,11; Hb 10,38). Mais do que a nossa vitória, Deus espera a nossa luta determinada, com fé e perseverança.

Ninguém conhece os caminhos da Providência divina, por onde Ele passa, o que quer com este golpe, o que está fazendo com esta aflição, morte, fracasso, desemprego (…).

Muitas Ordens religiosas foram provadas terrivelmente até se firmarem. Mas, porque os seus fundadores não desanimaram e não desistiram, a Igreja se tornou rica e santa por causa delas.

Deus não é um ser mudo; Ele se revelou e revelará; se Ele, por vezes, parece calar-se, Ele o faz sábia e providencialmente.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2015/08/10/e-os-silencios-de-deus/

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

A liturgia como lugar onde se pode alcançar a santidade

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Roberta Barbi


‘A liturgia deve ter sempre como objetivo a santificação do povo de Deus, mas para isso é necessário também que exista uma comunidade madura, capaz de realizar ações, que tenha recuperado a dimensão da plena participação na liturgia como um complexo de sinais visíveis e eficazes, e que encarne, portanto, aquela definição da assembleia como a ‘mais alta manifestação da Igreja’. Esse é o cerne do discurso proferido em 15 de novembro, pelo Arcebispo Metropolitano de Catanzaro-Squillace, Dom Claudio Maniago, na conferência sobre a ‘dimensão comunitária da santidade’, na qual contextualizou o tema em uma perspectiva histórica.

Do período patrístico à Idade Média

‘No período patrístico, a liturgia e a assembleia coincidem e é impossível pensar em uma sem a outra’, começou o prelado em seu discurso, especificando que essa visão de estreita união entre os dois elementos sobrevive até o início da Idade Média. Nessa fase, é a ação de Deus que tem a primazia : a comunidade é envolvida pelo toque de Cristo. Na pregação litúrgica, ocorre a formação cristã porque, na fórmula, o Mistério transcendente de Deus deixa claro que ele se torna ‘evidente e presente’ em Cristo, ou seja, na Encarnação. Na celebração, ao recordar o Filho, ‘transparência de sua santidade’, somos assim moldados por Ele. Na Idade Média, as orações eram recitadas em voz alta e, com um solene ‘Amém’ final, a comunidade afirmava que havia feito ‘sua própria oração’, a que acabara de ser pronunciada pelo celebrante. A transição, portanto, para uma oração recitada em um sussurro deve ter sido muito problemática : ‘O vínculo entre o presbítero e o povo foi rompido’, diz Dom Maniago, ‘e houve uma mudança para uma eclesiologia da autoridade em que os verdadeiros celebrantes se tornaram apenas aqueles que detinham alguma capacidade. Isso começou a acontecer a partir do século IX e especialmente a partir do século XII : línguas desconhecidas eram usadas para rezar e a realização do sacrifício era ‘confiada exclusivamente ao presbítero, a assembleia não estava mais envolvida’. Isso também teve consequências para a arquitetura e a distribuição espacial : a partir de agora, os fiéis eram colocados em frente e não mais ao redor do altar.

O valor individual do sacramento para alcançar a salvação

As coisas mudam novamente na era do Concílio de Trento : ‘A distinção entre liturgia e religiosidade-devoção popular é radicalizada’, observa Maniago, os altares dedicados aos santos são desenvolvidos como a vingança do povo ‘contra um rito excessivamente frio e canonizado’; os sacramentos começam a ser usados subjetivamente como ‘um instrumento de salvação para o indivíduo devido a um profundo conhecimento do pecado’. Já no Rituale romanum de 1614, por exemplo, o foco está naquele que administra o sacramento, nas palavras que ele deve pronunciar de forma precisa e distinta, enquanto a comunidade é reduzida ao papel de espectadora. A santidade, em uma época influenciada pela modernidade em que a espiritualidade está em declínio, torna-se sinônimo de perfeição pessoal delegada à interioridade do indivíduo, e a pregação tem o único papel de fornecer exemplos úteis para esse fim. Os santos estão lá em cima, no alto, difíceis de alcançar, se não forem para poucos, enfatiza o Arcebispo de Catanzaro-Squillace.

A reforma do Concílio Vaticano II

Já no título ‘Vocação universal à santidade na Igreja’ do Capítulo V da Lumen Gentium, Constituição do Concílio Vaticano II, fica claro que a perspectiva mudou. O Concílio afirma, de fato, que ‘todos os fiéis de qualquer estado e condição são chamados pelo Senhor’ a uma santidade cuja perfeição ‘é a do Pai celeste’. Da mesma forma, todos os fiéis são chamados à plenitude da vida cristã e, entre os instrumentos úteis para alcançar a santidade, a caridade é sempre colocada em primeiro lugar. ‘Neste quadro teológico, a assembleia assume, portanto, um papel importante na compreensão da dimensão comunitária da obra de santificação que o Senhor continua a realizar em seu povo’, o povo santo de Deus, segundo o prelado. A ênfase, portanto, está na participação, mas de um novo tipo : uma ação litúrgica cujo ponto de apoio continua sendo a Eucaristia, e que determina uma ‘responsabilidade coletiva’.

Todos celebram e apenas um preside, portanto, ‘os rituais e as orações são a linguagem de todo o povo de Deus’ e, em certo sentido, voltamos a uma compreensão e execução da liturgia pela assembleia que é própria da Igreja primitiva, porque a arte de celebrar ‘é uma atitude que todos os batizados são chamados a viver’. Na liturgia, experimenta-se a obra de Deus, há um contato a ser vivenciado com o Senhor que envia o dom da santidade. Celebrar a liturgia com esse espírito coloca a pessoa no centro da Exortação Apostólica Gaudete et exsultate do Papa Francisco, segundo a qual ‘a santidade é um chamado universal e comum, a ser vivido na comunidade do povo de Deus, como uma tendência contínua para acolher e ser transformado pelo amor misericordioso de Cristo’.

Uma teologia da santidade nos dias atuais

Abordando o tema da santidade nos dias de hoje, de um ponto de vista teológico, está a intervenção do Padre Jordi-A. Piqué Collado, decano do Instituto Litúrgico do Pontifício Ateneu Sant'Anselmo, que indica como os modelos de santidade ‘são chamados pela liturgia como uma ponte entre o presente e o eterno’, manifestando na prática a transcendência imanente de Deus. É essencial distinguir, antes de tudo, entre santidade e sacralidade : somente Deus é santo, e sempre está à espreita o risco de confundir essa dimensão com a do sagrado que pertence às pessoas consagradas ou mesmo aos objetos, enquanto ‘somente a presença de Deus comporta a santidade’, caso contrário se cai na idolatria.

As bem-aventuranças do Evangelho e a santidade

A santidade de Deus é manifestada em todo o Novo Testamento por meio da presença santificadora de Cristo : ‘Portanto, os discípulos são chamados a fazer o que Ele fez, como pregar o Evangelho, realizar atos de cura, vocação, salvação e perdão. Os santos são, portanto, aqueles que se comportam como Ele, ou seja, que são chamados a cumprir as bem-aventuranças. De acordo com a interpretação de São Leão Magno, diz o Padre Piqué Collado, os santos são aqueles que serão reconhecidos como ‘agentes de consolação diante dos males do mundo’, mas os modelos de santidade também serão ‘os pobres e humildes’, aqueles que amam e desejam a justiça, porque ‘amar e desejar a justiça não é outra coisa senão amar a Deus’. Até mesmo ‘os pacificadores, os inimigos da guerra’ serão chamados de santos e, portanto, filhos de Deus, e sua santidade será reconhecida por todos. Mas para todos esses santos que habitam entre nós, ‘a meta é o céu’ e a liturgia é constantemente ‘o elo entre a terra e o céu’.

Na teologia litúrgica, finalmente, aparece ‘um conceito muito dinâmico de santidade’, mas um conceito que corresponde somente a Deus : ‘É Ele que revela Sua própria essência por meio da manifestação de Sua santidade particular’ e Jesus Cristo é ‘a manifestação definitiva da santidade de Deus’, Ele mesmo é Deus. Aqueles que podem ser chamados a reproduzir a santidade de Deus - demonstrada plenamente por Jesus - são chamados a cumprir as bem-aventuranças’. ‘Isso’, conclui o Padre Collado, ‘é a norma da santidade de acordo com o Evangelho’.’

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-11/a-liturgia-como-lugar-onde-se-pode-alcancar-a-santidade.html


terça-feira, 14 de novembro de 2023

Discrição: uma virtude esquecida?

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Marzena Devoud


Num mundo movido pelas redes sociais, tudo nos impulsiona ao exibicionismo e à superexposição até das nossas oscilações de humor e dos nossos pensamentos mais secretos, e sempre na velocidade do tempo real. Mesmo assim, neste mesmo mundo, existem pessoas que sabem ser discretas. São pessoas que ainda observam o mundo com discernimento e autocontrole.

Acontece que viver esta virtude da discrição nem sempre é fácil. De fato, quem não quer se destacar na multidão hoje em dia acaba sendo visto como ‘suspeito’.

‘É exatamente isso que eu vivo no meu trabalho’, conta Magali, 33, designer gráfica. Reservada por natureza, ela prefere não chamar a atenção da sua equipe. ‘Minhas roupas são tradicionais e meu jeito de falar é decididamente discreto. Eu também tenho regras de cortesia. Falar ou interromper a outra pessoa para colocar os holofotes sobre mim e ‘me vender’ me deixa horrorizada! E, sim, muita gente me acha antiquada’.

Aparentemente, não há nada mais ultrapassado que a discrição. Mas que tal se manter-se discreto e reservado e ficar quieto para dar espaço aos outros for uma experiência de alegria e de preciosa paz interior? A discrição e a humildade podem ser traços de caráter que nos surgem naturalmente, ou expressões de fidelidade aos valores da ‘boa educação’ que exigem moderação tanto nas atitudes quanto nas aparências. Mas também pode ser a obra ativa do Espírito Santo.

Para o pe. Raphaël Buyse, a discrição é uma virtude específica que exercemos na nossa relação com os outros e que exprime ‘o respeito amoroso por cada ser humano, começando pelos mais próximos e pelos mais fracos’. É um ‘olhar atento, capaz de discernir em detalhe as necessidades profundas, que podem ser muito sutis, daqueles que nos rodeiam. Uma virtude moderadora que dá nuances e equilíbrio à vida e a penetra com uma delicadeza misteriosa’, escreve ele, esboçando o retrato de um grande monge beneditino, o belga Frederic Debuyst (1922-2017).

Debuyst, o fundador do mosteiro de Saint-André de Clerlande, em Ottignies-Louvain-la-Neuve, na Bélgica, era um homem de grande gentileza, modesto, e, para muitos, um mestre na arte da discrição. Era obra do Espírito do Senhor. ‘A sua vida mostrou, sem grandes discursos, que o seguimento de Cristo nunca deve ser feito com esforços violentos ou sobressaltos exuberantes, mas com muita paciência na vida quotidiana, num ritmo regular de oração e trabalho, na capacidade de suportar as próprias deficiências e as dos outros’, escreve o pe. Raphaël Buyse.

A discrição, então, é o Espírito de sabedoria que nos inspira a passar preferencialmente do ‘respeito pelos mais dignos’ ao ‘respeito pelos mais fracos’. É o bem que ‘fala pouco, não se apresenta, não se difunde nas organizações e nas estatísticas’, continua.

Portanto, antes de entrarmos nas redes sociais para compartilhar as nossas ‘selfies’, buscar ‘curtidas’ e seguidores e participar do exibicionismo generalizado da nossa época, talvez devêssemos nos perguntar se estamos sendo seduzidos pelo narcisismo e pelo orgulho, em vez de praticar um nível saudável de discrição que nos permita focar nos outros. Isto exige sacrifício e verdadeira caridade.

A virtude evangélica da discrição, em suma, é caminho para a conversão do coração e para o renascimento no Espírito, como Jesus revelou a Nicodemos : ‘Faze isto e viverás’.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2023/05/02/discricao-uma-virtude-esquecida/


domingo, 12 de novembro de 2023

A graça do batismo, a tradição e os costumes clericais

Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo de Andrea Tornielli


Uma reflexão sobre as respostas do Dicastério para a Doutrina da Fé com relação à celebração do batismo e às pessoas transexuais e homossexuais


São Cipriano, bispo de Cartago, que foi martirizado em 258, participando de um sínodo de bispos africanos, observou : ‘A nenhum homem que venha a existir pode ser negada a misericórdia e a graça de Deus’. E Santo Agostinho escreveu : «As crianças são apresentadas para receber a graça espiritual, não tanto por aqueles que as carregam nos braços (embora também por eles, se forem bons fiéis), mas pela sociedade universal dos santos e dos fiéis... É toda a Igreja Mãe dos santos que age, pois ela como um todo gera cada um deles».

Essas são duas declarações dos Padres da Igreja que atestam a absoluta gratuidade do batismo, de alguma forma também relativizando o papel dos pais e padrinhos (‘se forem bons fiéis’) que pedem o sacramento e apresentam a criança. Essas são palavras que melhor do que outras iluminam a recente resposta do Dicastério para a Doutrina da Fé às perguntas de um bispo brasileiro sobre o batismo. A nota assinada pelo cardeal Victor Manuel Fernandéz e aprovada pelo Papa Francisco mostra uma clara harmonia com o recente magistério papal. De fato, Francisco tem insistido repetidamente que a porta dos sacramentos, e em particular a do batismo, não deve permanecer fechada, e que a Igreja nunca deve se transformar em uma alfândega, mas sim acolher e acompanhar todos em seus acidentados caminhos na vida.

Um documento do Dicastério para a Doutrina da Fé, assinado pelo Prefeito Fernandéz e aprovado pelo Papa na audiência de 31 de outubro, expressa uma opinião positiva se não se cria ...

As respostas do dicastério doutrinário, no contexto altamente polarizado que caracteriza a Igreja hoje, provocaram reações opostas, incluindo aquelas que temem que, ao admitir ao sacramento do batismo os filhos de casais homossexuais (adotados ou filhos de um dos dois parceiros, talvez gerados por gestação artificial), tanto o chamado ‘casamento gay’ quanto a prática do chamado ‘útero de aluguel’ se tornem moralmente lícitos. Também pode ser lida nesse sentido, novamente pelos críticos, a flexibilização da proibição de padrinhos e madrinhas de batismo, que o Dicastério apresenta de forma problemática. 

Em primeiro lugar, é interessante notar uma passagem da nota, onde se recorda que as respostas publicadas nestes dias ‘repropõem, em boa substância, os conteúdos fundamentais do que já foi afirmado no passado sobre este assunto por este Dicastério’. A menção se refere a pronunciamentos anteriores que permaneceram em segredo (um dos quais também é citado na nota de rodapé) que remontam a este pontificado e aos de seus antecessores. Além disso, as citações iniciais dos dois Padres da Igreja propostas no início deste artigo estão contidas, juntamente com muitas outras, em um documento público da então Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, chefiada pelo cardeal croata Franjo Šeper e pelo arcebispo dominicano Jérôme Hamer. Essa foi uma instrução aprovada em outubro de 1980 por São João Paulo II, na qual ele respondeu a uma série de objeções contra a celebração do batismo infantil, reafirmando a importância de uma ‘prática imemorial’ de origem apostólica que não deveria ser abandonada.

Para aqueles que hoje negariam o batismo aos filhos de casais homossexuais porque, ao batizá-los, a Igreja tornaria moralmente lícitas as uniões homossexuais ou a prática da barriga de aluguel, o documento de 1980 já havia, de fato, respondido indiretamente, afirmando que ‘a prática do batismo infantil é autenticamente evangélica, pois tem valor de testemunho; manifesta a iniciativa de Deus em relação a nós e a gratuidade de seu amor que envolve toda a nossa vida : 'Não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou... Nós o amamos, porque ele nos amou primeiro' (1 João 4: 10. 19.)’. E também ‘no caso dos adultos, as exigências de receber o batismo não devem nos fazer esquecer que Deus 'não nos salvou por causa de obras de justiça que tivéssemos praticado, mas unicamente em virtude de sua misericórdia, median­te o batismo da regeneração e renovação, pelo Espírito Santo,' (Tito 3, 5.)’.

A instrução aprovada pelo Papa Wojtyla há quarenta e três anos obviamente levou em conta a mudança do contexto social e a secularização : ‘Pode acontecer que pais incrédulos e que praticam apenas ocasionalmente, ou mesmo não cristãos, que por razões dignas de consideração pedem o batismo para seus filhos, solicitem aos párocos’. Como se deve agir nesses casos? Permanecendo válido o critério - de ontem e de hoje - de que o batismo de crianças é celebrado se houver o compromisso de educá-las de maneira cristã, o documento de 1980 especificou a esse respeito : ‘Quanto às promessas, qualquer compromisso que ofereça uma esperança bem fundamentada para a educação cristã das crianças deve ser considerado suficiente’. A prática atual nas paróquias atesta o fato de que, seguindo o exemplo do Nazareno, incansável em sua busca por cada ovelha perdida, é suficiente que um parente se comprometa perante a Igreja a não fechar a porta. 

Não seria necessário, hoje, acreditar mais na ação da graça que atua por meio dos sacramentos, que não são um prêmio para os perfeitos, mas um remédio para os pecadores? Não deveríamos olhar mais para as páginas do Evangelho, de onde emerge Jesus, que ama primeiro, perdoa primeiro, abraça primeiro com misericórdia, e é nesse abraço que o coração das pessoas é movido para a conversão?

E, novamente, que culpa têm as crianças? Seja como for que tenham vindo ao mundo, elas são sempre criaturas amadas e queridas de Deus. Não valeria a pena, então, concentrar-se mais no lado positivo, ou seja, no fato de que as pessoas pedem o batismo em um contexto pós-cristão, onde é cada vez mais raro que isso aconteça por mero costume?

É confortante reler as palavras que um grande bispo do século XX proferiu em uma entrevista em julho de 1978 sobre Luise Brown, a primeira criança nascida em um tubo de ensaio. Ele denunciou o risco de surgirem ‘fábricas de crianças’ separadas do contexto familiar e explicou que compartilhava ‘apenas em parte’ o entusiasmo pelo experimento. Mas, no final, ele ofereceu seus ‘mais calorosos votos à criança’ e um pensamento afetuoso aos pais, dizendo : ‘Não tenho o direito de condená-los : subjetivamente, se eles agiram com intenção correta e de boa fé, podem até ter grande mérito diante de Deus pelo que decidiram e pediram aos médicos para realizar’. Esse bispo se chamava Albino Luciani, era o Patriarca de Veneza, um mês depois se tornaria João Paulo I e hoje é beato.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-11/editorial-tornielli-a-graca-do-batismo-e-os-costumes-clericais.html

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

As monjas cistercienses e trapistas ontem e hoje

 Por Eliana Maria (Ir. Gabriela, Obl. OSB)

*Artigo do Cardeal Dom Orani João Tempesta, O. Cist.,

Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ


As mulheres na vida monástica


Se o século XII foi a era dos maiores místicos cistercienses movidos por São Bernardo de Claraval (1090-1153), o século XIII conheceu as grandes monjas místicas cistercienses que também, de algum modo, nos deixaram amplas obras escritas. Aqui se encontram Gertrudes de Helfta, a Grande, Matilde de Hackborn, Matilde de Magdeburgo – todas com seus tratados místicos monumentais – e Beatriz de Nazaré com um escrito bem menor em tamanho, mas não em profundidade.

Cada pessoa tem seu método de leitura ou de meditação. Cremos, no entanto, ser sempre mais útil iniciar por um panorama geral e, depois, com calma e oração, passo a passo, ir mergulhando nos escritos próprios de cada mística em questão. O pano de fundo histórico e também teológico-espiritual se fazem extremamente necessários para uma inter-relação entre o geral e o particular e vice-versa. Neste ponto, partindo de bases firmes no entendimento dessas nossas místicas, tomamos significativas passagens que duas monjas – uma cisterciense e uma trapista – nos apresentam. Encontram-se na oportuna obra de vários autores com o título ‘A mulher, a monja e a mística cisterciense : o passado e o presente à luz de quatro importantes Conferências’, publicada por Cultor de Livros, de São Paulo.

Logo de início, brota um sério questionamento : Que se entende por mística? – O Catecismo da Igreja Católica, de modo objetivo, ensina que ‘o progresso espiritual tende à união sempre mais íntima com Cristo. Esta união recebe o nome de ‘mística’, pois ela participa no mistério de Cristo pelos sacramentos – ‘os santos mistérios’ – e, nele, no mistério da Santíssima Trindade, Deus nos chama a todos a essa íntima união com Ele, mesmo que graças especiais ou sinais extraordinários desta vida mística sejam concedidos apenas a alguns, em vista de manifestar o dom gratuito a todos’ (n. 2014). A essência da mística é, portanto, a íntima união com Deus (cf. Gl 2,20).

Afirmamos isso, porque, de acordo com Dom Bernardo de Oliveira, OCSO, antigo abade geral trapista, é certo que ‘a experiência mística da vida cristã ocupa um lugar central na tradição cisterciense. Esta afirmação é tão evidente que não precisa demonstração. Os primeiros cistercienses (século XII) trataram de viver na presença de Deus e em comunhão com Ele. Esta declaração de intenções guarda, hoje, todo seu valor. Nas Constituições podemos ler : ‘Nossa Ordem é um Instituto monástico integralmente ordenado à contemplação’ (Cst. 2). Para alguns, é seguida de sinais extraordinários (êxtase, matrimônio místico, etc.) como dom gratuito de Deus. Não são incitados pela criatura, por isso os chamamos de gratiagratis data (graça dada de graça). Nossas místicas, em maior ou menor grau, os vivenciaram com a humildade própria dos santos na vida consagrada de suas respectivas comunidades.

Ir. Marina Medina, O. Cist., escreve que ‘O melhor modelo no qual se pode fundamentar a vida das consagradas é Maria, a mulher por excelência, que, vivendo a sua condição de mulher, se entregou por inteira ao plano de Deus a seu respeito, confiando, totalmente. A mulher que permanecendo virgem, segundo o projeto de Deus, se torna a mais fecunda de todas as mulheres. A Virgem Maria, Mãe de Deus e Mãe dos homens. Há uma fecundidade maior?’

‘Toda mulher, em virtude do seu ser, tem uma missão especial; portadora de ternura, é o rosto mais humano de Deus e de Sua Presença no mundo. Quando a mulher decide se doar, sabe entregar-se plenamente a Deus e, por Ele, aos seres humanos. Portadora e transmissora de vida, a feminilidade se faz mais viva e se realiza mais plenamente na mulher consagrada que deve levar, a um mundo no qual impera a morte, a vida nova que Deus nos deu em Seu Filho Jesus Cristo. ‘A força moral da mulher, sua força espiritual se une com a consciência de que Deus lhe confia de modo especial ao homem, ao ser humano. precisamente devido à sua feminilidade. Nossos dias acolhem à manifestação da ‘genialidade’ da mulher que assegura a sensibilidade pelo humano em cada circunstância: pelo fato de que é humano’ (p. 15-16).

Citando o Papa São João Paulo II, na Vita Consecrata n. 58, Ir. Marina finaliza o seu artigo assim : ‘Há motivos para esperar que um reconhecimento mais fundo da missão da mulher provocará cada vez mais na vida consagrada feminina uma maior consciência do próprio papel e uma crescente dedicação à causa do Reino de Deus. Isso poderá traduzir-se em numerosas atividades, como o compromisso pela evangelização, a missão educativa, a participação na formação dos futuros sacerdotes e das pessoas consagradas, à animação das comunidades cristãs, o acompanhamento espiritual e a promoção dos bens fundamentais da vida e da paz. Reitero, uma vez mais, às mulheres consagradas e à sua extraordinária capacidade de entrega, a admiração e o reconhecimento de toda a Igreja, que as sustém para que vivam em plenitude e com alegria sua vocação, e se sintam interpeladas pela insigne tarefa de ajudar a formar a mulher de hoje’ (p. 22). O Papa Francisco tem levado, de modo corajoso, adiante esse santo propósito. Que no ramo feminino das grandes Ordens irmãs, cisterciense e trapista, essas palavras encontrem eco favorável. 

Outra monja, Ir. Rosária Spreafico, OCSO, nos demonstra como as duas Ordens, no âmbito feminino, têm procurado responder aos desafios próprios do nosso tempo. São suas palavras : ‘As abadessas têm sentido as exigências de uma verdadeira renovação espiritual que vá além da adaptação às novas estruturas. É a experiência disso que tem sido testemunhada em minha comunidade. Onde se colocava bem mais atenção era, sobretudo, nas dimensões mais profundas. Por exemplo, tratava-se de acolher e integrar as novas gerações com as exigências e os desafios que traziam consigo; isso nos levou a redescobrir a importância de escutar as pessoas, a interiorização pessoal e também as dimensões comunitárias da ascese da amizade, da colaboração, do diálogo; valorizaram-se também, de forma renovada, a tradição e a dimensão eclesial da vida monástica; concede-se mais interesse à qualidade efetiva da vida comunitária do que à adaptação das formas concretas, sem, contudo, descuidá-las. Pensemos, por exemplo, nas transformações de mentalidade que levam consigo um reequilíbrio do trabalho comunitário, transformações nos locutórios, nas saídas por exigências de trabalho, saúde ou estudo’.

‘O esforço das comunidades femininas para melhorar a qualidade da formação tem sido importantíssimo. Às vezes, favorecendo certas especializações, organizando sessões de estudo para as formadoras etc.; no que diz respeito também à reforma litúrgica, todos os mosteiros femininos têm se consagrado a ela com entusiasmo e colocado a serviço da renovação seus dons de criatividade, colaborando com as comunidades masculinas. Ainda : não devemos nos esquecer do esforço feito pelas monjas para conseguir, graças a um trabalho assíduo, a autonomia econômica, em benefício do sentido da responsabilidade, da colaboração e do espírito empreendedor’ (p. 57-58).

Trata-se, portanto, não de mera renovação acidental ou cosmética – por isso mesmo, estéril em frutos –, mas de algo profundo que, sem perder o contato exigido e exigente com a tradição ou com as fontes primitivas cistercienses, saiba não ser, de modo algum, anacrônica. Neste ponto, as monjas cistercienses da estrita observância nos têm legado bom exemplo e, mesmo em meio a uma crise quase geral de vocações em diversos países, vêm promovendo fundações.

Como conseguem essa fecundidade fundacional? É mesma Ir. Rosária quem nos explica : ‘Desde 1970, se realizaram 21 fundações e uma incorporação. Parece-me que nossa forma de realizar fundações, a nós monjas, tem sido concreta e comunitária. São raras as fundações experimentais ou realizadas sem conformar-se ao Estatuto das Fundações. Temos nos preocupado, sobretudo, na formação de um grupo de fundadoras antes da partida, da realização de um marco de vida, verdadeiramente, monástico, desde o momento da instalação, da autenticidade da vida monacal, concretamente, vivida (com uma atenção particular à liturgia e à vida comunitária). Sem entrar, em demasia, nos detalhes, a frequente presença de fundações de monjas tem estimulado também os monges nas fundações que eles haviam empreendido nas proximidades; isso quando as monjas não estavam ligadas à escolha que eles tinham feito, mas, sim, permaneciam atentas à sua própria sensibilidade e às exigências de sua comunidade nascente. Também poderíamos dar exemplos das relações com a casa mãe, integração de vocações locais, estilo de vida etc.’ (p. 58).

O resultado, todavia, se dá ‘somente quando nos unimos umas às outras, quando nos deixamos configurar pela comunidade, quando aderimos à maternidade, quando somos capazes de acolher a vida para transmiti-la no momento que nos corresponda. Aqui estão alguns dos aspectos testemunhais que temos sido chamadas a dar por meio dessa reciprocidade :

- Testemunho do valor da ‘estabilidade’ de uma pertença total e definitiva capaz de risco, esperança, ajuda afetuosa e maternal, respeito às jovens que procedem de um mundo no qual a idolatria de tudo o que é instintivo, tem como consequência o fugir de toda responsabilidade, parece estar infiltrada em todos os domínios.

- Testemunho de um sentido maternal vivendo o ‘trabalho’ com um sentimento de gratuidade, de doação efetiva de si, um esforço de renúncia, de serviço. É ele um antídoto mais seguro contra a lógica do poder e a do rendimento, tão característicos de nossas sociedades industriais.

- Em conformidade com a doutrina do Vaticano II, é de grande importância para nós, fazer um esforço a fim de aprofundar na ‘doutrina de nossas Madres cistercienses’, para ir adquirindo sua mentalidade, para considerar o mistério do homem e da Igreja monástica. Não se trata somente de estudar este ou aquele ponto preciso, mas também de aprender um método de aproximação ao real que nos abra ao amor de Cristo e ao amor das pessoas da comunidade. Para isso, é necessário formar nossas jovens em uma lectio de textos patrísticos que lhes faça tomar consciência de suas raízes, da herança que lhes é transmitida, e de sua responsabilidade a respeito do momento histórico em que vivem.

- Introduzir nossas jovens na experiência do mistério que a ‘liturgia’ nos envolve. Frente ao despertar de todas as formas de religiosidade que só apontam para satisfazer a necessidade individual de emoção espiritual, o Opus Dei (Ofício Divino) se apresenta como o lugar onde o mistério se comunica, se celebra, onde nos convertemos em servidoras por meio de nosso louvor, nossa oração, nossa oferenda (p. 64-65).

Possa este artigo, em um tempo no qual as mulheres têm, cada vez mais, sido chamadas a uma maior participação na vida da Igreja, despertar reflexões e o desejo santo de, a exemplo da Virgem Maria, e das grandes místicas das Ordens cisterciense e trapista (recordemo-nos da Beata Gabriela Sagheddu), dizerem, também elas, um generoso ‘Sim’ a Deus em um dos quatro mosteiros femininos do Brasil, o trapista, em Santa Catarina, e os três cistercienses : em São Paulo, no Paraná e Mato Grosso do Sul.

 

Fonte : *Artigo na íntegra

https://pt.aleteia.org/2023/11/09/as-monjas-cistercienses-e-trapistas-ontem-e-hoje/